tag:blogger.com,1999:blog-45852507533609053352024-03-13T18:39:28.487-03:00Mau ProsadorUma Prosa de Maus Modosβ λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.comBlogger88125tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-23592222896782894592015-04-20T16:52:00.001-03:002015-04-20T17:00:54.218-03:00Cruz dourada<div style="text-align: justify;">
Anselmo via esmaecer as cores da tarde. O rio corria numa placidez morna, refletindo as silhuetas das breves árvores que por sobre lhe caíam. A brisa corria abúlica, agitando com leve toque a vegetação do bosque. O rapaz quase dormitava recostado a um tronco, e suas mãos, mecanicamente giravam um pequeno talo em flor. Sorria naquele estágio de quase abandono da vigília, onde os sonhos se confundem com a realidade. Esperava uma vida longe dali, uma vida de encantos em que habitariam apenas ele e seu amor. E como sentia-se pleno, a ponto de quase extravasar, de quase entornar, banhando com um sentimento rutilante o mundo inteiro! Entretanto, seu mundo, por ora, não excedia os limites da Pavia. Intentava atravessar os Alpes, quem sabe visitar o Sacro Império, a França; quem sabe ir aos turcos, à Jerusalém - mas não, não pensou nos obstáculos, não pensou que... Um barulho! O jovem despertou - é ele quem se aproxima! - Levantou-se e quando já corria ao encontro de quem esperava, viu um homem. Estacou por um instante, confundido pela aparição de alguém por quem não esperava - alguém o teria descoberto? Aquele homem nada disse. Apenas limitou-se a desembainhar uma adaga e, com um golpe rápido, abriu uma fenda no pescoço de Anselmo. Uma catadupa sanguinolenta embebeu as vestes arminhas, tingindo em seguida o gramado quando o corpo jazeu ao chão. </div>
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Ser nomeado bispo da Pavia não foi mero acaso. Magno não tinha uma origem abastada, todavia, sua família sempre esteve relacionada aos duques de Milão. Não se sabe bem ao certo como seus ancestrais chegaram ao castelo dos Sforza. Sabe-se somente que eram cortesões que privavam de alguma intimidade de suas altezas. Desde cedo, Magno entendeu as regras do jogo político e passou a desejar algo além, fazendo o que fosse necessário. A vontade era maior que o talento e suas tentativas atabalhoadas redundavam em resultados canhestros. Tentou seduzir uma parente dos Sforza, moça bonita e voluntariosa, que riu-lhe na cara assim que conheceu suas intenções. De outra vez, chantageou um rico comerciante de Gênova, de passagem pela cidade, depois de vê-lo forçar uma das criadas do castelo a atender-lhe os desejos enquanto sua esposa dormia nos aposentos cedidos pelo príncipe. Desistiu quando percebeu que suas forças não bastavam para enfrentar o porte e a espada do tal comerciante. </div>
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Foi medíocre e estava prestes a sucumbir ao ostracismo palaciano quando o duque de Sforza o mandou chamar. O bispo da Pavia morrera depois de lutar muito com as dores atrozes de uma úlcera estomacal. Roma decidira por nomear alguém de uma família rival aos Sforza. O que talvez fosse motivo para guerra, diluiu-se na saída diplomática adotada: um bispo neutro, não vinculado a qualquer clã, assumiria o bispado e, escrevendo ao Papa, Sforza indicou Magno para o cargo. Os meandros da negociação são desconhecidos, pois a situação não representou um grande evento político da História milanesa. O fato é que, dentro de algumas semanas, Magno entrava na Pavia como o novo bispo.</div>
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No caminho para lá, sonhou grandezas, fez planos e esqueceu que jamais fora padre, que tinha sido inventado para tapar um pequeno buraco diplomático. Imaginou-se Papa, regendo toda a Cristandade, organizando Cruzadas, excomungando desafetos, adornando-se de ouro e relíquias no trono de São Pedro. Ao sair da carruagem, viu um jovem pajem na singela comitiva que o aguardava. Por um instante mirou o olhar cabisbaixo e sereno do rapaz imberbe, bem feito de corpo, não muito alto, de lábios finos e cabelos em caracóis. Sentiu algo estranho agravado ao jantar quando, à noite, reuniu-se aos padres subordinados, que conheciam a farsa do novo bispo, mas a tudo anuíam sem reclamar. O jovem lá estava... </div>
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Deitou-se sem conseguir dormir. Queimava e não sabia por quê. A imagem dele reaparecia incessantemente. Semanas se passaram sem que aquela impressão se desfizesse e, a cada vez que o pajem se aproximava, era um lenho a mais na fogueira. Houve, então, uma reação sensível ao pecado que aquilo representava; e não houve oração que afastasse seus pensamentos corrutos. O cinismo de uma fé aparente transmutou em crença sincera - afinal, Deus existia e tinha medo do Inferno. Porém, não lhe eram estranhos tudo o que se comentava sobre o que se passava no seio da Igreja: simonia, intrigas, assassinatos e... luxúria!</div>
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Resolveu chamar o rapaz em seu apartamento em segredo.</div>
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- Como é seu nome?</div>
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- Anselmo.</div>
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- Anselmo, dispa-se. - E, vendo o corpo nu, consumaram o ato. E o bispo queria mais e mais; não havia noite mais em que Anselmo não subisse secretamente ao quarto de Magno.Se aquele o fazia por obrigação, mera sobrevivência; se este tinha um medo genuíno das consequências que daí adviriam, é impossível saber. Ao cabo de dois ou três meses, Magno percebeu que não queria outro - Anselmo era seu preferido. Assim tornou-o seu protegido, dava-lhe presentes, deu-lhe também alguma instrução, livrava-o de certas situações e gerava desconfiança nos demais criados e padres. Certo dia, recebeu uma carta confusa do duque Sforza e Magno entendeu que estava prestes a perder o bispado. Sem meios, agora, sentiu-se sozinho e a única figura que lhe dava alento era Anselmo. E pela primeira vez sentiu que o amava. </div>
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- Anselmo, vamos fugir. - E prometeu-lhe o Paraíso - iremos aonde quiser, longe, bem longe daqui! Não posso perdê-lo! - Anselmo quedou-se feliz. Combinaram dia e hora, como tudo deveria ocorrer: no bosque, na estrada que seguia para Gênova. </div>
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Antes da hora acertada, Magno rezava genuflexo diante de um crucifixo de ouro na principal igreja da cidade. Pedia perdão incessantemente e estranhava a religiosidade repentina que o amor lhe despertara. Um mensageiro adentrou a nave e, interrompendo a meditação do bispo, entregou-lhe outra carta de Sforza: o príncipe o convocava à Roma! Sim, talvez perdesse o bispado, mas em vistas de coisas maiores; talvez se tornasse cardeal! Papa! Em meio ao torvelinho megalômano, olhou para a cruz dourada e lembrou-se de Anselmo.</div>
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- Agora não, agora não posso mais! - Mandou chamar um conhecido mercenário com celeridade e, entregando-lhe a cruz de ouro, disse: - tens já aqui o perdão do ato que irá cometer - benzeu-se e despediu aquele homem com a missão de ir procurar Anselmo no bosque.</div>
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Anselmo não sentiu a frigidez da água quando seu corpo foi atirado ao rio Ticino. Hoje é lá que ele repousa. </div>
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β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-9545430027733102722014-12-23T20:11:00.000-02:002014-12-23T20:11:38.006-02:00Alda<div style="text-align: justify;">
Havia terminado de temperar a carne e colocado uma linguiça no furo aberto no meio da peça, preparando-se para levá-la ao forno, quando ouviu palmas vindas do lado do portão. Depositou o tabuleiro na mesa, limpou as mãos no pano e foi até a porta da frente.</div>
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<br /></div>
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- Guilherme! Que bom vê-lo novamente, primo! - dizia ao homem que batia palmas diante daquela casinhola de vila no bairro do Méier. </div>
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- Alda! - exclamou abraçando a moça. </div>
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- Entre, entre! Vou assar uma carne para o almoço! Fez boa viagem?</div>
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- Ah, cansativa. Cheguei de Cantagalo há umas duas horas, e como não conheço essa parte do subúrbio, tomei um carro de praça, mas me enrolei todo com o endereço e, por fim, o motorista me deu uma facada! Sacripanta! - Guilherme depositou a maleta que trazia no sofá e tirou o chapéu: - faz muito calor aqui! E Bruno?</div>
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- Logo chega. Quer um suco? Mamãe deixou umas graviolas aqui ontem...</div>
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- Não, não gosto de suco de graviola. Fico satisfeito com um copo d'água. E a tia, como está?</div>
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- Muito bem! Ninguém diz que ela se avizinha dos setenta. Venha até a cozinha, tenho que terminar o almoço e, enquanto isso, vamos conversando. Fica até quando?</div>
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- Domingo. Tenho que estar em Barra Mansa na segunda-feira. Sabe como é vida de caixeiro.</div>
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<br /></div>
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Alda trajava um vestido florido, leve como um dente-de-leão, pronta a desfazer-se ao menor sopro. Seu corpo inteiro sorria ao abrir dos lábios finos que exibiam uma fileira de pétalas brancas. O perfume doce embriagava a pele, ou caule, daquele vivo girassol. Onde o amor cantasse, parecia, para lá se voltava. Guilherme não deixou de notar tal aprumo na prima que há muito não via. </div>
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<br /></div>
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- A casa é boa.</div>
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- Não é muito grande, mas é confortável. Temos o quarto onde eu e Bruno dormimos e o quarto de hóspedes. Se vier o bebê, lá será o cantinho dele.</div>
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- Ora, não sabia que estava grávida! - exclamou o rapaz.</div>
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- Não, não estou. Mas pretendo. Um dia. Bruno não gosta muito da ideia, diz que vai tirar nossa liberdade. Bobagem, eu ainda vou convencê-lo. Tenho certeza que ficará todo derretido quando vir a carinha do nosso filho. Por enquanto, não temos condições. Ah, e por falar nele...</div>
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<br /></div>
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Um homem alto e moreno entrava fazendo estrondo com a porta de vidro. Trazia os antebraços despidos e a camisa aberta no peito: - pombas, faz calor!</div>
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<br /></div>
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- Bruno, lembra do primo Guilherme?</div>
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- E aí, tudo bem? - apertou com força a mão do rapaz, quase a sacudi-lo todo - Alda, eu vou tomar um banho. </div>
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- Bruno anda meio nervoso com o escritório. Ele é contador, você sabe, e parece que andam tirando o couro dele. - dizia Alda que tentava emendar o marido. </div>
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<br /></div>
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Durante o almoço, servido na mesa de mogno da sala, Bruno devorava com apetite a carne: - filha, traz o sal, você não temperou direito! Hum, suco de quê? Não gosto de graviola, Alda! Sua mãe insiste em trazer isso lá do quintal dela! Tem cerveja? Pegue para mim! - no mais falava sobre o escritório, política e sobre as últimas partidas do time predileto. Guilherme conversava, ria por vezes e aumentava a voz para acompanhar, com simpatia, os arroubos do anfitrião. Todavia, não deixava de notar que ele mal se dirigia à esposa e que Alda, mesmo sorrindo, tinha o olhar apagado. </div>
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<br /></div>
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- Alda, eu vou tirar um cochilo. - Bruno levantou ao terminar o almoço - Não, tomo café mais tarde, não quero tirar o gosto da comida. - disse após a esposa colocar xícaras na mesa. Ele entrou no quarto, acendeu um cigarro, e ficou só de calções. Pela porta entreaberta, via-se seu corpo de bruços esparramado na cama. Roncava alto. </div>
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<br /></div>
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Naquela noite, Guilherme acordou encharcado. A temperatura, que durante a tarde aumentou, parecia não ter amainado, e somente uma brisa tépida entrava pela janela escancarada. Olhou o relógio, eram duas da madrugada. Levantou-se e chegou à janela para distrair-se observando o sono da vila, porquanto o seu mesmo havia perdido. Depois pensou em ir tomar água. Ao pôr o pé na sala, ouviu o soluçar de alguém que chorava. Aproximou-se do umbral da cozinha e viu Alda sentada de costas.</div>
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<br /></div>
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- Alda? - antes de chamar por ela, o rapaz havia notado que o tecido suave e transparente da camisola, tocava a pele leitosa e delicada daquele corpo fornido. As finas alças delineavam as curvas dos ombros e vinham cair como filetes onde os seios se insinuavam. Placas rubiáceas davam outros tons ao colo, fazendo parecer um quadro da alvorada. Os cabelos castanhos caíam-lhe por sobre a face, que apoiava nas costas da mão direita do bracinho gordo, cujo cotovelo recostava sobre a mesa. </div>
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- Guilherme, desculpe, eu acordei você?</div>
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- Não, não. O que houve? </div>
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- Ah, Guilherme... - e a moça desfiou o rosário. - No começo, ele me amava, eu acho, mas agora não me procura mais! Passou a voltar tarde do escritório e se eu pergunto onde estava, ele quase bate em mim! Chega bêbado, a roupa cheirando a perfume barato! Já disseram que ele tem uma amante lá no Grajaú! Uma amante, Guilherme! Você viu hoje? Ele mal falou comigo. Acordou depois daquele cochilo, saiu novamente e voltou à meia-noite! O que faço, Guilherme, o que faço? - Alda, em prantos, achegou-se a ele. Guilherme a beijou no rosto sem dizer nada. Ela o olhou: - quero beijar as covinhas do seu rosto quando sorri. - e quando ele concluiu a frase, seus corpos se encontraram com ardor. O rapaz desnudou os seios de Alda e, segurando-os, virou-a para deitar seu tronco na mesa. Possuiu-a com desejo. Os gemidos ecoaram na noite quente da casinhola de subúrbio. E imediatamente acorreu à memória de Alda uma frase que leu em um conto de jornal: ''as carnes assaram no suor corruto''. </div>
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<br /></div>
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***</div>
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<br /></div>
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No domingo, Alda e Bruno foram levar Guilherme até a rodoviária. O ônibus sairia às quatorze. Despediram-se quando o motorista pegou o bilhete. Bruno apertou forte a mão de Guilherme; Alda delicadamente o abraçou e, sussurrando em seu ouvido, disse:</div>
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<br /></div>
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- Obrigada. </div>
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<br /></div>
β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-5804322169933021402013-10-12T20:59:00.003-03:002013-10-12T21:05:47.214-03:00Mais uma entrevista com uma socialite<div style="text-align: justify;">
Entrevistador: - estamos aqui com ela, que sempre frequenta nosso programa, e está inaugurando sua cobertura em Nova York: Lucinha Lafourd!</div>
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<br />
Socialite: - olá, pessoal, tudo bem? É maravilhoso estar com vocês novamente.<br />
<br /></div>
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Entrevistador: - então nossa querida socialite se mudou para Nova York? Vai fazer falta no Brasil...</div>
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<br /></div>
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Socialite: - não, não deixarei o Brasil. Eu comprei essa cobertura porque tem uma vista linda para o Central Park, daqui de cima consigo ver a cidade inteirinha. Mas jamais deixaria o Brasil. O Brasil é maravilhoso, gente! </div>
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<br /></div>
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Entrevistador: - então foi um mimo que você deu a si mesma...</div>
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<br /></div>
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Socialite: - ai, gente, não queria falar, não, mas foi o John. O John, meu novo namorado, me deu de presente, sabe? Eu venho pra cá, tomo meu champanhe vendo essa vista linda... Não é maravilhoso, gente?<br />
<br /></div>
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Entrevistador: - diz pra gente, por que você está toda trabalhada no verde e amarelo?</div>
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<br /></div>
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Socialite: - ah, eu estou acompanhando essa onda de protestos e torcendo muito pelo nosso povo, que é um povo sofrido. Eu acho que chegou um momento que as pessoas cansaram de corrupção, de desigualdades sociais, de falta de saúde, de educação e resolveram ir para a rua reclamar seus direitos. É isso aí, dou meio apoio daqui de Nova York.</div>
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<br /></div>
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Entrevistador: - estou vendo, comprou bandeirinhas, boné, camiseta...</div>
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<br /></div>
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Socialite: - e estou fazendo o maior sucesso aqui. Eu e uma amiga montamos uma grife que só vende esses itens. E você pode entrar na nossa página e customizar. Lá tem camisetas, broches, bonés, bolsas, anéis tudo com essa temática de hoje em dia. Aí a pessoa entra e pede, por exemplo, uma camiseta com a frase ''vem pra rua'' e a gente manda entregar onde for. Meus amigos daqui adoraram a ideia, vários deles estão comprando, porque eu digo sempre: gente, vamos torcer pelo Brasil.</div>
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<br /></div>
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Entrevistador: - e como as pessoas daqui estão encarando esse movimento que tomou conta do nosso país?</div>
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<br /></div>
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Socialite: - todo mundo acha maravilhoso. Eu fico feliz porque no Brasil nunca houve isso, nunca houve essa revolução. Aquele povo que não trabalhava, que não exigia seus direitos, não existe mais. Está na hora dessa gente mostrar que tem valor! Outro dia, fui com John em um jantar de negócios que ele tinha com uns alemães. Eles me adoraram e perguntaram mil coisas sobre o Brasil. E nós, formadores de opinião, temos a obrigação de quebrar preconceitos, entendeu? Aproveitei e fiz a propaganda da nossa lojinha virtual, que ninguém é de ferro. Mas, gente, sério, não é porque eu tenho uma situação financeira um pouco melhor que não vou fazer parte de tudo isso que está acontecendo.</div>
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Entrevistador: - e quando você volta para o Brasil?</div>
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<br /></div>
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Socialite: - deixa passar um pouco toda essa confusão, vou curtir mais a Big Apple...</div>
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<br /></div>
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Entrevistador: - você quer deixar uma mensagem para nosso expectador que está no Brasil?</div>
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<br /></div>
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Socialite: - quero dizer que violência não está com nada, que as pessoas podem protestar, mas pacificamente, sem vandalismo. Eu fico triste quando vejo a polícia tendo que conter aqueles manifestantes mais exaltados, sabe? Mas é isso aí, vamos brindar aqui pelo futuro do nosso povo, com esse champanhe magnífico, desejando tudo de melhor. Porque, gente, o povo brasileiro é maravilhoso!<br />
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<a href="http://mauprosador.blogspot.com.br/2013/01/nova-entrevista-com-uma-socialite.html">CONFIRA AQUI A ÚLTIMA ENTREVISTA</a></div>
β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-7726958451342054482013-10-03T13:23:00.000-03:002013-10-03T13:29:24.122-03:00Cotovelo & Prazer<div style="text-align: justify;">
Eis que surge uma nova tese. E que sirva de refrigério ao hálito tépido expelido pela Academia; o comprovamos empiricamente: cotovelos podem ser altamente libidinosos. Um toque basta. Ora, desde que a licença dominou os povos que um pulso deixou de ser objeto de desejo. Pois bem, também um cotovelo. Não, não, não que alguém vá ficar tremendamente comovido com as vistas de um. Porém, a título de prova, farei um relato: Camilinha tinha dezesseis anos e jamais houvera despertado para os amores desta vida. Mesmo que suas amigas atafulhassem seus ouvidos com relatos de descobertas feitas atrás das portas dos banheiros escolares. Estava alheia e sequer possuía curiosidade suficiente para tais movimentos. Ia de casa ao colégio, do colégio para casa. Lia revistas sobre o astro preferido e enfeitava a cama com bonecas e ursinhos. Certo dia, como o ônibus que tomara estivesse cheio, parou de pé ao lado de um rapaz, este sim, sentado. Ergueu os braços para se segurar e projetou o corpo um pouco adiante. O rapaz estava com o cotovelo apoiado no braço do assento e encontrou-se, por engano, com as intimidades de Camilinha. O balanço da condução e o tanto de passageiros que se esforçavam naquele aperto por sair, forcejavam ainda mais o toque. Foi quando ela sentiu algo diferente e baixou a cabeça para ver a quem pertencia o cotovelo: um rapaz belo, distraído, sonolento; Camilinha não fez caso e suavemente continuou o jogo de empurra. O nó da articulação pressionava o sexo fazendo-o gotejar. A menina suspirou, só não imaginou nada. Apenas entregou-se ao balanço do corpo. A respiração intensificou-se e seu arfar produzia ruídos leves. Veio-lhe a descoberta. Camilinha saltou se sentido suja, e rindo da situação. Camilinha despertou enfim a puberdade e pensou em duas pessoas sentadas, dividindo o mesmo banco, quando inopinadamente os cotovelos se esbarram: a pele, tecido elástico, afunda e adere. Um contato corpóreo entre seres mutuamente desconhecidos. E basta um instante para que estejam ligados, numa troca despropositada. Ali se dá um encontro e margem a mil pensamentos, ou a nenhum, apenas à sensibilidade e o efeito de um beijo, de um abraço, de um aperto, de um arrepio. Camilinha nunca escondeu os pulsos, os ombros e os tornozelos. Ela percebeu, entretanto, o que suas amigas no banheiro jamais perceberiam: um toque responde por mil sensações e, convenhamos, cotovelos são bem persuasivos! </div>
<br />β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-51362349672235634492013-09-09T11:33:00.001-03:002013-09-09T20:06:40.331-03:00Eu Matei Roderick D. <div style="text-align: justify;">
É difícil admitir, mas ele era meu irmão. Saiu aos vinte e um anos de casa e sumiu. Ficamos sem saber o paradeiro dele por uns três anos, até que, passando diante de uma banca de jornal, vi seu rosto estampado em uma publicação pornográfica. Imagine o tamanho do meu aturdimento ao vê-lo naquela revista. Tanto tempo sem notícias para reencontrá-lo assim, sorridente, de capa, seminu e abraçado a uma mulher. O título que trazia era infame e o nome, bem, o nome não era mais aquele, era Roderick D.: descrito como um elemento viril e belo; exposto, entretanto, feito carne, trespassada por um gancho na vitrine de um açougue.</div>
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Levei a revista para casa e assisti o filme do encarte: Roderick coadjuvava a maior parte das cenas, emprestando seu nome, quase consagrado, para vender uma quantidade maior de publicações do gênero. Era estranho, muito estranho, ver meu irmão daquela maneira. Não pensei tanto na vergonha que causaria aos meus pais, todavia no que levava uma pessoa a dispor de seu corpo para o consumo geral, tornando públicas suas intimidades, suas reações, seus desejos, para que outros gozassem por ela. Seria o dinheiro? Nunca lhe faltou nada! Não poderia ser por necessidade, oras! O que o levaria a deixar sua família para ganhar a vida desta maneira? Não pude responder. Roderick continuava lá, gemendo e trincando os dentes, para inundar repetidamente o corpo de suas parceiras com líquido grosso e quente.</div>
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Chorei. E mais do que isso: estive perturbado por uma semana. Concluí que estávamos todos doentes: eu, meus pais, meu irmão, aquelas mulheres e seus consumidores. Chorei e tive raiva. Meu pai e minha mãe não mereciam o desgosto de ver o filho, constantemente rememorado e sentido, transformado agora em... Em... Roderick D! Passei, então, a adquirir tudo o que dissesse respeito a ele: filmes e revistas no intuito de descobrir seu paradeiro. Foi quando encontrei o telefone de uma produtora e lá me deram sua direção: estava em São Paulo. Pedi o carro a meu pai e viajei por mais ou menos seis horas. Fui achar seu endereço na região central da cidade; num trecho conhecido por ser reduto de viciados e bandidos de toda espécie. Ali havia acomodações das mais baratas. Parei diante de um prédio antigo, geminado a um hotel, cuja entrada ladeava uma loja de ferragens. O portão estava só encostado, e após atravessar um longo corredor, subi as escadas até o terceiro andar. Bati na porta, ele atendeu. Passado o instante de surpresa, abraçou-me e pediu que entrasse. </div>
<div style="text-align: justify;">
-Como me achou? - Ele perguntou.</div>
<div style="text-align: justify;">
-Numa revista...</div>
<div style="text-align: justify;">
-Eu me refiro ao endereço...</div>
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-Por que você sumiu?</div>
<div style="text-align: justify;">
-Olha só, caso tenha vindo para me admoestar e convencer a voltar para casa, desista! Não vou voltar!</div>
<div style="text-align: justify;">
-E você acha que isso é vida?</div>
<div style="text-align: justify;">
O apartamento era de quarto e sala. Ali moravam ele e mais três. Os cômodos estavam bagunçados e cheiravam mal. Muita louça na pia; cinzas de cigarro, pacotes, garrafas, roupas molhadas, tudo espalhado. </div>
<div style="text-align: justify;">
-O papai não vivia reclamando que eu não arranjava emprego? Pois bem, arranjei! E agora ganho dinheiro, maninho, dinheiro fácil! Fora que me divirto a beça! - Disse acendendo um cigarro - posso oferecer alguma coisa ou ainda continua careta? </div>
<div style="text-align: justify;">
-Fa...</div>
<div style="text-align: justify;">
-Não, não, não! Aqui eu sou Roderick, entendeu? </div>
<div style="text-align: justify;">
-E continua sendo meu irmão?</div>
<div style="text-align: justify;">
-Claro! E se você quiser, falo com uns conhecidos meus e coloco você em alguma cenas, que tal? Atualmente estou tirando uns três mil por cada uma. Fiquei famoso, reconhecido e agora as produtoras me disputam, sabe? Você não precisa voltar para aquela vida. E aí, o que me diz?</div>
<div style="text-align: justify;">
-Ficou louco? Eu vim somente saber de você...</div>
<div style="text-align: justify;">
-Melhor não falar nada para o papai e para mamãe. Diz que me encontrou, que estou bem, que estou trabalhando em um escritório. Ninguém quer matar os velhos do coração!</div>
<div style="text-align: justify;">
-Não quer saber como eles estão, como ficaram após sua partida? Não passam um dia sem falar em você e eu já vi mamãe chorando várias vezes olhando uma fotografia sua...</div>
<div style="text-align: justify;">
-Hum... Eu lamento... Bem, está chegando a hora da minha apresentação, tenho que tomar banho...</div>
<div style="text-align: justify;">
-Apresentação?</div>
<div style="text-align: justify;">
-Sim, faço apresentações em casas noturnas para complementar a renda e, às vezes, saio com as clientes.</div>
<div style="text-align: justify;">
Roderick, além de ator, fazia apresentações onde tirava a roupa e servia de michê. Atendia todo o tipo de público: mulheres solteiras ou casadas, sozinhas ou acompanhadas de seus maridos; homens jovens e velhos. Cobrava duzentos pelo serviço de uma hora - gozando no final, está tudo certo! É só fechar os olhos e mandar ver!- Disse ele cinicamente. De verdade, não reconheci meu irmão. Esgueirando-se pelos buracos da noite, privando com gente torpe e hipócrita, míseros arremedos de uma sociedade enfermiça.</div>
<div style="text-align: justify;">
-Fique aí. Pode dormir no meu colchonete. E não se importe se o pessoal voltar, são gente boa. Hoje não tenho hora. </div>
<div style="text-align: justify;">
Não dormi. Passei a madrugada pensando em tudo aquilo. Andei de um lado a outro. Vi mais publicações, mais vídeos dele onde contracenava com mulheres, homens, travestis, a dois ou em grupo; cenas onde havia violência, escatologia e, sobretudo, a profanação do próprio corpo. Interroguei-me enfim: isto é liberdade? Então descobri nas gavetas de uma pequena cômoda, sacos onde havia todo o tipo de entorpecentes e seringas. Era naquilo que meu irmão investia seus ganhos. </div>
<div style="text-align: justify;">
Eu juro, foi a decisão mais difícil que tomei. Sabia que jamais apagaria aquilo dele, mesmo que amanhã seu arrependimento fosse maior. Reuni coragem e me convenci de que aquela era a única saída, demonstração original de afeto: levaria paz àquele espírito e interromperia definitivamente sua marcha de leviandade cega!</div>
<div style="text-align: justify;">
Peguei os comprimidos e amassei junto com um pó branco, joguei tudo dentro de uma garrafa com uísque e misturei calmantes. Quando ele chegou, por volta das nove da manhã, ofereci a ele a bebida, afirmando que havia mudado de ideia e que iria ficar. Contente, ele pegou o copo, sem pensar muito e brindamos. </div>
<div style="text-align: justify;">
-Finalmente meu irmãozinho deixou de ser careta! - Deu uma talagada. Insisti para que tomasse mais. E depois de três copos, resolveu que iria dormir. Mas era tarde. Caiu no soalho e começou, em delírios, a sufocar. Convulsionou e expeliu uma baba branca. Dentro de alguns minutos, parou de se debater - estava morto. Desci, peguei o carro e voltei para casa. Ele seria mais um que não aguentou aquela vida e se matou. </div>
<div style="text-align: justify;">
Mamãe ficou feliz em saber que meu irmão estava casado e empregado em um escritório e ansiosa por vê-lo no Natal. </div>
<div style="text-align: justify;">
Eu, no entanto, repito para mim mesmo diariamente: eu matei Roderick D. </div>
β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-42649612314855724802013-05-31T19:52:00.001-03:002013-05-31T22:43:09.338-03:00Aqueles Olhos (poesia em prosa)<div style="text-align: justify;">
Aqueles olhos perderam toda a humanidade. Sentado ali, em um beco, na porta cerrada de um prédio, de fronte a um restaurante, silenciava. Não pedia esmolas; sequer comida. Apenas olhava, olhava - olhava o vazio; o vazio das gentes que passavam - indiferentes, inconsequentes, distraídas, ocupadas. Rosto pobre, mas olhos ricos, de filosofia, talvez, de saudosismo e de esperança. Antes tinha sede de tornar-se algo, até ficar invisível. Ainda que fosse uma cadeira onde o puxariam, acomodariam; pode ser que o elogiassem e se regozijassem de estar. Ou um vaso contendo terra, grande, ornamentado, frondoso. Entretanto, nem mais os vasos gozavam de notabilidade. Eram tão-somente passagem - tal como o beco, tal como ele.</div>
<div style="text-align: justify;">
Os olhos vívidos, porém, no corpo agonizante, percebiam que ora vinha um homem, ora ia uma mulher. Não! Ora ia um pai, ora vinha uma esposa; ora vinham o chefe e a diretora. Sentavam à mesa, almoçavam, riam, falavam mal do trabalho, reclamavam de cansaço. O cheiro do perfume se misturava ao da carne assada; ao do cigarro posto fora, do vinho nos cacos sobre as pedras do chão; do cafezinho, dos dois beijinhos, da despedida, da ausência. E eis que lá foram seu pai e sua mãe. Seus irmãos, quem sabe? Amigos - que jamais se dignaram a retribuir aqueles olhos.</div>
<div style="text-align: justify;">
A luz da tarde caiu pouco e pouco. A luz dos postes e dos estabelecimentos acendeu. O restaurante desceu as portas. Os transeuntes tornaram um ou dois. Depois o calar da noite. Nada mais ali. Permaneceu, contudo, de cócoras, encolhido e leve. Descalço, sentiu entre os dedos a urina quente escorrer-lhe, molhando o calção ensebado. Não mais se constrangia. Era como se um animal o fizesse - as pessoas costumam dar de ombros. Deu também; deu de si, para si: aliviar-se era um prazer. Último dos quais possuiu algum dia. </div>
<div style="text-align: justify;">
Veio a chuva, o frio, lavando-lhe o corpo. Sorriu e fechou os olhos. Eis que Deus o abençoa, o benze - e o chama, enfim. E antes que viesse a aurora, um homem louro, trajado de um casaco de couro preto, pôs as mãos em sua face, nos olhos que insistiam em ver, e pronunciou: - bem-aventurada alma da rua, hoje o Paraíso é teu, apenas teu!</div>
<div style="text-align: justify;">
Aqueles olhos indigentes se descarnaram... </div>
β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-76249120436488652132013-01-30T20:04:00.001-02:002013-01-30T20:04:36.001-02:00saLdades eternas<div style="text-align: justify;">
Bete era uma ex-atriz; malograda, diga-se de passagem. Não passou de apresentações de várzea e o máximo a que chegou foi a encenação em uma quermesse. Porém, nutria a fantasia de que era, ou seria em qualquer dia, algo reconhecida, pois mantinha viva a chama poética correndo em suas veias dramáticas. Quando afirmava isso, estava já a tal ponto alta que ninguém lhe levava a sério. E não era de se levar. Bebia um vinho, uma cervejinha, dançava em seus tamanquinhos uma melodia mais agitada e recitava Pessoa. Depois alguém a carregava para casa. </div>
<div style="text-align: justify;">
Feiosa, estrábica, roliça, mulher de meia-idade, aparecia sempre com roupas impróprias: uma sainha mais curta, um vestido mais apertadinho; somando às unhas vermelhas, à meia arrastão, aos beiços roxos de batom. Tingia os cabelos e, por fim, nada combinava. Gostava de jovens, jovenzinhos, sabe? Podia ter uns vinte, uns trinta; mas velho acima dos sessenta? Jamais! Queria roçar as coxas entre as pernas de um pangaré, sentir uns braços fortes lhe agarrando, uma respirada mais contundente em seu perfume barato, seus seios esmagando-se em peito cabeludo. Entretanto, ninguém queria deitar-se com Bete.</div>
<div style="text-align: justify;">
Possuía uns amigos desvairados, amigos de bar. Amigos de palavreado frouxo, baixo; amigos sem amarras, sem pudores - personagens decadentes que, por discutirem política ou qualquer filosofia torta, odiarem religião, xingarem o pai e a mãe, terem um filho em cada casa; descobrirem autores que ninguém lia, no olhar de Bete eram seres arrojados, embora não fossem além de bêbados enfadonhos.</div>
<div style="text-align: justify;">
Nas festas, Bete dava vexame. Não que se embriagasse. Catava os doces, pedaços de bolo, arranjos da mesa, enfiava tudo na bolsa; e no velório? Bem, a viram fazendo sinal para um carro carregando uma coroa de flores. Por isso todos falavam dela. Sorriam risos mascarados, e falavam dela. Tanto que pararam de convidá-la, fosse para o que fosse. E ficava ela, no quarto e sala alugado cheirando a mofo, sobrevivendo do que não fora...</div>
<div style="text-align: justify;">
Três semanas se passaram sem que vissem Bete novamente. A síndica foi cobrar as taxas atrasadas. Bateu, bateu, esmurrou a porta - e nada... Nada! Bete havia sentado em frente a uma penteadeira, cheia de fotografias presas aqui e lá. Lembravam o passado, de quando era jovem, de quando era... Sei lá. Só via agora uma boneca triste, desengonçada, de quem todos recordavam com graça, a quem nunca um homem quis se unir. Esticou a face e concluiu: ''estou velha e não vi o tempo passar''. Esvaziou uma cartela de calmantes e virou um copo de conhaque ordinário. Deitou-se na cama desarrumada com suas fotografias...</div>
<div style="text-align: justify;">
Três semanas se passaram e encontraram apenas um corpo que dormitava. Na capelinha, somente a síndica compareceu. Uma velinha de sete dias brilhava e na parede, uma coroa onde estava escrito: ''saLdades eternas''.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-76672888123045071792013-01-21T21:15:00.001-02:002013-01-21T21:22:50.244-02:00Nova Entrevista com uma SocialiteEntrevistador: - Estamos aqui, no Copacabana Palace, na festa de Ano-Novo com essa figura ilustre da sociedade carioca...<br />
<br />
Socialite: - Obrigada, é maravilhoso estar com vocês novamente!<br />
<br />
Entrevistador: - A festa está linda e você, mais ainda!<br />
<br />
Socialite: - Gostaram? A festa tem o tema da prosperidade! Por isso fiz questão que, além do branco, tivessem muitas coisinhas douradas.<br />
<br />
Entrevistador: - Como esse seu vestido? Dá uma voltinha para a gente ver...<br />
<br />
Socialite: - Não é maravilhoso? Todo bordado com fios de ouro. É de uma grife italiana, feito sob medida! Aí eu decidi colocar anéis, braceletes, colar, brincos, tudo de ouro também para combinar!<br />
<br />
Entrevistador: - Assim, o ano vai ser mesmo de muita fartura, de muita prosperidade...<br />
<br />
Socialite: - E de paz, não é, gente? Acho que o Brasil está precisando de paz. E não só o Brasil como o mundo também!<br />
<br />
Entrevistador: - O próximo ano tem que ser bom, porque esse não foi muito bom para você, né?<br />
<br />
Socialite: - É verdade! Tive que fechar duas ongs, me divorciei do meu terceiro marido...<br />
<br />
Entrevistador: - Mas foi uma separação amigável?<br />
<br />
Socialite: - Que nada! Imagina que ele queria me dar uma pensão de dezessete mil reais! Meus advogados entraram com uma ação e pediram trinta. Ele é empreiteiro, tira no mínimo quinhentos por mês e quer me dar só dezessete mil? Meus dois outros ex me dão mais, por que ele não vai dar? Eu tenho um filho com ele, você sabe, e por causa dessa sociedade machista, eu é que vou criar, entendeu? E a responsabilidade dele como pai?<br />
<br />
Entrevistador: - Ah, o ano que vem será melhor!<br />
<br />
Socialite: - Com certeza! Estou aqui, tomando champanhe, nessa noite linda, para festejar esse novo ano que promete!<br />
<br />
Entrevistador: - E quais são seus planos?<br />
<br />
Socialite: - Recebi um convite para posar nua pela terceira vez. Pela terceira vez serei rainha de bateria. E quero abrir outra ong voltada para o tratamento de pessoas na melhor idade.<br />
<br />
Entrevistador: - Tudo três?<br />
<br />
Socialite: - Tudo três! Meu número da sorte nesse ano!<br />
<br />
Entrevistador: - E que mensagem você quer deixar para os nossos telespectadores?<br />
<br />
Socialite: - Eu estou aqui, na grife, no champanhe, toda trabalhada no ouro para desejar a todos um ano maravilhoso, sem violência e sem desigualdade social! Fiquem com Deus!<br />
________________<br />
<br />
<a href="http://mauprosador.blogspot.com.br/2012/07/outra-entrevista-com-uma-socialite.html">VEJA AQUI A SEGUNDA ENTREVISTA</a>β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-67311804277294347382013-01-16T13:59:00.000-02:002013-01-16T13:59:29.834-02:00Negrinho do Sinal<div style="text-align: justify;">
O negrinho do sinal é compositor. ''Mas como?'' - perguntou a minha esposa; ué, estou dizendo, ele é compositor! - ''Ah, sei, esse negrinho é compositor? E compõe o quê?'' - Ópera, é acho que é isso sim. Noutro dia ele cantarolava um trecho enquanto distribuía os saquinhos de bala pelos retrovisores. - ''Ópera? Sei, e como ele compôs essa ópera se ele não tem instrumentos, não sabe tocar e provavelmente jamais ouviu uma ópera?'' - E artistas lá precisam disso? O talento nasce com eles, precisam apenas moldá-lo, burilá-lo, entendeu? - ''O garoto nem deve saber ler, vai compor algo tão difícil quanto uma ópera? Ah, faça-me o favor!'' - Você não comentava ontem sobre uma garotinha alemã que compôs sua própria sinfonia aos seis anos? Ele deve ser pouco só mais velho. - ''Mas a garota tinha formação, estudo, um meio bom, era alemã!'' - Olha o menino lá, o sinal fechou, vem ele... Aí, passou, ouviu? Ele está sempre cantarolando. - ''E como sabe que isso é ópera? Isso pode ser mais uma dessas músicas malucas!'' - Eu conversei com ele, oras - minha esposa riu alto.</div>
<div style="text-align: justify;">
Certa vez, meu carro enguiçou ali. Enquanto eu esperava o guincho, o menino franzino, descalço e usando uma bermudinha azul, veio até mim. Tentou vender as balinhas, dessas que ele vende no sinal. Não quis porque não gosto de balas. Porém, isso foi pretexto para entabularmos uma conversa. Quando ouviu a música que tocava no meu rádio, perguntou: - é Mozart? - Não preciso dizer que fiquei surpreso - você conhece Mozart? - Creio, aliás, que nossa conversa começou a partir daí. Respondeu que sim, que adorava. A mãe dele trabalhou durante algum tempo fazendo faxina na casa de um velho compositor e o levava junto, pois era bem pequeno. O velho ouvia muito a Mozart, Beethoven, Chopin e as principais óperas. Foi assim que tomou gosto e aprendeu um pouquinho sobre música, instrumentos, porque o velho apreciava muito a companhia do jovenzinho, porquanto não tinha família. Morreu, parece, no ano passado. A mãe ficou desempregada e ele precisou vir para a rua. Foi aqui, entre o abrir e fechar do sinal que ele compôs a ópera! Chama-se<i> O Viaduto. </i>Começava com dois homens sentados nesses jardins, esses que ficam em meio as ruas, debaixo de um viaduto. São dois vendedores e cantam<i> ''os jardins improváveis da vida florescem no asfalto, oferecendo descanso no oásis do deserto de piche''. </i>Acho que é isso.</div>
<div style="text-align: justify;">
- Então quer dizer que esse negrinho tem refinamento suficiente para compor uma ópera? Sinceramente, prefiro Beethoven! - Retrucou minha esposa descrente. - minha querida - disse eu - você nunca gostou de Beethoven, de ópera ou coisas afins, como pode avaliar a capacidade dele? - E ela, gritando no banco do carona: ''- o quê? Está insinuando que eu sou uma mulher inculta? Não é possível que...''</div>
<div style="text-align: justify;">
Ela iria continuar, contudo o sinal abriu. Dei a partida e a discussão se encerrou.</div>
β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-67912894939857569062012-12-30T13:03:00.000-02:002012-12-30T18:57:56.139-02:00Ônibus<div style="text-align: justify;">
A estrada que ligava um município ao outro estava escura. Somente o brilho dos faróis lançava luz um pouco adiante, mais os dos demais carros que vinham pela pista contrária. O aperto no peito, quase esmagando o coração, forçando as lágrimas nos olhos, faziam-no conduzir raivosamente o ônibus por aquelas vias mal iluminadas. Abaixou um tanto a cabeça, respirou fundo - e tudo se apagou inopinadamente... Quando tornou a si, sentia uma dor terrificante pelo corpo: dor de costelas quebradas, dor de ferro atravessando a coxa, dor de pernas partidas, de ventre fendido, de sangue esvaindo - dor de morte...</div>
<div style="text-align: justify;">
Havia três anos que estava na companhia quando Josival entrou: caboclo mediano, neto de pernambucanos emigrados, era cheio da manha risonha e simples; chegou conquistando amigos, próprio que lhe era a facilidade de levar a todos o conforto de uma nova amizade. Tomou a função de trocador. No início não se bicaram. Josival não logrou entrar naquele peito endurecido e taciturno que odiava aquele trabalho, como só alguém que faz por pura necessidade e por ter esposa e uma linda menininha para sustentar.Tanto que respondia atravessado aos passageiros, não tinha paciência com os velhos que se demoravam a subir na condução e vivia se queixando dos horários de trabalho - se cedo, se tarde, se sábado ou domingo. Mas retinha para si o queixume; aos outros apenas azedume, de maneira que nenhum colega mexia com ele.</div>
<div style="text-align: justify;">
Josival, no terceiro mês, passou a ser um companheiro de jornada - bem ou mal -, trocando notas e moedas no mesmo ônibus. Ah, coube a ele a tarefa de abrir uma fresta ali para que se pudesse ao menos vislumbrar algo no interior. Aos poucos, entretanto, aos poucos. Falava muito, ainda que não obtivesse resposta, ria sozinho, debochava, e como adorava uma dancinha aconchegante acompanhada da boa aguardente, convidou-o para ir, dia desses, no bar perto de sua casa. </div>
<div style="text-align: justify;">
Foi ali que o rapazote, cinco anos mais moço, passou a ser visto com olhos diferentes - alegre, desinteressado, não muito bonito, é verdade, porém conquistador. Saltaram dos cumprimentos às conversas de bar, às visitas mútuas, ao riso frouxo. Tratavam-se na intimidade fazendo piadinhas infames, parecendo dois garotos, emprestavam dinheiro na hora do aperto, consolavam-se.</div>
<div style="text-align: justify;">
''Ah, Josival, o seu sorriso, a colônia barata, o peitilho aberto com o crucifixo reluzente...''- pegou-se pensando assim. Havia mudado algo em seu interior. Não sabia bem o que era, todavia. Afastou as imagens... Aquelas imagens... Não, não, como poderia? Deitou-se e abraçou sua esposa... Jo-si-val, continuou a reverberar enquanto não dormia...</div>
<div style="text-align: justify;">
Josival não mais dividiria o mesmo ônibus, foi substituído por outro naquele horário. Não se encontravam mais, os horários não coadunavam - só ficou uma saudadezinha inexplicável e a raiva voltou. Sentia-se estranho, ainda mais quando falavam nele: Josival fez outros amigos, novos amigos... </div>
<div style="text-align: justify;">
Meses correram com ambos afastados. Aquilo amainou dentro de si e cria já esquecido até que, certa noite, parou no ponto final e ele estava lá, palestrando animadamente com o despachante. Disse que ia embora e pediu uma carona até a garagem. Por fim, Josival decidiu-se a ficar mais um pouco, ensombrecendo o breve sorriso no rosto do antigo companheiro. Irritado, fechou a porta e deu a partida. Sim, aquilo existia adormecido embaixo de toda a fuligem, como brasa quieta, ao menor sopro reavivada. Mas o quê? Mas o quê? O que era <i>aquilo</i>? Cerrou as pálpebras e viu novamente o sorriso de Josival - na curva, outro ônibus vinha na pista contrária... Perdeu o controle...</div>
<div style="text-align: justify;">
As pálpebras abriram-se novamente, uma última vez. O olhar vazio, perdido, procurava por ele. Foi a derradeira impressão na retina, após o que tudo escureceu...</div>
β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-26249165055775639052012-11-02T14:02:00.000-02:002013-01-30T20:05:09.981-02:00Amor Verdadeiro<div style="text-align: justify;">
Ela levantou primeiro. Entrou no vestido curto cinza com estampa de cobra; espalhou um pouco do perfume importado no pescoço, escolheu algumas bijuterias, o relógio de pulseira fina, ajeitou o chanel, trepou nos saltos, pegou sua bolsa vermelha com alças douradas e cutucou o marido - ''estou indo, vou na frente, ouviu?'' - colocou os óculos escuros e ainda verificou no espelho se aparecera algum novo vinco no rosto. Ele levantou depois. Banhou-se, besuntou o cabelo com pomada, ficou entre a camisa de gola verde e a azul e sorriu por levar bem menos tempo para estar pronto; passou a mão na pasta preta e foi tomar café.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ele, enquanto cortava o pão, reparava de esguelha na diarista: baixinha, bem magra, de sandálias rasteiras, bermuda enfiadinha e blusinha curta. Num repente levantou e aproximou-se dela por trás. Concentrada na louça e sussurrando uma musiquinha, assustou-se com as mãos que escorregavam até seu ventre - ''o que é isso, seu Carlos?'' - tentou se desvencilhar dele -''ô morena, sabe que você ficou ainda mais bonita com esses seus cachos alourados?''- disse roçando seu corpo no dela - ''adoro esse seu perfume barato'' - ela logo reagiu - ''seu Carlos, o perfume não é nada barato, viu? Comprei a colônia em duas vezes na revista da Zulmira, entendeu? E olha, dona Vânia não vai gostar nada de saber que o senhor anda fazendo essas coisas!''- ele a virou de frente - ''esquece a dona Vânia e mostra esses biquinhos para mim, vai!'' - ela ainda relutando - ''seu Carlos, eu estou grávida'' - isso parece tê-lo açulado mais - ''deixa eu chupar esses biquinhos e eu lhe dou um celular novinho!'' - minutos depois, ele desceu as escadas do prédio com ar satisfeito e limpando os cantos da boca. </div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
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O motorista já esperava por ela. Entrou no carro no banco do carona e cruzou as pernas. Apesar de passar um tanto dos quarenta, sua pele ainda era lisa e tenra, e sentia um certo prazer em exibir suas coxas que escapavam dos vestidos que usava. Mesmo que não fosse uma mulher bonita, notou que o motorista andou reparando timidamente nela. Logo ele, um rapaz tão calado, formoso, porém, e longe dos trinta. Fantasiava, é verdade, com um homem mais novo, não obstante o seu marido fosse um. Mas ela desejava um bem mais, algo inexperiente, ou aparentando ser. Alguém como seu motorista, robusto e de olhos verdes; alguém com aquele perfume e pelos no peito. O carro diminuiu a velocidade por causa do trânsito engarrafado. Foi quando ela deu um piparote na guimba de cigarro, virou-se para ele e balbuciou no ouvido: ''o médico recomendou que eu andasse sem calcinha'' - depois deixou sua mão correr até a virilha do motorista ruborizado, pegou no pulso dele e levou seus dedos para baixo de sua roupa. Mandou que lhe fizesse uma massagem na região; e ela, esticando-se no banco, retesando os membros, cerrando as pálpebras, gemia baixinho. Ele só parou quando os dedos estavam molhados e ela acendia outro cigarro. Ao estacionar o carro, ela saltou e disse alto: ''passe para me pegar às seis!''</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
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À noite, após chegarem do trabalho, Vânia e Carlos jantaram e viram televisão; deitaram cada um em seu lado da cama e antes de apagarem a luz do abajur, beijaram-se e enfim um disse ao outro: ''amo você".</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
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<br /></div>
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<br /></div>
β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-6878464244362145942012-10-22T12:17:00.000-02:002012-10-22T12:25:46.445-02:00Picadinho<div style="text-align: justify;">
Wilson era um homem aborrecido. Seco, austero e não obstante os tempos se forem, ele permaneceu firme ante os ventos de modernidade. Cresceu ouvindo o pai falar bem de Getúlio, e com igual veemência defendia a ditadura arrematando: ''naquela época é que era bom!'' - tornou-se um velho chato, daqueles que desata um palavrório infinito quando encontra um conhecido na rua, ou se inventa de catequizar algum jovem - ''ouça a voz da experiência, garoto!'' A bondade, entretanto, não vem com a idade. Ora, quem foi enjoado por toda a vida, o será também na morte!</div>
<div style="text-align: justify;">
Sua esposa, de nome Vera, era uma mártir. Tinha que cozinhar, passar, cuidar da casa enfim e ainda aturar aquele homem. Em diversos momentos, arrependera-se secretamente, e imaginava outro destino para si. Mas estava velha também e não se permitia certos desejos. Seu marido levantava-se cedinho, sentava-se sempre no mesmo lugar da mesa, tomava seu café e ia ler o jornal. Daí é que começava a reclamar do governo, do preço das coisas, dos gastos mensais. E, em seguida, sua distração era achar defeitos em tudo o que via na casa e na esposa: ''o móvel da sala está empoeirado'', ''você deveria fazer arroz fresco mais vezes'', ''essa sua blusa não é muito decotada para uma mulher de sua idade?'', ''quantas vezes eu já disse que meu suco é com adoçante?'', ''estou com uma dor aqui, acho que morro em breve. O que será desta casa sem mim, hein?'' - e levantava-se para ir à banca, fazer fezinha no bicho e amofinar algum incauto vizinho. </div>
<div style="text-align: justify;">
Desfilava as canelas finas e as rugas franzidas no cenho, de peitilho aberto da camisa amarela, bermuda desfiada; grisalho e meio dentuço; gago exasperante ao defender suas posições amalucadas e rançosas. E discutia, xingava, era o senhor da razão - falava mal de mulher, de preto e de viado - ''está tudo errado! Eu já disse para meu filho que não quero neto mulatinho! Agora, se andar com homem, acho que eu mato! A culpa é da mãe dele, que não criou direito!''</div>
<div style="text-align: justify;">
Vera, então, teve uma ideia. Agora não mais bufava enquanto ouvia Wilson. Limitava-se a soltar alguns risinhos discretos. E ele perguntou, certa vez, o que era. Não era nada, estava apenas pensando na receita do picadinho que serviria no almoço de domingo.</div>
<div style="text-align: justify;">
- Picadinho? Finalmente você resolveu fazer algo diferente! Veja se fará isso direito, hein, pois penso até em chamar a minha mãe. Na última vez foi um desastre! A feijoada ficou rala, horrível! Bem, e como é essa receita, posso saber?</div>
<div style="text-align: justify;">
-Claro, vai ser um picadinho com carne de porco! - dito isso, cravou-lhe a faca de carne no pescoço.</div>
<div style="text-align: justify;">
No domingo, os familiares todos elogiavam o prato. A mãe de Wilson estranhou a ausência do filho.</div>
<div style="text-align: justify;">
-Ele foi fazer uma viagem, mas fez questão que eu a convidasse... Está servida de mais um pouco de picadinho, dona Amália?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-46506593679713531832012-10-21T12:09:00.000-02:002012-10-21T12:09:02.613-02:00Os Dez Melhores Contos de Mau Prosador<a href="http://mauprosador.blogspot.com.br/2010/05/silmara.html">Silmara</a><br />
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<a href="http://mauprosador.blogspot.com.br/2010/05/corpo.html">Corpo</a><br />
<br />
<a href="http://mauprosador.blogspot.com.br/2010/05/dezessete-facadas.html">Dezessete Facadas</a><br />
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<a href="http://mauprosador.blogspot.com.br/2010/06/beleza-perecivel.html">Beleza Perecível</a><br />
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<a href="http://mauprosador.blogspot.com.br/2010/06/onde-esta-deus.html">Onde Está Deus?</a><br />
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<a href="http://mauprosador.blogspot.com.br/2010/07/deu-holanda.html">Deu Holanda!</a><br />
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<a href="http://mauprosador.blogspot.com.br/2011/01/soterramento.html">Soterramento</a><br />
<br />
<a href="http://mauprosador.blogspot.com.br/2011/06/voz-da-mata.html">Voz da Mata</a><br />
<br />
<a href="http://mauprosador.blogspot.com.br/2011/10/morte-solitaria.html">Morte Solitária</a><br />
<br />
<a href="http://mauprosador.blogspot.com.br/2010/07/perversao.html">Perversão</a><br />
<br />β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-62759833524696370652012-10-20T12:56:00.000-03:002012-10-20T12:56:19.077-03:00Borboleta Azul<div style="text-align: justify;">
Aquele homem dormia em um dos últimos bancos do ônibus. Encolhido, envergado para o lado direito, agasalhado e cheirando mal. Quando viam o ser de rosto sumido na aba da boina, as pessoas escolhiam outro assento ou preferiam ficar de pé. Mãos e pés envelhecidos, carcomidos, estragados, nus denunciavam sua condição. Havia se urinado, mas isso ainda ninguém notara. Um sono profundo dormia. Nenhum barulho em redor, de fala, freio ou buzina, o fazia despertar. Rodou horas a fio pela linha circular, até que por fim o trocador resolveu sacudi-lo: ''ei, já chegamos na garagem, acorda!''</div>
<div style="text-align: justify;">
Não recordo seu nome, acho que era algo similar a Francisco. Sei que foi professor durante um tempo. Era voluntário e ensinava adultos a ler. Também era escritor, entretanto suas histórias nunca foram escritas de fato; permaneceram na imaginação. Tinha família; se não me engano, arranjou-se com uma moça quando já entrara em idades. Dois filhos nasceram daí: Melgibso e Shéreston, ambos nomes que homenageavam atores estrangeiros dos quais ele gostava. A mãe queria batizar o primeiro filho de Romestilte, porque na casa onde trabalhava, os patrões viviam dizendo que iriam ver o 'home theater'; de onde concluiu que, tendo um nome tão bonito, deveria ser alguém importante. O marido explicou que se tratava de um aparelho. O segundo também era menino, por isso resolveu adaptar e o chamou assim - com o sobrenome Silva. Seu Silva dizia de si para si: ''Melgibso será advogado; Shéreston, um grande médico''; um se envolveu com más companhias e foi preso, o outro engravidou uma menina e viveu de bico; e a esposa, a pobre esposa, morreu desgostosa na eterna fila do transplante. </div>
<div style="text-align: justify;">
Seu Silva, então, quis afogar-se em um copinho de cerveja, depois de vinho barato e, finalmente, cachaça. Bebia, bebia e comia sonhos, sonhos que jamais se realizaram. E no auge da embriaguez, tinha novamente sua mulher ao lado na cama, aninhava seus filhos pequenos, nutria o desejo de um destino diverso para eles, escrevia seu livro sobre uma borboletinha azul para crianças, comprava uma casinha fora do morro... Era um homem de valor! Mas ora, seu Silva, o senhor sempre fora um homem de valor! Quem poderia ter alfabetizado com palavras retiradas de papéis avulsos catados do lixo? Talvez virasse notícia de jornal sob o título 'superação'. Era estranho o gosto popular por esta palavra sendo que ele jamais alçara esta tão nobre e sonhada superação. Do que se tratava mesmo? Sobreviver e ser admirado por isso? Admiração nunca encheu barriga, doutor! Exemplo muito menos! Meu filho continua na cadeia e o outro repetiu o pai!</div>
<div style="text-align: justify;">
Surtou após uma bebedeira. Sumiu na cidade, não sabia onde estava. Chamava por um e outro; chamava nomes. Diziam-no louco, bêbado, enxotavam-no. Uma ideia, então, lhe acudiu: juntou uns trocados que amealhara na rua e pagou para entrar em um ônibus. Ali podia dormir tranquilamente, e proteger-se da chuva. Rodava, rodava, rodava, esquecido de si, esquecido do mundo, perdido; rodava, rodava, rodava pela cidade, em bairro de luxo e de lixo; rodava, rodava, rodava dormindo até que...</div>
<div style="text-align: justify;">
-Ei, já chegamos na garagem, acorda! - seu Silva ao menor toque tombou, de olhos cerrados e boquiaberto. Morrera havia algumas horas. E ninguém se dera conta... Ninguém se dera conta que, naquele coração habitara uma borboleta azul; borboleta azul que agora voava...</div>
β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-47204406161636721952012-10-06T20:50:00.000-03:002012-10-07T00:03:26.366-03:00Menos Uma Boca<div style="text-align: justify;">
O pobre rapaz de carnes moles, indolente e cabelos ralos, encontrava-se esparramado no colchão. Àquela hora do dia, passando das onze, aproveitava-se do silêncio langoroso fazendo movimentos tímidos de quem não quer levantar. Abriu um olho, depois o outro, bocejou e passou logo a mão num aparelho para saber das últimas notícias do mundo - ergueu a tampa e ligou; só lá pelas tantas lembrou de comer... E já era tempo de almoçar. </div>
<div style="text-align: justify;">
Arrastou-se pelo corredor, em trajes menores e com uma camisa de tamanho grande. O palor da pele acentuava-se ainda mais por causa dos panos brancos; o que agravava seu aspecto enfermiço, mesmo que não estivesse doente, mas apenas denotando alguém que não costuma sair muito do quarto. Catou algo para comer, requentou e esgueirou-se novamente, parando um tanto desdenhoso na porta do cômodo. Correu as vistas em torno de si: roupas espalhadas, sujas e limpas misturadas, no chão, na cadeira e na escrivaninha; revistas, copos, farelos, um bodum tenebroso tresandando toalha molhada, meias encardidas e resto de comida. Deveria arrumar a bagunça... Sim, algum dia, concluiu. </div>
<div style="text-align: justify;">
-Bernardo, vou na casa de sua tia - passou a mãe dizendo - depois vou com ela fazer compras, viu? - Beijou-lhe a testa e saiu, ignorando o estado do filho. Cansou-se, é verdade, de falar dos seus modos, do seu comportamento, de que deveria dar um jeito no quarto, de que ele já transpusera os trinta e ainda não tomara rumo na vida - estou velha e não suporto mais, ademais, ele sempre se tranca e liga o rádio no último volume - pensava. E, de fato, naquele universo particular, Bernardo era o único que existia - e respirava.</div>
<div style="text-align: justify;">
Recostou-se novamente no travesseiro, comeu parcamente, largou o prato, espalhou algumas migalhas e voltou a relacionar-se virtualmente. </div>
<div style="text-align: justify;">
Cochilou e, quando deu por si, era tarde. Lembrou-se de tomar banho. Embora o asseio fosse inadequado, sentia com prazer, no banho demorado, a água quente bater em suas costas. Seu pai, então, esmurrou a porta:</div>
<div style="text-align: justify;">
-Bernardo, quando tiver um emprego e puder pagar a conta, você gasta o quanto quiser! Eu não sou mais obrigado a lhe sustentar! - O pai interrompera um momento íntimo, onde quase atingia um êxtase, e teve raiva dele por isso. Fechou o chuveiro, parou para contemplar seu corpo flácido no espelho e suas olheiras de quem troca a noite pelo dia; examinou os dentes amarelecidos, uns pontos avermelhados no rosto; percebeu que possuía menos fios de cabelo, que sua barriga crescera em terrível contraste com os membros finos, que sua corcova aumentara. Vestiu-se para ouvir a ladainha paterna sobre trabalho, sobre o que seria dele quando os pais morressem, sobre o irmão que se encaminhara, sobre ser um inútil etc. Fechou, então, a porta do quarto, colocou o rádio no último volume e deitou-se outra vez.</div>
<div style="text-align: justify;">
Possuía um personagem, entretanto, virtual que era como ele, Bernardo: vestia-se bem, namorava uma moça bonita, morava em um casarão com piscina, andava de carro próprio e visitava os milhares de amigos em suas residências, onde havia festa sempre. Dinheiro era fácil, e quando era tempo de procurar um emprego, bastava acelerar o relógio para que a noite chegasse mais depressa. Ali havia uma felicidade estranha - enquanto a realidade desmoronava.</div>
<div style="text-align: justify;">
Dia desses, Bernardo acordou com uma sensação esquisita, uma pontada, parecia faltar-lhe o ar. Não conseguiu erguer-se, estava fraco. E, pouco a pouco, a vista escureceu. Gradativamente, então, deixou de funcionar. Como era de costume a família não se encontrar, ou melhor, haver apenas encontros furtivos no corredor, na sala, nunca na mesa da cozinha; ninguém notou sua ausência. Até o cheiro estranho no quarto foi tido como normal. Somente após uma semana, quando a faxineira retornou, foi que se deram conta: -acho que seu Bernardo está morto!</div>
<div style="text-align: justify;">
A mãe desesperou-se, o irmão estava de saída e o pai balbuciou secretamente: -menos uma boca para alimentar!</div>
β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-39013593053682901162012-07-12T14:05:00.000-03:002012-07-12T14:41:29.947-03:00Justa Causa<div style="text-align: justify;">
<span style="background-color: #660000; color: white;">Aparício era um juiz que sonhava com o desembargo. Imaginava-se mil vezes tomando posse. Talvez porque viesse de uma família tradicional de magistrados. Desde a época do Império, dizia seu avô quando ainda era criança, seu bisavô já se tornara conceituado jurista; e de lá para cá, todos os homens - primos, tios ou irmãos - formaram-se advogados, procuradores e o próprio pai de Aparício, Aparício filho, foi desembargador. Portanto, daí a imensa responsabilidade - ''tornar-me-ei desembargador'', dizia de si para si, ''para não decepcionar papai''.</span><br />
<div>
<span style="background-color: #660000; color: white;"> Em seu apartamento, de frente para praia, todo mobiliado com móveis de jacarandá, alguns até remanescentes da antiga casa vizinha ao Palácio do Catete; havia um desfile de fotografias dos ancestrais que davam ao bom sobrenome o orgulho de se ostentar na sala seu grande peso, que equivalia a ter um Caravaggio original. Está certo que o Guinard e o Brecheret não eram autênticos, porém serviam para emprestar àquela sala um ar moderno e sofisticado; mais para reafirmar que Aparício não parou no tempo. </span></div>
<div>
<span style="background-color: #660000; color: white;"> ''Este aqui foi meu avô'' -respondia com embófia caso perguntado- ''era amigo pessoal de Clóvis Bevilácqua!''; pensava intimamente que o poder judiciário deveria se sobrepor aos demais, porquanto não fosse eletivo. Não, não que se colocasse frontalmente contra a democracia. Só possuía uma nostalgia langorosa quando revia a imagem de seu batizado, ao qual compareceu Getúlio Vargas pouco antes de morrer. Teria dito que aquela criança seria um poderoso mandatário! Se tornou um juiz - indolente, roliço, de pés cascudos e pelos nos ouvidos, abandonado ao costume rançoso de olhar de esguelha as ancas da empregada enquanto fumava seu charuto. De quando em quando, sua esposa lhe gritava: ''não vais ao tribunal hoje?'', ao que ele respondia: ''amanhã, amanhã'' - e tornava às pernas, aos quadris da moça que se esforçava por dobrar a coluna para limpar embaixo do sofá. </span></div>
<div>
<span style="background-color: #660000; color: white;"> Teve um filho que se salvou de chamar-se também Aparício. De vinte e dois anos, mais ou menos, que, depois de uma viagem a Orlando, decidiu que iria estudar música. Seu pai teve um achaque.''Como'' - interrogava-se - ''como pretende sobreviver de música?'' O rapaz tocava violão razoavelmente e guitarra, e foi graduar-se em oboé. Não possuía qualquer talento, todavia. E como nesta terra se faz artistas em cada esquina, achou que contava com o apoio dos pais. Ledo engano. Aparício ameaçou deserdá-lo se não se tornasse um advogado! Com o tempo cedeu e prometeu inclusive montar um estúdio para o filho.</span></div>
<div>
<span style="background-color: #660000; color: white;"> Certo domingo, pela manhã, Aparício ainda se debatia na cama depois de um sonho ruim, quando ouviu-se uma bulha que se aproximava. Eram gritos e batuques que cada vez se faziam mais sonoros. O juiz, então, chegou na janela e viu que uma multidão, empunhando cartazes e faixas, repetia alto palavras de ordem que alguém berrava em um alto-falante. </span></div>
<div>
<span style="background-color: #660000; color: white;">- O que significa isto? Será que um homem de bem não pode mais descansar? - e passando a mão no telefone, ligou para a delegacia - aqui é o juiz Aparício! Tem um bando de baderneiros debaixo da minha janela! Onde já se viu? O quê? Protesto pela legalização do quê? Mais um motivo para o senhor mandar seus homens sentarem o malho nessa patuleia! Eu quero dormir, caramba! Eu sou juiz, eu baixo uma liminar, hein!</span></div>
<div>
<span style="background-color: #660000; color: white;"> Logo a polícia chegou contundente, com porretes e bombas de efeito moral, dispersando toda a gente e fazendo alguns prisioneiros. Aparício, de sua varanda, sorria numa maliciosa satisfação, assistindo de camarote ao espetáculo. ''Essa juventude está mesmo perdida'', concluiu.</span></div>
<div>
<span style="background-color: #660000; color: white;"> Passada uma hora, o telefone toca: era da delegacia. O filho de Aparício havia sido preso na manifestação. Vislumbrando um possível vexame, vociferou: </span></div>
<div>
<span style="background-color: #660000; color: white;">- Senhor delegado, onde nós estamos? Meu filho é um menino bom, honesto! Só mesmo neste país é que inocentes vão para a cadeia! Ele tinha todo o direito de se manifestar, oras! Afinal, vivemos ou não em uma democracia? - E batendo o telefone - era uma justa causa, oras!</span></div>
<div>
<br class="Apple-interchange-newline" /></div>
</div>β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-2772226112620718802012-07-11T14:37:00.001-03:002012-07-11T14:48:29.915-03:00Outra Entrevista com uma Socialite<div style="text-align: justify;">
Entrevistador: -marcando o retorno de nosso programa, estamos aqui no Jóquei Clube para entrevistar a socialite Lucinha Lafourd que hoje está promovendo um jantar beneficente.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Socialite: -é isso mesmo. Esse jantar é em prol da nova ong que eu estou ajudando a fundar.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Entrevistador: -e que ong é essa? Como surgiu essa ideia?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Socialite: -Eu fiz uma viagem espiritual pelo sudeste asiático e lá eu tive uma iluminação: por que não ajudar os animaizinhos carentes? Quando eu voltei, em Novembro do ano passado, reuni umas amigas socialites daqui do Rio e de São Paulo e resolvemos fazer todo esse movimento, porque eu acho que o nosso país está precisando. Aí foi maravilhoso! Todas elas aceitaram e hoje estamos aqui, nessa noite linda!</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Entrevistador: -fale um pouquinho mais sobre o que a ong oferece...</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Socialite: -então, na verdade ela oferece bem mais do que um abrigo. Nós montamos uma casa na serra e para lá nós levamos os animaizinhos de rua. A ong oferece alimentos baseados em dietas balanceadas, hair stylist, personal trainer, além de ter adaptado as maiores grifes de roupa, joias e acessórios para cães e gatos. Lá também tem adestradores multilíngues e duas novidades: uma linha exclusiva de cosméticos e cirurgia plástica! Vocês precisam conferir, é maravilhoso!</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Entrevistador: -assim eu vou ficar com inveja desses animais, hein! E me diz uma coisa, e aquela sua outra fundação?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Socialite: -aquela que recolhia pessoas em situação de rua? Infelizmente, nós não tivemos o apoio necessário do governo estadual e, por falta de verba, tivemos que fechar as portas!</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Entrevistador: -é um absurdo o que o nosso governo faz!</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Socialite: -Eu pago meus impostos e quero ter o direito, por exemplo, de ver a rua limpa! Mas não é isso que a gente vê na zona sul, entendeu? Seria maravilhoso poder andar com tranquilidade nessas praias lindas da cidade...</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Entrevistador: -você poderia tentar a carreira política, já pensou nisso? Lucinha Lafourd para presidente!</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Socialite: -mas eu venho como deputada no próximo pleito! Eu quero que a discriminação contra os animais tenha um fim! Poxa, não é possível que, em pleno século vinte e um, nós tratemos cães e gatos como animais! Eles são gente como eu, como você, como o telespectador, entendeu? Meu sonho é que uma emenda constitucional transforme em crime inafiançável o ato de chamar um cãozinho de animal!</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Entrevistador: -e nesse jantar beneficente, qual é o cardápio?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Socialite: -um cardápio vegetariano com verduras, legumes e grelhados.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Entrevistador: -mas grelhados não são carne animal? Animal não é gente?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Socialite: -ah, uns são mais gente do que outros, né?<br />
-----<br />
<br />
<a href="http://mauprosador.blogspot.com.br/2011/03/entrevista-com-uma-socialite.html">CONFIRA AQUI A PRIMEIRA ENTREVISTA</a></div>β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-88029574022267124382012-05-25T10:39:00.005-03:002012-05-25T10:40:06.645-03:00Sonhamento<br />
<div style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px; text-align: justify;">
Conto enviado por Leonardo Lusitano.</div>
<div style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px; text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px; text-align: justify;">
<u><b>Sonhamento</b></u></div>
<div style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px; text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px; text-align: justify;">
- Sonhos. Somos nós que sonhamos...ou serão eles, na feitura do real encorpado em cada um que nos sonham?</div>
<div style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px; text-align: justify;">
Sonhando ou sonhado, eis o sonho:</div>
<div style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px; text-align: justify;">
Estava em casa, não raciocino bem se em Lumiar ou na novidade de Itacoatiara. É fato que a razão faz apenas sua parte. Atrás da casa existe, no <span class="il">sonhamento</span>, um rio que só descobri de ouvir. Ver nunca tinha visto. Já era noite, assim começo de noitinha. Talvez as seis horas da tarde onde o anjo- em sonho- anunciou a vinda do filho do dono de muitas moradas. Inclusive a minha? Voava a casa no céu e o lago eram nuvens escondendo-mostrando a aguinha sua de outro jeito? A fantasiação. Cabe no sonho?</div>
<div style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px; text-align: justify;">
O acontecimento sonhante foi que do lago, atrás da casa, vinha uma bela melodia: daquelas que a gente pensa que os anjos cantam em dia de festa pascoal, quando a vida recomeça. Aturdido com a potência desadjetivada daquilo, flutuei até os fundos ( do mundo?) e vi o que só se podia ouvir: um cardume de anjos cantando a Paixão de São Matheus, sonhada por Bach!</div>
<div style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px; text-align: justify;">
Sonho-entre-sonho, era o estúrdio aquilo. Puxando o mundo para si, angelicais, simplesmente cantavam para o rio! Kommt, ihr Töchter, helft mir klagen, podia-se escutar. Cantavam a vida, para que ela se movimente, permaneça a mesma na mudança. Cantavam os peixes que se entregam em alimento, como o filho cósmico sem tempo ensinou a destinarem-se. Cantavam a surpresa com aquilo que nos acostumamos a ver e desacostumamos a pensar: a natureza é divina e o homem, apenas uma parte do todo. Homens nascem, capim rebrota, porque a vida criou o ovo e a galinha. Ela vem junto.</div>
<div style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px; text-align: justify;">
Co-movido, entrei no rio. Quis me plasmar na celebração da natureza com os tempos. Tudo em harmonia. Todos os tempos naquela água inicial. Todo o verde, todo azul, todo o branco, o tudo e o todo em escuta concertada. E foi então que um dos anjos me disse:</div>
<div style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px; text-align: justify;">
-Viver não é um sonho. Viver é um sonho.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-74453827875463210612012-05-19T13:22:00.001-03:002012-05-19T13:29:35.415-03:00Deuses Canibais e Forças Predatórias<br />
<div id="message_box" style="height: auto !important; margin: 0px; min-height: 150px;">
<div class="msgpart clearfix" id="msgBody" style="zoom: 1;">
<div id="bodyContent" style="padding: 10px;">
<div style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px; text-align: justify;">
Neste mês de maio, o blog Mau Prosador faz dois anos, e para comemorar, serão publicados textos de autores convidados. O primeiro foi escrito por Leonardo Leitão. Para mais de seus contos, acessem: <a href="http://absortoemabsurdos.blogspot.com.br/">http://absortoemabsurdos.blogspot.com.br/</a></div>
<div style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px; text-align: justify;">
<u><b><br /></b></u></div>
<div style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px; text-align: center;">
--X--</div>
<div style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px; text-align: justify;">
<u><b><br /></b></u></div>
<div style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px; text-align: justify;">
<u><b>Deuses canibais e forças predatórias</b></u></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px;"><br /></span></div>
<span style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px;"></span><br />
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px;">Eu estava pensando... chove lá fora e eu estive pensando. Minha casa desabou comigo dentro e me matou. Mas minha casa não é um barraco precário construído com papelão em uma encosta íngreme e lamacenta. Minha casa tem mais de cem anos e foi construída pra durar mais de mil, eternamente. Foi construída em uma extensa campina, pelo pai do meu avô, ou pelo pai dele. À frente tem uma avenida ladeada por altas palmeiras e atrás um pasto a perder de vista. </span></div>
<span style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px;">
</span><span style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px;"><div style="text-align: justify;">
A água da chuva foi minando a casa, se infiltrando nos tijolos e na massa até que todo sólido ficou poroso. O único sinal disso eram uns focos de mofo aqui e ali. Normal para uma casa velha. Mas no todo ela não era tão velha sabe, ela tinha apenas uns cento e poucos anos apesar de ter sido construída para durar mais de mil. </div>
</span><span style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px;"><div style="text-align: justify;">
Eu ainda ouço na minha cabeça os tambores dos pretos, de quando eles cantavam e gritavam. Não sei se me contaram isso quando criança ou se a lembrança me foi transmitida geneticamente pelos meus ancestrais, expostos tão continuamente ao som desses rituais. Eles cantaram a toa, todos trabalharam até morrer. Eu não, mesmo morto continuo pensando, não vou morrer nunca porque meus pensamentos foram feitos para durar mais de mil anos. Por que eles batiam aqueles tambores se isso não os salvou da morte? Quais forças eles tentavam mobilizar a seu favor? Não faz diferença, não adiantou. Nada adianta. As raízes das árvores continuam movendo-se lentamente, quebrando concreto, a chuva continua minando construções, o vento transformando pedra em areia e o mar transportando areia por aí. </div>
</span><span style="font-family: verdana, Helvetica, sans-serif; font-size: 13px;"><div style="text-align: justify;">
Só meu pensamento continua, por mais de mil anos, eternamente, e dentro dele os tambores dos pretos.</div>
</span><br />
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<a href="http://www.blogger.com/blogger.g?blogID=4585250753360905335" name="thumbs"><br /></a></div>
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</a>β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-13834166805447242212011-10-08T23:57:00.002-03:002011-10-09T00:11:46.830-03:00Morte Solitária<div style="text-align: justify;"> Uma vida interrompida. Era tudo o que se poderia dizer naquele momento. Ninguém sabia seu nome. Limitavam-se a balbuciar palavras entre si. Uns três talvez, ou quatro, nada além; o resto transcorria: pessoas indo, carros vindo, e somente um detalhe no quadro geral destoava: o cadáver de um homem, caído ali, próximo da sarjeta, ao lado do poste; de braços esticados, entrelaçados; roupas simples, um tanto encardidas; meia-idade e olhos abertos, fitos no horizonte limitado pela calçada e pela morte.</div><div style="text-align: justify;"> Chegara na cidade havia pouco. Saiu da rodoviária e andou em um rumo perdido. Sua impressão modesta mal reparou no aspecto agitado e sujo do centro, tinto de cores cinzas, escorrido de um preto musgoso; nos andarilhos feios e comuns; nos odores confusos de comida, vapor e dejetos. Não, decerto não reparou, pois assim era qualquer centro daquela região. Era o centro de onde vinha. Era o centro com que convivia - prédios crescendo desordenadamente, ruas tortas e gente; muitas gentes a esbarrarem-se. Não havia planejamento, não havia timbre nem tom. Havia um sentido metálico, opaco, triste. Havia pobreza de alma e de estilo; e o dinheiro que todos iam ali buscar!</div><div style="text-align: justify;"> Quando passou daquela esquina, deparou-se com o corpo. Assustou-se: primeiro com o detalhe, depois, ganhando amplitude, o olhar analisou os outros elementos e somente encontrou indiferença. Ficou um tanto turvo, tonteou, não pôde conter a curiosidade e o desejo de aproximar-se. O homem não mais respirava. Contudo, seus olhos continham a última gota de vida e retinham perpetuamente o quadro dramático que ali tinha lugar: pés humanos, rodas, pressa - esquecimento. E, num átimo, os dois olhares se encontraram, compartilhando uma só visão do avesso da vida - ''quem está verdadeiramente morto?'' - Disse o rapaz - ''somos nós ou ele?'' Um senhor, que estava perto, franziu o cenho como que não houvesse compreendido as palavras que o jovem proferira alto sem perceber. Uma mulher perguntava se alguém havia chamado a ambulância e um terceiro meneou a cabeça negativamente. </div><div style="text-align: justify;"> Inopinadamente veio a chuva. E quem estava ali se afastou. Só o rapaz, sentindo-se ainda mal, permaneceu por mais alguns minutos. Estava perdido, não lograria encontrar o endereço aonde deveria levar os papéis, não debaixo de chuva; também não podia deixar o cadáver anônimo abandonado. Encontrava-se tão aturdido que não percebera as poças transformarem-se em rio, molhando seus calçados, suas bainhas, suas pernas, sua cintura... A catadupa barrenta e contundente, empurrou-o e arrastou. Os documentos se perderam, a roupa se perdeu... E, no esforço de agarrar-se em anteparo que fosse e manter a cabeça acima d'água, tentou ocultar de sua mente os olhos sempiternos do corpo inerte. Não adiantou, eles eram fortes, vivazes, eternos! Tragaram-no para dentro daquele mar - e mais uma vez se encontraram no fundo. Aquele homem não estava mais sozinho.</div>β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-35881131525657913722011-07-02T22:48:00.004-03:002011-07-08T16:07:10.831-03:00A Umbra<div style="text-align: justify;"><strong> O Texto a seguir faz parte de um exercício narrativo feito por Adem Ibrovic que consistia em contar a mesma história de<em> Voz da Mata</em>, mas com abordagem própria. </strong></div><div style="text-align: center;"><strong>***</strong></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"> A noite começava a cair. Os últimos raios de sol ainda reluziam na copa das árvores enquanto a escuridão se aprofundava no interior da trilha. Os dois amigos decidiram que era hora de começar a voltar antes que a penumbra se tornasse breu e se perdessem pelo caminho. Nestas ocasiões Pedro costumava sempre andar com sua lanterna e alguns equipamentos básicos de trilha, mas naquele dia tudo havia sido decidido de última hora e por isso estavam completamente desprevenidos. Além da falta de qualquer equipamento de orientação, ainda vestiam trajes incômodos para uma caminhada naquele tipo de terreno. Calças jeans, tênis de solado gasto e a inusitada camisa pólo de Marcos compunham o visual dos dois trilheiros casuais.</div><div style="text-align: justify;">- Pronto! Começo a não distinguir raízes de pedras, e não vejo um palmo a minha frente! – reclamava Marcos enquanto desciam pela encosta.</div><div style="text-align: justify;">- Você só sabe reclamar? – a pergunta de Pedro foi seguida por um som abafado e algumas pedras rolando. Ao olhar para trás, lá estava Marcos caído no chão com braços e pernas abertos sobre a terra.</div><div style="text-align: justify;">- Marcos!!! Está tudo bem? –</div><div style="text-align: justify;">- Sim, está tudo “ótimo”! Só me estirei no chão para ver o que você iria dizer... – respondeu Marcos, usando o sarcasmo que lhe era bastante característico.</div><div style="text-align: justify;">- Oras, então levante-se daí e vamos andando porque não há tempo para este tipo de brincadeiras! – completou Pedro, quase que estendendo o sarcasmo do amigo para um nível muito próximo do irritante.</div><div style="text-align: justify;"> A caminhada seguia, ao passo que a preocupação de ambos aumentava. A trilha, que costumava ser bastante movimentada por caminhantes indo e vindo, estava agora completamente deserta e os sons de pássaros diurnos silenciavam aos poucos para dar lugar ao barulho de grilos e cigarras. Naquele momento, todos os caminhos pareciam iguais e os dois amigos travavam um silêncio perturbador na expectativa de qual deles diria primeiro o que já era óbvio: Estavam perdidos. Na cabeça de Pedro tudo se resolveria se continuassem descendo, afinal, enquanto houvesse caminho para baixo, estariam ao menos na direção da estrada onde a trilha tinha início. Mas durante a descida, Pedro olhava à sua volta com a estranha sensação de que já haviam passado por aquele lugar.</div><div style="text-align: justify;">- Merda! Acho que estamos andando em círculos... –</div><div style="text-align: justify;">- Silêncio... – sussurrou Marcos, interrompendo imediatamente o amigo. – Está ouvindo isso? Preste atenção... –</div><div style="text-align: justify;"> Passaram-se alguns segundos até que Pedro pudesse distinguir algumas vozes em meio aos barulhos da noite. – Tem alguém falando... E vem daquela direção. - Enquanto ele apontava com uma mão, ia abrindo caminho em meio aos arbustos com a outra e avançava na direção das vozes. Marcos não estava com um bom pressentimento sobre aquilo, mas era melhor seguir Pedro do que ficar sozinho no meio da mata e naquela escuridão. - Pelo menos vá devagar. Não sabemos o que está acontecendo... –</div><div style="text-align: justify;"> Cuidadosamente os garotos se aproximavam de uma pequena encosta onde a mata não era tão densa. Abaixaram-se atrás de um monte de terra e observaram ao longe algumas luzes que se mexiam freneticamente, como lanternas balançando na escuridão. As vozes continuavam e, embora ainda não pudessem distinguir o que era dito, percebiam que se tratava de uma discussão acalorada. – Vamos embora daqui! – Marcos tentava convencer Pedro, como se pressentisse que aquele era um ponto sem volta.</div><div style="text-align: justify;"> Pedro estava completamente tomado pela curiosidade, ou talvez algum tipo de senso de “destino”, que não o fazia nem ao menos considerar a hipótese de retornar sem descobrir o que estava acontecendo ali. Estavam tão perto, as luzes pareciam oscilar a uns vinte ou trinta metros à frente. O problema agora, é que ao sair de trás do monte de terra onde estavam abaixados, ficariam completamente expostos na vegetação baixa e qualquer rápido movimento daquelas luzes revelaria imediatamente a posição de suas silhuetas.</div><div style="text-align: justify;">- Vamos pelas laterais. – Sugeriu Pedro.</div><div style="text-align: justify;">- Como assim? Nos separar? Está louco Pedro!!! –</div><div style="text-align: justify;"> Não foi preciso muita discussão para que a decisão fosse tomada. Um estampido agudo irrompeu o ar e silenciou os dois amigos, que se entreolharam ao mesmo tempo. Pedro, tomado pelo impulso do momento e já antevendo o que teria acontecido, correu na direção do barulho. – Isto foi um tiro! – Marcos, pouco antes de acompanhar o amigo, teve tempo apenas de pensar: - Ótimo, ouvimos um tiro e qual a coisa mais inteligente que conseguimos fazer? Corremos na direção de onde ele veio. Excelente Pedro... Excelente. –</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: center;">------------- X -------------</div><div style="text-align: justify;"> Chegaram rapidamente ao local de onde antes vinham as vozes. Agora tudo estava calmo e silencioso. Pedro localizou de pronto a fonte das luzes que viram: três lanternas, ainda ligadas, jogadas no chão. Um pouco mais adiante, na borda da clareira, dois corpos sem vida deitados sobre uma lona quadrada e voltados com o rosto para baixo. Mesmo sob os protestos de Marcos, Pedro se aproximou dos corpos. Carregava nas mãos uma das lanternas que havia encontrado e parecia estar absorto em pensamentos distantes. O amigo gritava do outro lado da clareira, mas era como se ele não pudesse ouvir uma palavra. Abaixou ao lado da lona e virou um dos corpos para cima. O choque foi tão grande que Pedro retomou, imediatamente, o controle sobre seus pensamentos. No chão, deitado bem à sua frente e com uma perfuração de bala na cabeça, estava “ele mesmo”. O corpo ao lado era o de Marcos. – Meu Deus, somos nós! – Entre tropeços e quedas os dois correram sem olhar para trás, deixando naquela clareira mais do que corpos e lanternas, deixaram também parte de sua sanidade.</div><div style="text-align: justify;"> Chegaram à base da montanha pouco tempo depois, com lágrimas no rosto e várias escoriações pelo corpo. Mas havia algo ainda mais estranho por vir. Ao olharem para o alto da montanha, vislumbraram uma cena impossível de se explicar com palavras. O mais próximo que conseguiram chegar do que viram foi um breve relato postado, dias depois, em seus blogs, onde descreviam o que viram como uma enorme mancha escura pairando no céu sobre a montanha... Uma mancha mais negra que a própria noite.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div>β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-76251725147416383762011-06-30T20:32:00.002-03:002011-07-01T18:32:35.739-03:00Voz da Mata<div style="text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjba85CpIaJbUsQBhgu2lhq9iRCnvlCm4fU6GCbSxhFio3EIQXJEQ-vWK4Oy5DAfSrEZfmqJzgrAgEov1t1xV023UuqsVo9vfJotalz0JVcRuIZDkojqsjLs5h3q6Gsrj8qpoStlE4-onO9/s1600/MATA-A%257E1.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="248" i$="true" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjba85CpIaJbUsQBhgu2lhq9iRCnvlCm4fU6GCbSxhFio3EIQXJEQ-vWK4Oy5DAfSrEZfmqJzgrAgEov1t1xV023UuqsVo9vfJotalz0JVcRuIZDkojqsjLs5h3q6Gsrj8qpoStlE4-onO9/s320/MATA-A%257E1.JPG" width="320" /></a></div><div align="center"></div><br />
As cores do fim de tarde esmaeciam em tons suaves de azul arroxeado e coral; as trevas, da noite que já se anunciava, cerravam vagarosamente a sua boca sobre a mata, acinzentando as folhas, outrora verdes, das árvores centenárias. A vegetação, com seus galhos, talos e furtivas flores, desaparecia do último plano, restando ao caminho apenas os troncos pardacentos de plantas que pareciam adormecer. Ouvia-se balbuciar o filete de água que serpenteava, quase sumido, na rama seca, para ir deitar-se alhures no mar; ou o passo minúsculo de algum lagarto, ou o romper de toco sem seiva - no mais, reinava o silêncio. </div><div style="text-align: justify;"> A Natureza, contudo, que insiste em coabitar com a cidade, não passa sem ser perturbada, mesmo que seu ninho faça desaparecer o tempo: dois rapazes singravam degraus colocados ali, não se sabe por que mãos, para facilitar a passagem; o primeiro, movido pelo ímpeto da idade e irrefletido, andava com certa destreza, ironizando o que ficara para trás, mais novo, a quem sobrara moderação, resbunante pelas vias tortuosas da trilha. Aquele sumia das vistas deste por vezes, encontrando-se em qualquer curva, imitando animais selvagens por mera provocação, depois da qual ria-se como se fosse a brincadeira mais engraçada. A razão de estarem ali era um simples passeio: subiram um monte e agora o desciam rapidamente, pois a promessa da paisagem não desculpara a escuridão - era preciso voltar o quanto antes, para não se perderem!</div><div style="text-align: justify;"> Os trajes incomodavam um pouco, porquanto fossem inadequados para o tipo de exercício que se apresentava. Mas nada fazia esmorecer a agitação que uma inusitada aventura proporcionava - o alívio bucólico da amofinação citadina servia de refrigério aos olhos e ouvidos cansados do barulho incessante. Ali puderam encontrar um universo diverso, imutável e indiferente; eivado de tintas e de sons; uma tela vívida, enfim. O que ia adiante pulava entre as pedras, tentando livrar-se da terra molhada e escorregadia, traiçoeira debaixo dos sapatos do outro, ameaçado constantemente de queda: - ande lá! - Dizia aquele, inconsequente nos melhores anos de juventude onde falta o juízo necessário do perigo - você está muito lerdo! - e continuava meio impaciente com a demora: - calma! Você leva vantagem porque fez isso antes. Ademais, eu não estava preparado! - Retrucou o outro. </div><div style="text-align: justify;"> A idéia surgiu em uma mesa de restaurante, quando ao longe apontava-se o morro. Em menos de uma hora estavam no sopé. O esforço da caminhada foi compensado com montanhas, pôr do sol e brisa marinha; com metrópole incansável e luzes despontando em suas habitações, estendendo braços por todos os lados. Contudo, ao modo de Dante atravessando o Limbo, os dois rapazes foram tomados de angústia desabrida, sopitando a felicidade de ditosa paisagem, quando um deles - justamente o que conhecia a trilha - enganou-se, conduzindo ambos a uma via errada. Perderam-se; e só se deram por isso tardiamente. </div><div style="text-align: justify;"> Algo proposital e misterioso havia na mata que se fechava enquanto os pés confusos avançavam; alguma presença invisível, algum observador oculto. À angústia avizinhava-se o medo e, no torvelinho de pensamentos, embrenhavam-se mais no intestino da floresta, que queria digerir os invasores depois de havê-los mastigado - pedras e galhos assemelhavam-se a dentes afiados que os feriam a cada tropeço. O mais experimentado não desejava demonstrar sua fraqueza. A verdade é que mal podia conter-se devido ao nervosismo que dominava seus membros. Sentia frio e esforçava-se por não deixar tremer seu maxilar. Frebicitante, o coração pulava. O que vinha logo atrás tinha perdido um tanto a noção da realidade, quase em um sonho ruim, numa reação orgânica imediata que o anestesiara, alternando excitação e pavor. Inopinadamente, vozes vieram da direção que seguiam: primeiro como sussurros, aumentando assim até transparecer em bulha similar a uma altercação. Hesitaram... Dois estampidos simultâneos ressoaram... Correram sem atinar para a situação; esbarraram-se, caíram e depararam-se, ao fim, com uma cena terrível: estirados na clareira, dois corpos perfurados na altura dos pulmões, de cujos orifícios saía sangue em pequenas bolhas - os dois corpos tinham os rostos exatos dos rapazes perdidos. Dias depois, acharam ambos, ainda no mesmo local, aturdidos. Mal conseguiam entender o que viram. Em laivos de lucidez, somente a breve certeza do que lhes teria acontecido caso ignorassem o aviso recebido no instante do choque: ''saiam e não voltem!''</div><div style="text-align: justify;"> </div>β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-46062755697163732902011-05-31T22:54:00.001-03:002011-05-31T22:58:55.946-03:00Dostoiévski e o Muro<div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Dostoiévski é o último convidado a chegar com duas citações de <em>Notas do Subterrâneo</em>.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">***</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgh0XDre8SnpeMjyBWdGVVhMx9yleBJ1ALqk9ceOuYwe-Z2-sQSGBEnl19CQJosfmg7NwDj8ZRBCgne_f0-BqdEq3XVj7ZJlEsXdXWWCu_5tJ-YJADEP5sduYcXtxF_okQsI3Q1J0aJeymx/s1600/dostoievski.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgh0XDre8SnpeMjyBWdGVVhMx9yleBJ1ALqk9ceOuYwe-Z2-sQSGBEnl19CQJosfmg7NwDj8ZRBCgne_f0-BqdEq3XVj7ZJlEsXdXWWCu_5tJ-YJADEP5sduYcXtxF_okQsI3Q1J0aJeymx/s320/dostoievski.jpg" t8="true" width="240" /></a></div><div align="center" style="text-align: center;">Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821-1881)</div><div align="center" style="text-align: center;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><em>'' 'Perdão! - dir-se-á - não cabe protestar: dois e dois são quatro. A Natureza não vos pede licença; nada tem a ver com vossos desejos, nem lhe interessa que vos agradem ou não suas leis. Sois obrigado a aceitá-la tal como é, e, consequentemente, todas as suas decorrências. Um muro, evidentemente, é um muro... etc. etc.'' Mas, meu Deus! Que me importam as leis da Natureza e a aritmética se, por esta ou aquela razão, eu detesto essas leis, detesto o fato de que dois e dois são quatro? Está claro que não poderia derrubar o muro com a minha testa, se minhas forças não bastassem; mas não aceito humilhar-me diante do obstáculo só por ser ele um muro de pedra e não ter eu forças para derrubá-lo.''</em></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><em>''Repito, enfaticamente repito: todas as pessoas diretas, todos os homens ativos são ativos porque simplesmente obtusos e limitados. Como explicá-lo? Da seguinte maneira: em consequência de sua limitação, eles tomam por primárias as causas secundárias, imediatas, e assim se convencem, mais depressa e mais facilmente do que as outras pessoas, de encontraram um fundamento inabalável para sua atividade. Então se tranquilizam, e isto é que importa. Para começar a agir, com efeito, é preciso antes de mais nada estar perfeitamente tranquilo, sem nenhum vestígio de dúvida.''</em></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"> Creio que ambas as passagens possam surtir em amplo debate. Elas me fazem lembrar um conto de Edgar Allan Poe, onde se diz que Deus é o único ser de felicidade plena por conhecer a causa de todas as coisas. A nós cabe uma dúvida sempiterna: qual o sentido da vida? Por que almejar, tentar conquistar, cair e levantar se a história de cada um termina em morte? Se não há final onde tudo se resolva magicamente? Os homens de ação, como bem diz Dostoiévski, com o perdão da redundância, agem; não param para pensar na razão - apenas agem. Ou então se paralizariam diante de perguntas que jamais poderão ser respondidas: qual o próximo passo? Somente incertezas adiante...</div><div style="text-align: justify;"> A penúria, a privação de faculdades motoras, enfermidades, insucessos de qualquer ordem sobrevêm mesmo àqueles que se julgam afortunados - se assim pode nomear-se, a sorte muda ao sabor das circunstâncias. Entretanto, não é de sorte que o autor fala; há algo ainda mais incompreensível, não obstante sua aceitação, de característica irremediável, que são as leis da Natureza. Ora, ao deparar-se com ela - a exemplo de um muro - o homem de ação reconhece sua incapacidade de transpor-lhe. O homem de consciência, porém, digladia com esta incapacidade. Por isso Dostoiévski afirma ser a consciência uma doença: ela imobiliza ante a dúvida do porvir. Ou ainda: não se conforma com os ditames da própria vida.</div><div style="text-align: justify;"> Tomar o efeito pela causa é, por mais banal que seja a analogia, outorgar uma medida, desejada como ideal pelo bem comum, sem atacar as raízes do provável vício social. É querer remediar situações, que exigiriam a devida anuência, com palavras que em nada mudarão o estado de quem atravessa uma dificuldade, de quem perdeu algo ou alguém, de quem sofre. Ter consciência de que o futuro é incerto, da falência e fragilidade do corpo, da finitude da vida - da possibilidade de sermos seres pífios e quixotescos abandonados no Universo; é decerto uma doença!</div>β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-74029327799776953832011-05-29T20:46:00.001-03:002011-05-29T21:59:38.823-03:00Machado e as Batatas<div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><strong>Machado chegou trazendo as Batatas!</strong></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br />
</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">***</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhbsyC6n2EYyEc4ebihVkvqPOQtRX51FcIFCSIKw5rZTY7-UuHUzDJUk2wBsbgK5yoHufOgv72r96kwH682daOOu4V1-s8d773S-NpBbZkJsudffw7Ks5paDK4U0_A_mQIslk8t2SxL_mZ4/s1600/machado_de_assis11.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhbsyC6n2EYyEc4ebihVkvqPOQtRX51FcIFCSIKw5rZTY7-UuHUzDJUk2wBsbgK5yoHufOgv72r96kwH682daOOu4V1-s8d773S-NpBbZkJsudffw7Ks5paDK4U0_A_mQIslk8t2SxL_mZ4/s320/machado_de_assis11.jpg" t8="true" width="243" /></a></div><div style="text-align: center;">Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908)</div><div style="text-align: center;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><em>''Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma tribo extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, as aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas.''</em></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><em> </em>Segundo a Bíblia, o homem foi criado a imagem e semelhança de Deus. A menos que Ele também esteja submetido à fragilidade e limitação da matéria, o homem jamais teve uma origem divina. Ao contrário, sua transformação em ser racional foi um 'acidente' na escala evolutiva. Mesmo que seja capaz de rir, diferenciar-se de seu próximo, discernir, raciocinar e antever a morte, o ser humano não é nada além de um animal. Há aqueles, entretanto, que enaltecem a capacidade de raciocinar, em detrimento de teorias criacionistas, como se o primado da razão lhe desse um poder maior sobre a Natureza - o topo da cadeia alimentar. Talvez seja isto verdade; não obstante, a condição animal não desapareceu.</div><div style="text-align: justify;"> Pode-se partir de observações simples que considerem as necessidades fisiológicas e de reprodução que exigem um esforço maior do organismo; e ir mais adiante até a impossibilidade de superar um dado universal: a violência. No entanto, a civilização, filósofa e científica, quer suprimir esta condição a todo custo. Eterno paradoxo! Aqui uma pequena tribo lutando por sua sobrevivência; ali uma nação querendo submeter a outra - e por que, eu pergunto, por que se, depois de séculos perseguindo o que é bom e o que é justo, os seres parecem não ter aprendido nada? Ou será que tantos pontos de vista nunca lograrão resolver nosso dilema, porquanto atrás de cada capa, espada, coroa ou cetro existe uma massa de carne perecível que nos torna iguais neste aspecto?</div><div style="text-align: justify;"> As prerrogativas da civilização compreendem o dever de preservação da Natureza; com o devido distanciamento, contudo. Sopeamos os gêneros e prolongamos a vida; desejamos a paz e a igualdade; vestimos roupas e comemos alimentos congelados - porém, e se nós nos depararmos mais uma vez com o campo de batatas? Faremos guerra ou morreremos de inanição? </div><div style="text-align: justify;"><br />
</div>β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4585250753360905335.post-57321894138057949382011-05-25T15:04:00.004-03:002011-05-31T22:59:54.191-03:00Proust e Dionísio<div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Eis que surge o Proust também, <em>No Caminho de Swann</em>!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">***</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br />
</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh17TvrD2PFzMjpZZMOeSUklMIAifE70hEFJ-RyuwZHFZgGeIQqgylpFJ-3_DPI2fBBerQIIDwKYuqY3ykK4gqFJ0w8-sBZ2NyKhLiAn_hDZIsYgktT5BpDpbMcOQcp3dA5LvCcQiH4D-Wc/s1600/proust.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh17TvrD2PFzMjpZZMOeSUklMIAifE70hEFJ-RyuwZHFZgGeIQqgylpFJ-3_DPI2fBBerQIIDwKYuqY3ykK4gqFJ0w8-sBZ2NyKhLiAn_hDZIsYgktT5BpDpbMcOQcp3dA5LvCcQiH4D-Wc/s1600/proust.jpg" t8="true" /></a></div><div align="center" style="text-align: center;">Marcel Proust (1871-1922)</div><div align="center" style="text-align: center;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><em>''Porém, por mais que eu ficasse respirando diante dos espinheiros-alvares, mostrando a meu pensamento que não sabia o que fazer com ele, a perder e a reencontrar, seu aroma fixo e invisível, unindo-me ao ritmo que as suas flores lançavam aqui e ali com uma alegria juvenil e a intervalos imprevistos como certos intervalos musicais, eles ofertavam-me indefinidamente o mesmo charme com uma profusão inesgotável, mas sem me deixar todavia aprofundá-lo mais, como as melodias que tocamos cem vezes seguidas sem escavar mais a fundo o seu segredo.''</em></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"> Este pequeno trecho me fez recordar a leitura recente de Nietzsche por um simples detalhe: a obra de Proust, que eu arriscaria chamar de Impressionista, pois que me faz visualizar cada quadro pintado em profusão de cores, a imaginar como seria a Combray de sua época; em breve passagem, evidencia sua união com a imagem vislumbrada, em torvelinho de sentimentos e inspirações que lhe emprestava a Natureza; ao modo de um homem dionisíaco - nas palavras do filósofo: ''Agora, graças ao evangelho da harmonia universal, cada qual se sente não só unificado, conciliado, fundido com seu próximo, mas um só, como se o véu de Maia tivesse sido rasgado e, reduzido a tiras, esvoaçasse ante ao misterioso Uno-primordial.''</div><div style="text-align: justify;"> Tal é a prerrogativa da arte: tornar-se um com o objeto; experimentá-lo, vivenciá-lo, incorporá-lo de maneira a representar, mesmo que numa quase totalidade, até que ponto ele toca. Proust, rememorando sua infância, compõe uma obra sinestésica, que empresta ao leitor os odores e os sabores de cores variadas; permitindo que o olhar retorne para sua própria vida, mudando de perspectiva e abrindo os sentidos para ampla percepção. Ainda que o intento do artista não seja este, mas criticar, despertar, criar novos mundos, enternecer; ele deve partir de si, do objeto que lhe é familiar; deve se revelar, colocar suas questões, seu pensamento, se fundir ao 'misterioso Uno-primordial' de sua arte. Escrever livros, por exemplo, acerca de temas alheios, termina em páginas retóricas e sem fundamento.</div><div style="text-align: justify;"> Neste tocante, vemos aí pessoas que se intitulam artistas aos borbotões. Confundem o termo com celebridade. Ou mais: há aqueles que submetem a sua produção ao jugo do mercado e a tudo fazem por encomenda - ou ao gosto do grande público. Devido a isso, vemos brotar cantores de uma música só, escritores e seus 'best-sellers', modelos que viram atores, todos para serem consumidos em dado tempo, explorados pela mídia e descartados. Muitos ganham seu quinhão; alguns logram a fama e a arte vai enfeitar prateleiras, às quais recorrem os chamados intelectuais, que pagam para afetar qualquer tipo de cultura picaresca de almanaque e não passarem por ignorantes. </div><div style="text-align: justify;"> Também existe uma outra classe de 'artista' que se julga muito talentosa. São aqueles que escrevem poesias sem rima e critério; são pintores de quadros abstratos; são dançarinos contemporâneos; são esses novos cantores que só valem pela melodia de suas canções, quando a letra é um fracasso. Ora, os meios de comunicação em massa transformaram estas categorias na ponta de lança, na vanguarda, em franca contradição com as celebridades de ocasião que tentam promover - no fundo, são tudo uma coisa só: pro-du-to. E, que fique claro, produto a ser consumido, pois não vale investir naquilo que não dá retorno financeiro! Fazer rabiscos em uma tela; rolar no chão e sacudir os braços; combinar porta com amor e contar histórias de bruxinhos até uma criança faz melhor!</div><div style="text-align: justify;"> A arte tem a função de conduzir, primeiramente o que a compõe, depois o expectador, à comunhão com aquele Uno-primordial; ela deve se fazer enxergar no cotidiano; deve participar, não obstante a mensagem que traga, da vida de cada um.</div>β λ Я α δhttp://www.blogger.com/profile/06845825574248138408noreply@blogger.com0