sexta-feira, 8 de abril de 2011

Vontade e Civilização

   Cada ato de crueldade, que aos homens escandaliza, nos desperta para nossa terrível condição animal a qual a civilização não logrou sopitar. Está certo que temos a razão como aliada e que para a sobrevivência da própria civilização é necessária a manutenção de princípios morais e éticos - o que compreende não matar. Entretanto, passam idades, eras, épocas inteiras e a violência continua presente. E por que, pergunto eu, não podemos de vez superá-la?
   Dostoiévski, grande autor realista, nos fala, em um de seus livros¹, que, não obstante a ciência seja capaz de prever cada ação, ainda assim existirá a vontade dos humanos, classificados por ele como 'ingratos'. E essa vontade, em tempos de bem-aventurança, distorce maldosamente os mencionados princípios, pelo simples prazer de se contrapor à razão, parcela ignota da constituição física. Vamos a ele: ''Que é que a civilização suaviza em nós? A civilização só faz produzir no homem a diversidade de sensações, e decididamente nada mais. E, graças ao desenvolvimento dessa diversidade, acontece que homem pode acabar encontrando prazer no sangue. (...) Seja como for, se a civilização não tornou o homem mais sanguinário, decerto o fez mais perversamente, mais covardemente sanguinário do que antes. Antes, ele via no derramamento de sangue um ato de justiça e era de consciência tranquila que ele exterminava quem lhe aprazia; hoje, embora considerando o derramamento de sangue uma coisa abominável, entregamo-nos a essa abominação ainda mais frequentemente que antes.'' Mais adiante, ele continua: ''mas a razão é a razão, e satisfaz apenas a faculdade de raciocinar do homem, enquanto que a vontade é a expressão da totalidade da vida, ou seja, da vida humana inteira, inclusive a razão e seus escrúpulos; e embora nossa vida real, tal como se exprime assim, se torne às vezes má, nem por isso deixa de ser vida, e não uma extração de raiz quadrada. (...) Que sabe a razão? A razão só sabe o que aprendeu (...) enquanto que a natureza humana age com todo seu peso, por assim dizer, com tudo o que traz em si, consciente e inconscientemente; e, mesmo errando, vive. (...) Mas repito-vos pela centésima vez: existe um caso, um só em que o homem pode conscientemente, propositadamente, desejar o que é desvantajoso para ele, o que lhe parece estúpido, muito estúpido - simplesmente para ter o direito de desejar para si até mesmo o que é muito estúpido, e não ficar preso à obrigação de só desejar o que é sensato.''
   Ouvi, certa feita, que a maior tragédia do homem foi a civilização; a todo momento essa sensatez nos faz coibir, dentro de aspectos políticos ou religiosos, a Natureza que não consegue aceitar que Deus predestinou o homem a um destino sublime; que este homem é a imagem e semelhança do Ser Divino; esta Natureza que percebe possivelmente que o mundo conhecido é apenas mera ilusão, uma construção, e que seus valores são falhos, vagos e facilmente burláveis. A vontade está acima de qualquer estudo científico - ela não pode ser dissecada por fórmulas. O que é sensato, portanto? Pode o sensato suprimir sua vontade? Ou melhor: pode o homem dizer impossível que cometa um ato de sua vontade? Que julgue seu próximo como se estivesse imune à tal Natureza? A vontade está acima da civilização!


1: DOSTOIÉVSKI, Fiodor M. Notas do Subterrâneo. 6ª ed. Rio de Janeiro: Bertand Brasil. 2008.

Um comentário:

R-E-N-A-T-O disse...

Bem crítico e realista como de costume. Gostei muito, parabéns por escrever de maneira tão explicativa sobre um tema tão controverso.