segunda-feira, 18 de abril de 2011

Apenas um Sintoma

   Todos os meios de comunicação veicularam o trágico episódio ocorrido em Realengo até a exaustão. Valeram-se de termos diversos para desqualificar o causador e incitaram a opinião pública a julgar e a perseguir sob a máscara do papel informativo. O senso comum não tem o discernimento suficiente para separar a boa matéria; ele a tudo assume como verdade e sequer sabe diferenciar um psicótico de um psicopata. Aqueles que tinham a palavra, contudo, e a envergadura para contribuir em algum esclarecimento, nada fizeram além de prestar um deserviço. Não houve uma análise satisfatória da situação. Uns acharam por bem contextualizar; outros quiseram dar receitas para evitar futuros eventos similares; houve quem se aproveitasse para fazer campanha, para adotar medidas repressivas com as prerrogativas da segurança. Por fim, só pudemos assistir a desgraça alheia sendo explorada de forma vil, e a desfaçatez da comoção forçada de quem estava indiferente a tragédia.
   Então elegeram o bullying, palavra do momento, como culpado. E mais uma vez a Imprensa saiu-se mal: adotou modelos e distorceu conceitos. Bullying é um nome diferente, inglês, mas que não existia há anos atrás; serve para definir a execração de uma ou mais pessoas por seus colegas de escola. Pois bem, acreditam que a Justiça poderá dar conta de punir seus executores. E eu pergunto: como? Colocando crianças e adolescentes atrás das grades? Estabelecendo multas? Será que a demência dessa sociedade é tanta que não a faz ver que bullying é um problema de Educação? Que é no próprio colégio que nasce e deve morrer o tal do bullying? E, assim mesmo, o bullying pode não desaparecer. Afinal, bullying não se manifesta somente no colégio e de forma evidente. Ele pode ser velado, silencioso. E aí, haverá Justiça que dê jeito?
   O assassino de Realengo foi chamado de animal, e outra questão que se interpõe é: acaso a atitude de colocar a cabeça de alguém no sanitário e dar descarga é digna de seres humanos? Isto não foi dito. A vítima do bullying pode ter uma predisposição a sérios comprometimentos psiquiátricos, e como cada um reage de uma maneira, deu no que deu. Mas os homens de ação tratam o efeito como causa. Os pais e o colégio não assumem a responsabilidade da educação das crianças e seu peso recai sobre os professores. Agora, o jeito é remediar uma sociedade que está doente. Wellington foi apenas um sintoma.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Vontade e Civilização

   Cada ato de crueldade, que aos homens escandaliza, nos desperta para nossa terrível condição animal a qual a civilização não logrou sopitar. Está certo que temos a razão como aliada e que para a sobrevivência da própria civilização é necessária a manutenção de princípios morais e éticos - o que compreende não matar. Entretanto, passam idades, eras, épocas inteiras e a violência continua presente. E por que, pergunto eu, não podemos de vez superá-la?
   Dostoiévski, grande autor realista, nos fala, em um de seus livros¹, que, não obstante a ciência seja capaz de prever cada ação, ainda assim existirá a vontade dos humanos, classificados por ele como 'ingratos'. E essa vontade, em tempos de bem-aventurança, distorce maldosamente os mencionados princípios, pelo simples prazer de se contrapor à razão, parcela ignota da constituição física. Vamos a ele: ''Que é que a civilização suaviza em nós? A civilização só faz produzir no homem a diversidade de sensações, e decididamente nada mais. E, graças ao desenvolvimento dessa diversidade, acontece que homem pode acabar encontrando prazer no sangue. (...) Seja como for, se a civilização não tornou o homem mais sanguinário, decerto o fez mais perversamente, mais covardemente sanguinário do que antes. Antes, ele via no derramamento de sangue um ato de justiça e era de consciência tranquila que ele exterminava quem lhe aprazia; hoje, embora considerando o derramamento de sangue uma coisa abominável, entregamo-nos a essa abominação ainda mais frequentemente que antes.'' Mais adiante, ele continua: ''mas a razão é a razão, e satisfaz apenas a faculdade de raciocinar do homem, enquanto que a vontade é a expressão da totalidade da vida, ou seja, da vida humana inteira, inclusive a razão e seus escrúpulos; e embora nossa vida real, tal como se exprime assim, se torne às vezes má, nem por isso deixa de ser vida, e não uma extração de raiz quadrada. (...) Que sabe a razão? A razão só sabe o que aprendeu (...) enquanto que a natureza humana age com todo seu peso, por assim dizer, com tudo o que traz em si, consciente e inconscientemente; e, mesmo errando, vive. (...) Mas repito-vos pela centésima vez: existe um caso, um só em que o homem pode conscientemente, propositadamente, desejar o que é desvantajoso para ele, o que lhe parece estúpido, muito estúpido - simplesmente para ter o direito de desejar para si até mesmo o que é muito estúpido, e não ficar preso à obrigação de só desejar o que é sensato.''
   Ouvi, certa feita, que a maior tragédia do homem foi a civilização; a todo momento essa sensatez nos faz coibir, dentro de aspectos políticos ou religiosos, a Natureza que não consegue aceitar que Deus predestinou o homem a um destino sublime; que este homem é a imagem e semelhança do Ser Divino; esta Natureza que percebe possivelmente que o mundo conhecido é apenas mera ilusão, uma construção, e que seus valores são falhos, vagos e facilmente burláveis. A vontade está acima de qualquer estudo científico - ela não pode ser dissecada por fórmulas. O que é sensato, portanto? Pode o sensato suprimir sua vontade? Ou melhor: pode o homem dizer impossível que cometa um ato de sua vontade? Que julgue seu próximo como se estivesse imune à tal Natureza? A vontade está acima da civilização!


1: DOSTOIÉVSKI, Fiodor M. Notas do Subterrâneo. 6ª ed. Rio de Janeiro: Bertand Brasil. 2008.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Alienistas Alienados

   Dizer de Machado de Assis que era pessimista é pura retórica. Talvez porque buscasse entender a alma humana acima de todas as suas demandas - e reconhecia sua irremediável miséria. Provavelmente, será esta a sensação que o leitor terá nas páginas de O Alienista, onde um cientista procura pesquisar os males psíquicos que assolam os habitantes de Itaguaí, na virada do século XVIII para o XIX. Com muito humor, carregado, porém, de certa melancolia, Machado demonstra que o discurso racional nem sempre está associado aos métodos ortodoxos, antes feito de paliativo, valendo-se das prerrogativas da própria ciência para contraditoriamente prender pessoas sãs, as quais nada apresentavam de evidentemente anormal, e cuja conclusão é algo irônica. No fundo, nada passava de um ponto de vista de Simão Bacamarte, aquele quem dá título à obra; homem que gozava do respeito e admiração locais, mas que acaba provocando reações adversas da população. Humor com melancolia significa rir da frágil condição dos seres; rir um riso triste dos que pensam deter todo o conhecimento, mas que em verdade não entendem de nada. Antes: mesmo com o pouco adquirido, não percebem o extenso caminho a percorrer; ou ainda: a impossibilidade de percorrê-lo.
   E quantos alienistas não vemos atualmente? Quantos daqueles que nos dizem o que devemos comer, vestir e pensar? Frequentemente, médicos, psicólogos, pedagogos, advogados, administradores aparecem para interpretar a sociedade, indicar os novos rumos, entender o comportamento, o modo correto de agir. Não logramos abandonar o discurso civilizatório - e mais: padronizador, higienizante, condenatório - dentro de uma perspectiva racional, defendendo que isto, e não aquilo, é o melhor para todos. Se é administrador, como se deve portar-se em entrevistas, fazer um currículo e a que geração pertence; se é médico, a refeição mais saudável ou o exercício para não morrer logo; se é psicólogo, a atitude da pessoa que pode possuir algum transtorno que a deixe louca; se é advogado, a lei que pune quem não andar corretamente; se é pedagogo, como pais e professores devem domesticar suas crianças. Reitero: o discurso civilizatório é padronizante, higienizador e condenatório. Padrozinante, pois entende que todos são iguais e devem agir da mesma maneira; higienizador porque pretende identificar as enfermidades e curá-las, mesmo onde elas não existam; e condenatório quando estimula a perseguição através das leis.
   Mas é possível que a sociedade seja civilizada desta maneira? Há alguma fórmula que possa prever os desequilíbrios da mente ou do organismo; do pai, do patrão ou do professor? Alguma fórmula qual seja  para que possamos desfrutar da tecnologia dentro da devida moral? Ou será que os cientistas de nosso tempo não sabem que as leis, os compêndios, os remédios são insuficientes para tratar do caso dos seres humanos? Pois bem, sairemos sempre como alienistas, acreditando nesta fórmula, trancafiando a todos que parecerem destoar, que parecerem loucos; não somos capazes de enxergar a nossa diferença, a nossa particularidade, a nossa individualidade, intens a que o modelo não comporta. Somos alienistas alienados, os quais no fim descobrem que quem deveria estar internado no hospício éramos nós!

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Um Pouco Sobre a Justiça

   Recentemente, treze pessoas foram presas por protestarem diante da embaixada dos Estados Unidos durante a visita do presidente Obama. As treze pessoas manifestavam-se pacificamente, mas foram desabridamente repelidas e conduzidas a presídios. Não houve uma acusação formal, não houve um julgamento. Apenas a determinação de um juiz e a conivência da sociedade que, malgrado seu, não foi satisfatoriamente informada devido o caso ser assim sopitado pela grande imprensa. Uma breve nota de jornal, porém, guardou um imenso significado: a supressão dos direitos democráticos em prol de um bem maior. A frase é tão curiosa quanto a sua origem. Afinal, o que são direitos democráticos? E que bem maior é esse?
   O cidadão tem direito de protestar, tem direito de reivindicar e tem direito de se posicionar; e isso não somente em época de eleição, quando a Democracia é festejada. Se direita ou esquerda, cada um pode expressar-se, pois este é um princípio de uma sociedade que se quer livre e autônoma. Todavia, o passado nebuloso do Brasil insiste em reaparecer; passado onde havia autoritarismo e punição. E não por vias justas; por vias repressivas. Este fantasma não foi plenamente exorcizado - ele ainda nos assombra nas ações da polícia e, agora, nas medidas do judiciário.
   Certa vez, uma professora disse que o poder judiciário rivalizava com o executivo. Parece, entretanto, que o executivo encontra-se nulo. E pior: o legislativo e o mencionado judiciário, ora associados, fazem corroborar a idéia de que o bem público é algo privado. Ou será que não foi uma medida personalista, capaz de vencer a própria lei, que ordenou o encarceramento das treze pessoas sem um julgamento? Digo personalista, pois não se pode fazer prevalecer uma ideologia sobre outras dentro da Democracia - ou então teremos uma ditadura! Mais: teremos perseguições, proibições e encarceramentos propriamente ditos!
   Terrível precedente, péssimo exemplo! Isto demonstra que qualquer cidadão pode ser abordado, posto a ferros sob o pretexto da ordem, não obstante esteja exercendo o seu direito de manifestar-se. Isto demonstra que estamos vulneráveis diante das atitudes de qualquer pessoa que alcance um cargo notório, como o de um juiz, e que, valendo-se das prerrogativas, entenda que o certo é extrapolar suas reais funções! Tantas pessoas morreram em nome da Liberdade e olha aí, a História do Brasil é marcada por regimes autoritários e por golpes, de maneira que vivemos com o 'rei na barriga' e nos prosternamos até o chão às autoridades.
   Na aula daquela mesma professora, analisamos o código de 1830 e chegamos à conclusão óbvia de que quem legisla, legisla em causa própria - era assim com as leis do Império, é assim com as leis de hoje. Ao contrário do que era de se esperar: que as leis fossem constantemente revistas e questionadas; são tomadas como absolutas e, pelo visto, passíveis de serem burladas. Servem para que um calouro de direito, ou mesmo um desembargador, ufane-se, com a Constituição debaixo do braço, e diga que você poderá ser processado porque não sabe com quem está falando! O judiciário orgulha-se do seu prestígio e alardeia sua pretensão de agilidade, porém não consegue livrar-se da carga de um poder que pune ao invés de corrigir. Aí protagoniza este teatro canhestro prendendo treze pessoas que somente exerciam o seu direito de manifestar-se - coisa, aliás, garantida por lei.
   Enquanto elegermos o judiciário como aquele que realiza a vingança por nós, estaremos a mercê desse Estado desequilibrado, onde os poderes deveriam regular-se e não desaparecer uns diante dos outros.

sábado, 2 de abril de 2011

O Romantismo de Amélia

   Amélia é que era mulher de verdade - diziam; de fato, era moça, cabelos negros, pele alva, lindos olhos esmeraldinos, mediana, fresca, odor de rosas... Linda! Além de tudo era inocente. E sua inocência cativava. Se velha, pela candura e bondade; se amiga, pela atenção e deferência; se família, pelo respeito e devoção; se homem, pela beleza e ancas largas que fariam qualquer um fartar-se. Apetitosa! - Afirmariam antigamente - gostosa! - Diriam certamente nos dias de hoje.
   Amélia sonhava. Sonhava com um príncipe que lhe fizesse muito feliz. E ia aos poemas com certa volúpia, imaginando que um daqueles amores poderia estar guardado para si. Lia romances e se via resgatada, de toda maldade e todo o tédio, por um cavalo branco que a levaria ao castelo dos suspiros. Escrevia em seu diário, anotava a espera, contava os minutos e mirava a paisagem pela janela, apoiando a cabeça na mão direita, correndo os olhos pelos transeuntes, assistindo ao sol poente e depois, a lua majestosa! E ali, arfando da saudade de algo que não viveu, sentia poder rebentar de paixão por alguém que não existia. Caso se encontrasse sozinha, permitia correrem-lhe as lágrimas, as quais iam molhar a fronha de mais uma noite solitária.
   Todavia, dentre as reviravoltas da vida, surge o Dimas. Rapaz bonito, alto e de personalidade. Era desejado em segredo por muitas jovens do bairro; e invejado, talvez, por muitos outros que lhe tinham na conta de cafajeste - afinal, ainda que um canastrão de marca maior, Dimas saía com a mulher que quisesse. Certa feita, seus olhares se encontraram e Amélia sentiu palpitar-se inteira. Teve até um pouco de vertigem e mal pôde balbuciar um cumprimento quando Dimas veio falar-lhe. Foi em uma festa. Dali a alguns dias estavam namorando. Amélia escrevia seus versos, fazia desenhos de rodapé, vivia o amor em cada gesto como uma princesa encantada. Dedicava ao Dimas seus pensamentos, sua respiração e sua existência. Primeiros amores são assim: crê-se no enlace sempiterno, na sobrevivência e na eternidade do namoro. Uma breve nota, porém, deve ser observada: os pais da menina não aprovavam, mas ainda assim o recebiam em casa. Para ela, o fato da desaprovação emprestava um ar trágico a que todo o amor deve prosternar-se. Ou não seria amor. Na cabeça dela funcionava assim: amores impossíveis, fugas repentinas, sacrifícios são todos ingrediente de romance e felicidade. E temia, temia que ele morresse, temia ver-se separada de Dimas, temia não realizar todo o platonismo que, para Amélia, ganhava o clamor de um fetiche.
   Dimas, então, em um desses encontros tórridos e proibidos - no banco detrás ou na sombra da árvore; queria ir com Amélia às vias de fato. E tanto fez, tanto insistiu, que ela cedeu e armaram tudo para não perder o clandestino, o mistério. A fantasia de Amélia mistificou a união dos corpos, a comunhão que os tornaria unos, que sacramentaria o sentimento, mesmo que, em seu íntimo, achasse que deveria antes casar-se. Entregaria-se e quase não podia conter-se por isso!
   Dimas pegou um carro emprestado, buscou-a às oito e só parou próximo da rodoviária, em uma rua pouco iluminada e frequentada por tipos estranhos. O hotel ficava ao lado: construção baixa, de três pavimentos, parecendo exceder em idade devido a sua decadência. Dimas e Amélia subiram as escadas escuras e chegaram no andar do quarto: uma porta empenada abria-se para um cubículo que cheirava a mofo. Havia infiltrações pelas paredes, um colchonete, uma lâmpada pendurada por um fio e insetos, muitos insetos. A moça não esperava por aquilo, não era aquilo que ela havia imaginado. Dimas acendeu um cigarro e foi tirando a roupa; em seguida, forcejou por tirar a dela. Depois de alguma insistência, ambos enfim deitaram e ele pediu que ela fizesse coisas imundas, além de gritar um palavriado baixo e tentar agredi-la. Nua após o ato, deixou-o deitado de lado e foi banhar-se. Não havia tábua no retrete; um cano fazia jorrar a água gélida sobre ela e um sabãozinho de coco serviu-lhe para lavar a intimidade cheia de sangue.
   O romantismo de Amélia morreu  naquele quarto barato de um hotel ordinário, nos braços de um homem cuja vontade era destruir-lhe a pureza... nada mais...