terça-feira, 22 de junho de 2010

Cálice de Sangue

   Em Paris, nos idos de 1794, o medo se materializava no cheiro de sangue coagulado do ar viciado pelas sucessivas mortes do período do Terror. Os rumos da nova República Francesa eram observados com acuidade pelos olhos temerosos dos habitantes, mergulhados na treva de incerteza do rumo que tomaria a política de perseguições do cidadão Robespierre. A diversão mórbida da leviandade alheia era fixar-se na lâmina momentos antes de despencar sobre o pescoço de algum condenado; o rufo dos tambores anunciava o espetáculo grotesco, o qual era assistido bem de perto pela Morte. Eugène estava presente quando a cabeça de Luís XVI foi erguida pelos cabelos para que toda a turba o contemplasse, pela última vez, e o rechaçasse como o Judas da Nação. Insuflado pela curiosidade e excitado pela vil escumalha, que urrava diante da laboriosa guilhotina, aparecia com ar debochado na taverna dizendo: -mais tantas decapitações! Arre! Creio que tinha até gente conhecida! - E dava uma risadinha de soslaio.
   É certo que Eugène tinha prazer; não possuía qualquer credo ou moral, nem freios que lhe calassem no fundo da consciência este tal prazer. Não que desejasse a morte de outrem. Seria incapaz de pegar em garrucha ou navalha para tirar uma vida. Porém, vindo a condenação pelas mãos de terceiros, achava realização sombria, advinda do canto mais escuro de seu ser. No início até cerrava as pálpebras para livrar-se da aterradora imagem da guilhotina. Passou a olhar de esguelha e depois a fitar todo o quadro - as execuções despertavam a pior face do gênero humano: o que chamaram posteriormente de sadismo. Acompanhava o resultado no mesmo interesse que os demais e estremecia no torvelinho de pranto, agonia, de grito e vibração - réquiem de Morte.
   Era um época de histeria, de desconfiança e de medo, sobretudo medo. Qualquer consideração acintosa do que se passava poderia valer uma subida ao patíbulo. Foi naquele ano de 1794, mais ou menos no Germinal, que um tal Lafitte veio arrumar contenda com Eugène. Parece, dizem, que eram amigos havia muitos anos e brigavam por causa de uma jovem donzela de nome Charlotte, peixeira do mercado, feiosa e coxa. Os dois beberrões de má fama saíram a socar-se, derrubando mesas e cadeiras e, uma vez separados pelos outros homens que ali estavam, Lafitte jurou vingança: - ainda hei de beber seu sangue, miserável! - vociferou empunhando um cálice de estanho - hei de beber neste cálice! - Eugène limitou-se a rir. Na manhã seguinte, Eugène, que dormia em um catre nos fundos de uma pensão sórdida, foi acordado pelo som alto de porta batendo: três soldados entraram pelo quarto e, ainda sob efeito do àlcool, Eugène foi levado ao cárcere. Acusaram-no de traição, porquanto afirmavam ouvirem-no bradar que torcia para que a Áustria derrotasse o exército revolucionário e acabasse com a infâmia de Robespierre. Não adiantaram os apelos e as negativas; julgaram-no sumariamente - seria executado!
   No dia em que subiu ao cadafalso, seus olhos embaciados divisaram o imenso anjo a sorrir-lhe um sorriso metálico e afiado; algumas lágrimas escaparam-lhe e, por fim rendido, deixou que a música sinistra dos tambores o elevassem a um estado de conformidade, arrastando-o à solução derradeira das dores do homem - morria e era inocente. Seus cabelos cortados deixavam o pescoço nu para receber o golpe final - escuridão e silêncio perpétuos. Entre a pilhéria da bulha e o cadáver decapitado, uma figura obscura estendeu a mão e com um cálice de estanho, recolheu algumas gotas do sangue, pingado do alto do estrado de madeira, sorvendo o líquido vermelho como se fora vinho.

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