terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Alda

   Havia terminado de temperar a carne e colocado uma linguiça no furo aberto no meio da peça, preparando-se para levá-la ao forno, quando ouviu palmas vindas do lado do portão. Depositou o tabuleiro na mesa, limpou as mãos no pano e foi até a porta da frente.

- Guilherme! Que bom vê-lo novamente, primo! - dizia ao homem que batia palmas diante daquela casinhola de vila no bairro do Méier. 
- Alda! - exclamou abraçando a moça. 
- Entre, entre! Vou assar uma carne para o almoço! Fez boa viagem?
- Ah, cansativa. Cheguei de Cantagalo há umas duas horas, e como não conheço essa parte do subúrbio, tomei um carro de praça, mas me enrolei todo com o endereço e, por fim, o motorista me deu uma facada! Sacripanta! - Guilherme depositou a maleta que trazia no sofá e tirou o chapéu: - faz muito calor aqui! E Bruno?
- Logo chega. Quer um suco? Mamãe deixou umas graviolas aqui ontem...
- Não, não gosto de suco de graviola. Fico satisfeito com um copo d'água. E a tia, como está?
- Muito bem! Ninguém diz que ela se avizinha dos setenta. Venha até a cozinha, tenho que terminar o almoço e, enquanto isso, vamos conversando. Fica até quando?
- Domingo. Tenho que estar em Barra Mansa na segunda-feira. Sabe como é vida de caixeiro.

   Alda trajava um vestido florido, leve como um dente-de-leão, pronta a desfazer-se ao menor sopro. Seu corpo inteiro sorria ao abrir dos lábios finos que exibiam uma fileira de pétalas brancas. O perfume doce embriagava a pele, ou caule, daquele vivo girassol. Onde o amor cantasse, parecia, para lá se voltava. Guilherme não deixou de notar tal aprumo na prima que há muito não via. 

- A casa é boa.
- Não é muito grande, mas é confortável. Temos o quarto onde eu e Bruno dormimos e o quarto de hóspedes. Se vier o bebê, lá será o cantinho dele.
- Ora, não sabia que estava grávida! - exclamou o rapaz.
- Não, não estou. Mas pretendo. Um dia. Bruno não gosta muito da ideia, diz que vai tirar nossa liberdade. Bobagem, eu ainda vou convencê-lo. Tenho certeza que ficará todo derretido quando vir a carinha do nosso filho. Por enquanto, não temos condições. Ah, e por falar nele...

   Um homem alto e moreno entrava fazendo estrondo com a porta de vidro. Trazia os antebraços despidos e a camisa aberta no peito: - pombas, faz calor!

- Bruno, lembra do primo Guilherme?
- E aí, tudo bem? - apertou com força a mão do rapaz, quase a sacudi-lo todo - Alda, eu vou tomar um banho. 
- Bruno anda meio nervoso com o escritório. Ele é contador, você sabe, e parece que andam tirando o couro dele. - dizia Alda que tentava emendar o marido. 

   Durante o almoço, servido na mesa de mogno da sala, Bruno devorava com apetite a carne: - filha, traz o sal, você não temperou direito! Hum, suco de quê? Não gosto de graviola, Alda! Sua mãe insiste em trazer isso lá do quintal dela! Tem cerveja? Pegue para mim! - no mais falava sobre o escritório, política e sobre as últimas partidas do time predileto. Guilherme conversava, ria por vezes e aumentava a voz para acompanhar, com simpatia, os arroubos do anfitrião. Todavia, não deixava de notar que ele mal se dirigia à esposa e que Alda, mesmo sorrindo, tinha o olhar apagado. 

- Alda, eu vou tirar um cochilo. - Bruno levantou ao terminar o almoço - Não, tomo café mais tarde, não quero tirar o gosto da comida. - disse após a esposa colocar xícaras na mesa. Ele entrou no quarto, acendeu um cigarro, e ficou só de calções. Pela porta entreaberta, via-se seu corpo de bruços esparramado na cama. Roncava alto. 

   Naquela noite, Guilherme acordou encharcado. A temperatura, que durante a tarde aumentou, parecia não ter amainado, e somente uma brisa tépida entrava pela janela escancarada. Olhou o relógio, eram duas da madrugada. Levantou-se e chegou à janela para distrair-se observando o sono da vila, porquanto o seu mesmo havia perdido. Depois pensou em ir tomar água. Ao pôr o pé  na sala, ouviu o soluçar de alguém que chorava. Aproximou-se do umbral da cozinha e viu Alda sentada de costas.

- Alda? - antes de chamar por ela, o rapaz havia notado que o tecido suave e transparente da camisola, tocava a pele leitosa e delicada daquele corpo fornido. As finas alças delineavam as curvas dos ombros e vinham cair como filetes onde os seios se insinuavam. Placas rubiáceas davam outros tons ao colo, fazendo parecer um quadro da alvorada. Os cabelos castanhos caíam-lhe por sobre a face, que apoiava nas costas da mão direita do bracinho gordo, cujo cotovelo recostava sobre a mesa. 
- Guilherme, desculpe, eu acordei você?
- Não, não. O que houve? 
- Ah, Guilherme... - e a moça desfiou o rosário. - No começo, ele me amava, eu acho, mas agora não me procura mais! Passou a voltar tarde do escritório e se eu pergunto onde estava, ele quase bate em mim! Chega bêbado, a roupa cheirando a perfume barato! Já disseram que ele tem uma amante lá no Grajaú! Uma amante, Guilherme! Você viu hoje? Ele mal falou comigo. Acordou depois daquele cochilo, saiu novamente e voltou à meia-noite! O que faço, Guilherme, o que faço? - Alda, em prantos, achegou-se a ele. Guilherme a beijou no rosto sem dizer nada. Ela o olhou: - quero beijar as covinhas do seu rosto quando sorri. - e quando ele concluiu a frase, seus corpos se encontraram com ardor. O rapaz desnudou os seios de Alda e, segurando-os, virou-a para deitar seu tronco na mesa. Possuiu-a com desejo. Os gemidos ecoaram na noite quente da casinhola de subúrbio. E imediatamente acorreu à memória de Alda uma frase que leu em um conto de jornal: ''as carnes assaram no suor corruto''. 

***

   No domingo, Alda e Bruno foram levar Guilherme até a rodoviária. O ônibus sairia às quatorze. Despediram-se quando o motorista pegou o bilhete. Bruno apertou forte a mão de Guilherme; Alda delicadamente o abraçou e, sussurrando em seu ouvido, disse:

- Obrigada.