quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

saLdades eternas

  Bete era uma ex-atriz; malograda, diga-se de passagem. Não passou de apresentações de várzea e o máximo a que chegou foi a encenação em uma quermesse. Porém, nutria a fantasia de que era, ou seria em qualquer dia, algo reconhecida, pois mantinha viva a chama poética correndo em suas veias dramáticas. Quando afirmava isso, estava já a tal ponto alta que ninguém lhe levava a sério. E não era de se levar. Bebia um vinho, uma cervejinha, dançava em seus tamanquinhos uma melodia mais agitada e recitava Pessoa. Depois alguém a carregava para casa. 
  Feiosa, estrábica, roliça, mulher de meia-idade, aparecia sempre com roupas impróprias: uma sainha mais curta, um vestido mais apertadinho; somando às unhas vermelhas, à meia arrastão, aos beiços roxos de batom. Tingia os cabelos e, por fim, nada combinava. Gostava de jovens, jovenzinhos, sabe? Podia ter uns vinte, uns trinta; mas velho acima dos sessenta? Jamais! Queria roçar as coxas entre as pernas de um pangaré, sentir uns braços fortes lhe agarrando, uma respirada mais contundente em seu perfume barato, seus seios esmagando-se em peito cabeludo. Entretanto, ninguém queria deitar-se com Bete.
  Possuía uns amigos desvairados, amigos de bar. Amigos de palavreado frouxo, baixo; amigos sem amarras, sem pudores - personagens decadentes que, por discutirem política ou qualquer filosofia torta, odiarem religião, xingarem o pai e a mãe, terem um filho em cada casa; descobrirem autores que ninguém lia, no olhar de Bete eram seres arrojados, embora não fossem além de bêbados enfadonhos.
  Nas festas, Bete dava vexame. Não que se embriagasse. Catava os doces, pedaços de bolo, arranjos da mesa, enfiava tudo na bolsa; e no velório? Bem, a viram fazendo sinal para um carro carregando uma coroa de flores. Por isso todos falavam dela. Sorriam risos mascarados, e falavam dela. Tanto que pararam de convidá-la, fosse para o que fosse. E ficava ela, no quarto e sala alugado cheirando a mofo, sobrevivendo do que não fora...
  Três semanas se passaram sem que vissem Bete novamente. A síndica foi cobrar as taxas atrasadas. Bateu, bateu, esmurrou a porta - e nada... Nada! Bete havia sentado em frente a uma penteadeira, cheia de fotografias presas aqui e lá. Lembravam o passado, de quando era jovem, de quando era... Sei lá. Só via agora uma boneca triste, desengonçada, de quem todos recordavam com graça, a quem nunca um homem quis se unir. Esticou a face e concluiu: ''estou velha e não vi o tempo passar''. Esvaziou uma cartela de calmantes e virou um copo de conhaque ordinário. Deitou-se na cama desarrumada com suas fotografias...
  Três semanas se passaram e encontraram apenas um corpo que dormitava. Na capelinha, somente a síndica compareceu. Uma velinha de sete dias brilhava e na parede, uma coroa onde estava escrito: ''saLdades eternas''.

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