Aparício era um juiz que sonhava com o desembargo. Imaginava-se mil vezes tomando posse. Talvez porque viesse de uma família tradicional de magistrados. Desde a época do Império, dizia seu avô quando ainda era criança, seu bisavô já se tornara conceituado jurista; e de lá para cá, todos os homens - primos, tios ou irmãos - formaram-se advogados, procuradores e o próprio pai de Aparício, Aparício filho, foi desembargador. Portanto, daí a imensa responsabilidade - ''tornar-me-ei desembargador'', dizia de si para si, ''para não decepcionar papai''.
Em seu apartamento, de frente para praia, todo mobiliado com móveis de jacarandá, alguns até remanescentes da antiga casa vizinha ao Palácio do Catete; havia um desfile de fotografias dos ancestrais que davam ao bom sobrenome o orgulho de se ostentar na sala seu grande peso, que equivalia a ter um Caravaggio original. Está certo que o Guinard e o Brecheret não eram autênticos, porém serviam para emprestar àquela sala um ar moderno e sofisticado; mais para reafirmar que Aparício não parou no tempo.
''Este aqui foi meu avô'' -respondia com embófia caso perguntado- ''era amigo pessoal de Clóvis Bevilácqua!''; pensava intimamente que o poder judiciário deveria se sobrepor aos demais, porquanto não fosse eletivo. Não, não que se colocasse frontalmente contra a democracia. Só possuía uma nostalgia langorosa quando revia a imagem de seu batizado, ao qual compareceu Getúlio Vargas pouco antes de morrer. Teria dito que aquela criança seria um poderoso mandatário! Se tornou um juiz - indolente, roliço, de pés cascudos e pelos nos ouvidos, abandonado ao costume rançoso de olhar de esguelha as ancas da empregada enquanto fumava seu charuto. De quando em quando, sua esposa lhe gritava: ''não vais ao tribunal hoje?'', ao que ele respondia: ''amanhã, amanhã'' - e tornava às pernas, aos quadris da moça que se esforçava por dobrar a coluna para limpar embaixo do sofá.
Teve um filho que se salvou de chamar-se também Aparício. De vinte e dois anos, mais ou menos, que, depois de uma viagem a Orlando, decidiu que iria estudar música. Seu pai teve um achaque.''Como'' - interrogava-se - ''como pretende sobreviver de música?'' O rapaz tocava violão razoavelmente e guitarra, e foi graduar-se em oboé. Não possuía qualquer talento, todavia. E como nesta terra se faz artistas em cada esquina, achou que contava com o apoio dos pais. Ledo engano. Aparício ameaçou deserdá-lo se não se tornasse um advogado! Com o tempo cedeu e prometeu inclusive montar um estúdio para o filho.
Certo domingo, pela manhã, Aparício ainda se debatia na cama depois de um sonho ruim, quando ouviu-se uma bulha que se aproximava. Eram gritos e batuques que cada vez se faziam mais sonoros. O juiz, então, chegou na janela e viu que uma multidão, empunhando cartazes e faixas, repetia alto palavras de ordem que alguém berrava em um alto-falante.
- O que significa isto? Será que um homem de bem não pode mais descansar? - e passando a mão no telefone, ligou para a delegacia - aqui é o juiz Aparício! Tem um bando de baderneiros debaixo da minha janela! Onde já se viu? O quê? Protesto pela legalização do quê? Mais um motivo para o senhor mandar seus homens sentarem o malho nessa patuleia! Eu quero dormir, caramba! Eu sou juiz, eu baixo uma liminar, hein!
Logo a polícia chegou contundente, com porretes e bombas de efeito moral, dispersando toda a gente e fazendo alguns prisioneiros. Aparício, de sua varanda, sorria numa maliciosa satisfação, assistindo de camarote ao espetáculo. ''Essa juventude está mesmo perdida'', concluiu.
Passada uma hora, o telefone toca: era da delegacia. O filho de Aparício havia sido preso na manifestação. Vislumbrando um possível vexame, vociferou:
- Senhor delegado, onde nós estamos? Meu filho é um menino bom, honesto! Só mesmo neste país é que inocentes vão para a cadeia! Ele tinha todo o direito de se manifestar, oras! Afinal, vivemos ou não em uma democracia? - E batendo o telefone - era uma justa causa, oras!