segunda-feira, 20 de abril de 2015

Cruz dourada

 Anselmo via esmaecer as cores da tarde. O rio corria numa placidez morna, refletindo as silhuetas das breves árvores que por sobre lhe caíam. A brisa corria abúlica, agitando com leve toque a vegetação do bosque. O rapaz quase dormitava recostado a um tronco, e suas mãos, mecanicamente giravam um pequeno talo em flor. Sorria naquele estágio de quase abandono da vigília, onde os sonhos se confundem com a realidade. Esperava uma vida longe dali, uma vida de encantos em que habitariam apenas ele e seu amor. E como sentia-se pleno, a ponto de quase extravasar, de quase entornar, banhando com um sentimento rutilante o mundo inteiro! Entretanto, seu mundo, por ora, não excedia os limites da Pavia. Intentava atravessar os Alpes, quem sabe visitar o Sacro Império, a França; quem sabe ir aos turcos, à Jerusalém - mas não, não pensou nos obstáculos, não pensou que... Um barulho! O jovem despertou - é ele quem se aproxima! - Levantou-se e quando já corria ao encontro de quem esperava, viu um homem. Estacou por um instante, confundido pela aparição de alguém por quem não esperava - alguém o teria descoberto? Aquele homem nada disse. Apenas limitou-se a desembainhar uma adaga e, com um golpe rápido, abriu uma fenda no pescoço de Anselmo. Uma catadupa sanguinolenta embebeu as vestes arminhas, tingindo em seguida o gramado quando o corpo jazeu ao chão. 
 Ser nomeado bispo da Pavia não foi mero acaso. Magno não tinha uma origem abastada, todavia, sua família sempre esteve relacionada aos duques de Milão. Não se sabe bem ao certo como seus ancestrais chegaram ao castelo dos Sforza. Sabe-se somente que eram cortesões que privavam de alguma intimidade de suas altezas. Desde cedo, Magno entendeu as regras do jogo político e passou a desejar algo além, fazendo o que fosse necessário. A vontade era maior que o talento e suas tentativas atabalhoadas redundavam em resultados canhestros. Tentou seduzir uma parente dos Sforza, moça bonita e voluntariosa, que riu-lhe na cara assim que conheceu suas intenções. De outra vez, chantageou  um rico comerciante de Gênova, de passagem pela cidade, depois de vê-lo forçar uma das criadas do castelo a atender-lhe os desejos enquanto sua esposa dormia nos aposentos cedidos pelo príncipe. Desistiu quando percebeu que suas forças não bastavam para enfrentar o porte e a espada do tal comerciante. 
 Foi medíocre e estava prestes a sucumbir ao ostracismo palaciano quando o duque de Sforza o mandou chamar. O bispo da Pavia morrera depois de lutar muito com as dores atrozes de uma úlcera estomacal. Roma decidira por nomear alguém de uma família rival aos Sforza. O que talvez fosse motivo para guerra, diluiu-se na saída diplomática adotada: um bispo neutro, não vinculado a qualquer clã, assumiria o bispado e, escrevendo ao Papa, Sforza indicou Magno para o cargo. Os meandros da negociação são desconhecidos, pois a situação não representou um grande evento político da História milanesa. O fato é que, dentro de algumas semanas, Magno entrava na Pavia como o novo bispo.
 No caminho para lá, sonhou grandezas, fez planos e esqueceu que jamais fora padre, que tinha sido inventado para tapar um pequeno buraco diplomático. Imaginou-se Papa, regendo toda a Cristandade, organizando Cruzadas, excomungando desafetos, adornando-se de ouro e relíquias no trono de São Pedro. Ao sair da carruagem, viu um jovem pajem na singela comitiva que o aguardava. Por um instante mirou o olhar cabisbaixo e sereno do rapaz imberbe, bem feito de corpo, não muito alto, de lábios finos e cabelos em caracóis. Sentiu algo estranho agravado ao jantar quando, à noite, reuniu-se aos padres subordinados, que conheciam a farsa do novo bispo, mas a tudo anuíam sem reclamar. O jovem lá estava... 
 Deitou-se sem conseguir dormir. Queimava e não sabia por quê. A imagem dele reaparecia incessantemente. Semanas se passaram sem que aquela impressão se desfizesse e, a cada vez que o pajem se aproximava, era um lenho a mais na fogueira. Houve, então, uma reação sensível ao pecado que aquilo representava; e não houve oração que afastasse seus pensamentos corrutos. O cinismo de uma fé aparente transmutou em crença sincera - afinal, Deus existia e tinha medo do Inferno. Porém, não lhe eram estranhos tudo o que se comentava sobre o que se passava no seio da Igreja: simonia, intrigas, assassinatos e... luxúria!
Resolveu chamar o rapaz em seu apartamento em segredo.
- Como é seu nome?
- Anselmo.
- Anselmo, dispa-se. - E, vendo o corpo nu, consumaram o ato. E o bispo queria mais e mais; não havia noite mais em que Anselmo não subisse secretamente ao quarto de Magno.Se aquele o fazia por obrigação, mera sobrevivência; se este tinha um medo genuíno das consequências que daí adviriam, é impossível saber. Ao cabo de dois ou três meses, Magno percebeu que não queria outro - Anselmo era seu preferido. Assim tornou-o seu protegido, dava-lhe presentes, deu-lhe também alguma instrução, livrava-o de certas situações e gerava desconfiança nos demais criados e padres. Certo dia, recebeu uma carta confusa do duque Sforza e Magno entendeu que estava prestes a perder o bispado. Sem meios, agora, sentiu-se sozinho e a única figura que lhe dava alento era Anselmo. E pela primeira vez sentiu que o amava. 
- Anselmo, vamos fugir. - E prometeu-lhe o Paraíso - iremos aonde quiser, longe, bem longe daqui! Não posso perdê-lo! - Anselmo quedou-se feliz. Combinaram dia e hora, como tudo deveria ocorrer: no bosque, na estrada que seguia para Gênova. 
 Antes da hora acertada, Magno rezava genuflexo diante de um crucifixo de ouro na principal igreja da cidade. Pedia perdão incessantemente e estranhava a religiosidade repentina que o amor lhe despertara. Um mensageiro adentrou a nave e, interrompendo a meditação do bispo, entregou-lhe outra carta de Sforza: o príncipe o convocava à Roma! Sim, talvez perdesse o bispado, mas em vistas de coisas maiores; talvez se tornasse cardeal! Papa! Em meio ao torvelinho megalômano, olhou para a cruz dourada e lembrou-se de Anselmo.
- Agora não, agora não posso mais! - Mandou chamar um conhecido mercenário com celeridade e, entregando-lhe a cruz de ouro, disse: - tens já aqui o perdão do ato que irá cometer - benzeu-se e despediu aquele homem com a missão de ir procurar Anselmo no bosque.
 Anselmo não sentiu a frigidez da água quando seu corpo foi atirado ao rio Ticino. Hoje é lá que ele repousa. 
  

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Alda

   Havia terminado de temperar a carne e colocado uma linguiça no furo aberto no meio da peça, preparando-se para levá-la ao forno, quando ouviu palmas vindas do lado do portão. Depositou o tabuleiro na mesa, limpou as mãos no pano e foi até a porta da frente.

- Guilherme! Que bom vê-lo novamente, primo! - dizia ao homem que batia palmas diante daquela casinhola de vila no bairro do Méier. 
- Alda! - exclamou abraçando a moça. 
- Entre, entre! Vou assar uma carne para o almoço! Fez boa viagem?
- Ah, cansativa. Cheguei de Cantagalo há umas duas horas, e como não conheço essa parte do subúrbio, tomei um carro de praça, mas me enrolei todo com o endereço e, por fim, o motorista me deu uma facada! Sacripanta! - Guilherme depositou a maleta que trazia no sofá e tirou o chapéu: - faz muito calor aqui! E Bruno?
- Logo chega. Quer um suco? Mamãe deixou umas graviolas aqui ontem...
- Não, não gosto de suco de graviola. Fico satisfeito com um copo d'água. E a tia, como está?
- Muito bem! Ninguém diz que ela se avizinha dos setenta. Venha até a cozinha, tenho que terminar o almoço e, enquanto isso, vamos conversando. Fica até quando?
- Domingo. Tenho que estar em Barra Mansa na segunda-feira. Sabe como é vida de caixeiro.

   Alda trajava um vestido florido, leve como um dente-de-leão, pronta a desfazer-se ao menor sopro. Seu corpo inteiro sorria ao abrir dos lábios finos que exibiam uma fileira de pétalas brancas. O perfume doce embriagava a pele, ou caule, daquele vivo girassol. Onde o amor cantasse, parecia, para lá se voltava. Guilherme não deixou de notar tal aprumo na prima que há muito não via. 

- A casa é boa.
- Não é muito grande, mas é confortável. Temos o quarto onde eu e Bruno dormimos e o quarto de hóspedes. Se vier o bebê, lá será o cantinho dele.
- Ora, não sabia que estava grávida! - exclamou o rapaz.
- Não, não estou. Mas pretendo. Um dia. Bruno não gosta muito da ideia, diz que vai tirar nossa liberdade. Bobagem, eu ainda vou convencê-lo. Tenho certeza que ficará todo derretido quando vir a carinha do nosso filho. Por enquanto, não temos condições. Ah, e por falar nele...

   Um homem alto e moreno entrava fazendo estrondo com a porta de vidro. Trazia os antebraços despidos e a camisa aberta no peito: - pombas, faz calor!

- Bruno, lembra do primo Guilherme?
- E aí, tudo bem? - apertou com força a mão do rapaz, quase a sacudi-lo todo - Alda, eu vou tomar um banho. 
- Bruno anda meio nervoso com o escritório. Ele é contador, você sabe, e parece que andam tirando o couro dele. - dizia Alda que tentava emendar o marido. 

   Durante o almoço, servido na mesa de mogno da sala, Bruno devorava com apetite a carne: - filha, traz o sal, você não temperou direito! Hum, suco de quê? Não gosto de graviola, Alda! Sua mãe insiste em trazer isso lá do quintal dela! Tem cerveja? Pegue para mim! - no mais falava sobre o escritório, política e sobre as últimas partidas do time predileto. Guilherme conversava, ria por vezes e aumentava a voz para acompanhar, com simpatia, os arroubos do anfitrião. Todavia, não deixava de notar que ele mal se dirigia à esposa e que Alda, mesmo sorrindo, tinha o olhar apagado. 

- Alda, eu vou tirar um cochilo. - Bruno levantou ao terminar o almoço - Não, tomo café mais tarde, não quero tirar o gosto da comida. - disse após a esposa colocar xícaras na mesa. Ele entrou no quarto, acendeu um cigarro, e ficou só de calções. Pela porta entreaberta, via-se seu corpo de bruços esparramado na cama. Roncava alto. 

   Naquela noite, Guilherme acordou encharcado. A temperatura, que durante a tarde aumentou, parecia não ter amainado, e somente uma brisa tépida entrava pela janela escancarada. Olhou o relógio, eram duas da madrugada. Levantou-se e chegou à janela para distrair-se observando o sono da vila, porquanto o seu mesmo havia perdido. Depois pensou em ir tomar água. Ao pôr o pé  na sala, ouviu o soluçar de alguém que chorava. Aproximou-se do umbral da cozinha e viu Alda sentada de costas.

- Alda? - antes de chamar por ela, o rapaz havia notado que o tecido suave e transparente da camisola, tocava a pele leitosa e delicada daquele corpo fornido. As finas alças delineavam as curvas dos ombros e vinham cair como filetes onde os seios se insinuavam. Placas rubiáceas davam outros tons ao colo, fazendo parecer um quadro da alvorada. Os cabelos castanhos caíam-lhe por sobre a face, que apoiava nas costas da mão direita do bracinho gordo, cujo cotovelo recostava sobre a mesa. 
- Guilherme, desculpe, eu acordei você?
- Não, não. O que houve? 
- Ah, Guilherme... - e a moça desfiou o rosário. - No começo, ele me amava, eu acho, mas agora não me procura mais! Passou a voltar tarde do escritório e se eu pergunto onde estava, ele quase bate em mim! Chega bêbado, a roupa cheirando a perfume barato! Já disseram que ele tem uma amante lá no Grajaú! Uma amante, Guilherme! Você viu hoje? Ele mal falou comigo. Acordou depois daquele cochilo, saiu novamente e voltou à meia-noite! O que faço, Guilherme, o que faço? - Alda, em prantos, achegou-se a ele. Guilherme a beijou no rosto sem dizer nada. Ela o olhou: - quero beijar as covinhas do seu rosto quando sorri. - e quando ele concluiu a frase, seus corpos se encontraram com ardor. O rapaz desnudou os seios de Alda e, segurando-os, virou-a para deitar seu tronco na mesa. Possuiu-a com desejo. Os gemidos ecoaram na noite quente da casinhola de subúrbio. E imediatamente acorreu à memória de Alda uma frase que leu em um conto de jornal: ''as carnes assaram no suor corruto''. 

***

   No domingo, Alda e Bruno foram levar Guilherme até a rodoviária. O ônibus sairia às quatorze. Despediram-se quando o motorista pegou o bilhete. Bruno apertou forte a mão de Guilherme; Alda delicadamente o abraçou e, sussurrando em seu ouvido, disse:

- Obrigada. 


sábado, 12 de outubro de 2013

Mais uma entrevista com uma socialite

Entrevistador: - estamos aqui com ela, que sempre frequenta nosso programa, e está inaugurando sua cobertura em Nova York: Lucinha Lafourd!

Socialite: - olá, pessoal, tudo bem? É maravilhoso estar com vocês novamente.

Entrevistador: - então nossa querida socialite se mudou para Nova York? Vai fazer falta no Brasil...

Socialite: - não, não deixarei o Brasil. Eu comprei essa cobertura porque tem uma vista linda para o Central Park, daqui de cima consigo ver a cidade inteirinha. Mas jamais deixaria o Brasil. O Brasil é maravilhoso, gente! 

Entrevistador: - então foi um mimo que você deu a si mesma...

Socialite: - ai, gente, não queria falar, não, mas foi o John. O John, meu novo namorado, me deu de presente, sabe? Eu venho pra cá, tomo meu champanhe vendo essa vista linda... Não é maravilhoso, gente?

Entrevistador: - diz pra gente, por que você está toda trabalhada no verde e amarelo?

Socialite: - ah, eu estou acompanhando essa onda de protestos e torcendo muito pelo nosso povo, que é um povo sofrido. Eu acho que chegou um momento que as pessoas cansaram de corrupção, de desigualdades sociais, de falta de saúde, de educação e resolveram ir para a rua reclamar seus direitos. É isso aí, dou meio apoio daqui de Nova York.

Entrevistador: - estou vendo, comprou bandeirinhas, boné, camiseta...

Socialite: - e estou fazendo o maior sucesso aqui. Eu e uma amiga montamos uma grife que só vende esses itens. E você pode entrar na nossa página e customizar. Lá tem camisetas, broches, bonés, bolsas, anéis tudo com essa temática de hoje em dia. Aí a pessoa entra e pede, por exemplo, uma camiseta com a frase ''vem pra rua'' e a gente manda entregar onde for. Meus amigos daqui adoraram a ideia, vários deles estão comprando, porque eu digo sempre: gente, vamos torcer pelo Brasil.

Entrevistador: - e como as pessoas daqui estão encarando esse movimento que tomou conta do nosso país?

Socialite: - todo mundo acha maravilhoso. Eu fico feliz porque no Brasil nunca houve isso, nunca houve essa revolução. Aquele povo que não trabalhava, que não exigia seus direitos, não existe mais. Está na hora dessa gente mostrar que tem valor!  Outro dia, fui com John em um jantar de negócios que ele tinha com uns alemães. Eles me adoraram e perguntaram mil coisas sobre o Brasil. E nós, formadores de opinião, temos a obrigação de quebrar preconceitos, entendeu? Aproveitei e fiz a propaganda da nossa lojinha virtual, que ninguém é de ferro. Mas, gente, sério, não é porque eu tenho uma situação financeira um pouco melhor que não vou fazer parte de tudo isso que está acontecendo.
Entrevistador: - e quando você volta para o Brasil?

Socialite: - deixa passar um pouco toda essa confusão, vou curtir mais a Big Apple...

Entrevistador: - você quer deixar uma mensagem para nosso expectador que está no Brasil?

Socialite: - quero dizer que violência não está com nada, que as pessoas podem protestar, mas pacificamente, sem vandalismo. Eu fico triste quando vejo a polícia tendo que conter aqueles manifestantes mais exaltados, sabe? Mas é isso aí, vamos brindar aqui pelo futuro do nosso povo, com esse champanhe magnífico, desejando tudo de melhor. Porque, gente, o povo brasileiro é maravilhoso!
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CONFIRA AQUI A ÚLTIMA ENTREVISTA

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Cotovelo & Prazer

   Eis que surge uma nova tese. E que sirva de refrigério ao hálito tépido expelido pela Academia; o comprovamos empiricamente: cotovelos podem ser altamente libidinosos. Um toque basta. Ora, desde que a licença dominou os povos que um pulso deixou de ser objeto de desejo. Pois bem, também um cotovelo. Não, não, não que alguém vá ficar tremendamente comovido com as vistas de um. Porém, a título de prova, farei um relato: Camilinha tinha dezesseis anos e jamais houvera despertado para os amores desta vida. Mesmo que suas amigas atafulhassem seus ouvidos com relatos de descobertas feitas atrás das portas dos banheiros escolares. Estava alheia e sequer possuía curiosidade suficiente para tais movimentos. Ia de casa ao colégio, do colégio para casa. Lia revistas sobre o astro preferido e enfeitava a cama com bonecas e ursinhos. Certo dia, como o ônibus que tomara estivesse cheio, parou de pé ao lado de um rapaz, este sim, sentado. Ergueu os braços para se segurar e projetou o corpo um pouco adiante. O rapaz estava com o cotovelo apoiado no braço do assento e encontrou-se, por engano, com as intimidades de Camilinha. O balanço da condução e o tanto de passageiros que se esforçavam naquele aperto por sair, forcejavam ainda mais o toque. Foi quando ela sentiu algo diferente e baixou a cabeça para ver a quem pertencia o cotovelo: um rapaz belo, distraído, sonolento; Camilinha não fez caso e suavemente continuou o jogo de empurra. O nó da articulação pressionava o sexo fazendo-o gotejar. A menina suspirou, só não imaginou nada. Apenas entregou-se ao balanço do corpo. A respiração intensificou-se e seu arfar produzia ruídos leves. Veio-lhe a descoberta. Camilinha saltou se sentido suja, e rindo da situação. Camilinha despertou enfim a puberdade e pensou em duas pessoas sentadas, dividindo o mesmo banco, quando inopinadamente os cotovelos se esbarram: a pele, tecido elástico, afunda e adere. Um contato corpóreo entre seres mutuamente desconhecidos. E basta um instante para que estejam ligados, numa troca despropositada. Ali se dá um encontro e margem a mil pensamentos, ou a nenhum, apenas à sensibilidade e o efeito de um beijo, de um abraço, de um aperto, de um arrepio. Camilinha nunca escondeu os pulsos, os ombros e os tornozelos. Ela percebeu, entretanto, o que suas amigas no banheiro jamais perceberiam: um toque responde por mil sensações e, convenhamos, cotovelos são bem persuasivos! 

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Eu Matei Roderick D.

   É difícil admitir, mas ele era meu irmão. Saiu aos vinte e um anos de casa e sumiu. Ficamos sem saber o paradeiro dele por uns três anos, até que, passando diante de uma banca de jornal, vi seu rosto estampado em uma publicação pornográfica. Imagine o tamanho do meu aturdimento ao vê-lo naquela revista. Tanto tempo sem notícias para reencontrá-lo assim, sorridente, de capa, seminu e abraçado a uma mulher. O título que trazia era infame e o nome, bem, o nome não era mais aquele, era Roderick D.: descrito como um elemento viril e belo; exposto, entretanto, feito carne, trespassada por um gancho na vitrine de um açougue.
   Levei a revista para casa e assisti o filme do encarte: Roderick coadjuvava a maior parte das cenas, emprestando seu nome, quase consagrado, para vender uma quantidade maior de publicações do gênero. Era estranho, muito estranho, ver meu irmão daquela maneira. Não pensei tanto na vergonha que causaria aos meus pais, todavia no que levava uma pessoa a dispor de seu corpo para o consumo geral, tornando públicas suas intimidades, suas reações, seus desejos, para que outros gozassem por ela. Seria o dinheiro? Nunca lhe faltou nada! Não poderia ser por necessidade, oras! O que o levaria a deixar sua família para ganhar a vida desta maneira? Não pude responder. Roderick continuava lá, gemendo e trincando os dentes, para inundar repetidamente o corpo de suas parceiras com líquido grosso e quente.
   Chorei. E mais do que isso: estive perturbado por uma semana. Concluí que estávamos todos doentes: eu, meus pais, meu irmão, aquelas mulheres e seus consumidores. Chorei e tive raiva. Meu pai e minha mãe não mereciam o desgosto de ver o filho, constantemente rememorado e sentido, transformado agora em... Em... Roderick D! Passei, então, a adquirir tudo o que dissesse respeito a ele: filmes e revistas no intuito de descobrir seu paradeiro. Foi quando encontrei o telefone de uma produtora e lá me deram sua direção: estava em São Paulo. Pedi o carro a meu pai e viajei por mais ou menos seis horas. Fui achar seu endereço na região central da cidade; num trecho conhecido por ser reduto de viciados e bandidos de toda espécie. Ali havia acomodações das mais baratas. Parei diante de um prédio antigo, geminado a um hotel, cuja entrada ladeava uma loja de ferragens. O portão estava só encostado, e após atravessar um longo corredor, subi as escadas até o terceiro andar. Bati na porta, ele atendeu. Passado o instante de surpresa, abraçou-me e pediu que entrasse. 
-Como me achou? - Ele perguntou.
-Numa revista...
-Eu me refiro ao endereço...
-Por que você sumiu?
-Olha só, caso tenha vindo para me admoestar e convencer a voltar para casa, desista! Não vou voltar!
-E você acha que isso é vida?
   O apartamento era de quarto e sala. Ali moravam ele e mais três. Os cômodos estavam bagunçados e cheiravam mal. Muita louça na pia; cinzas de cigarro, pacotes, garrafas, roupas molhadas, tudo espalhado. 
-O papai não vivia reclamando que eu não arranjava emprego? Pois bem, arranjei! E agora ganho dinheiro, maninho, dinheiro fácil! Fora que me divirto a beça! - Disse acendendo um cigarro - posso oferecer alguma coisa ou ainda continua careta? 
-Fa...
-Não, não, não! Aqui eu sou Roderick, entendeu? 
-E continua sendo meu irmão?
-Claro! E se você quiser, falo com uns conhecidos meus e coloco você em alguma cenas, que tal? Atualmente estou tirando uns três mil por cada uma. Fiquei famoso, reconhecido e agora as produtoras me disputam, sabe? Você não precisa voltar para aquela vida. E aí, o que me diz?
-Ficou louco? Eu vim somente saber de você...
-Melhor não falar nada para o papai e para mamãe. Diz que me encontrou, que estou bem, que estou trabalhando em um escritório. Ninguém quer matar os velhos do coração!
-Não quer saber como eles estão, como ficaram após sua partida? Não passam um dia sem falar em você e eu já vi mamãe chorando várias vezes olhando uma fotografia sua...
-Hum... Eu lamento... Bem, está chegando a hora da minha apresentação, tenho que tomar banho...
-Apresentação?
-Sim, faço apresentações em casas noturnas para complementar a renda e, às vezes, saio com as clientes.
   Roderick, além de ator, fazia apresentações onde tirava a roupa e servia de michê. Atendia todo o tipo de público: mulheres solteiras ou casadas, sozinhas ou acompanhadas de seus maridos; homens jovens e velhos. Cobrava duzentos pelo serviço de uma hora - gozando no final, está tudo certo! É só fechar os olhos e mandar ver!- Disse ele cinicamente. De verdade, não reconheci meu irmão. Esgueirando-se pelos buracos da noite, privando com gente torpe e hipócrita, míseros arremedos de uma sociedade enfermiça.
-Fique aí. Pode dormir no meu colchonete. E não se importe se o pessoal voltar, são gente boa. Hoje não tenho hora. 
   Não dormi. Passei a madrugada pensando em tudo aquilo. Andei de um lado a outro. Vi mais publicações, mais vídeos dele onde contracenava com mulheres, homens, travestis, a dois ou em grupo; cenas onde havia violência, escatologia e, sobretudo, a profanação do próprio corpo. Interroguei-me enfim: isto é liberdade? Então descobri nas gavetas de uma pequena cômoda, sacos onde havia todo o tipo de entorpecentes e seringas. Era naquilo que meu irmão investia seus ganhos. 
   Eu juro, foi a decisão mais difícil que tomei. Sabia que jamais apagaria aquilo dele, mesmo que amanhã seu arrependimento fosse maior. Reuni coragem e me convenci de que aquela era a única saída, demonstração original de afeto: levaria paz àquele espírito e interromperia definitivamente sua marcha de leviandade cega!
   Peguei os comprimidos e amassei junto com um pó branco, joguei tudo dentro de uma garrafa com uísque e misturei calmantes. Quando ele chegou, por volta das nove da manhã, ofereci a ele a bebida, afirmando que havia mudado de ideia e que iria ficar. Contente, ele pegou o copo, sem pensar muito e brindamos. 
-Finalmente meu irmãozinho deixou de ser careta! - Deu uma talagada. Insisti para que tomasse mais. E depois de três copos, resolveu que iria dormir. Mas era tarde. Caiu no soalho e começou, em delírios, a sufocar. Convulsionou e expeliu uma baba branca. Dentro de alguns minutos, parou de se debater - estava morto. Desci, peguei o carro e voltei para casa. Ele seria mais um que não aguentou aquela vida e se matou. 
   Mamãe ficou feliz em saber que meu irmão estava casado e empregado em um escritório e ansiosa por vê-lo no Natal. 
   Eu, no entanto, repito para mim mesmo diariamente: eu matei Roderick D. 

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Aqueles Olhos (poesia em prosa)

   Aqueles olhos perderam toda a humanidade. Sentado ali, em um beco, na porta cerrada de um prédio, de fronte a um restaurante, silenciava. Não pedia esmolas; sequer comida. Apenas olhava, olhava - olhava o vazio; o vazio das gentes que passavam - indiferentes, inconsequentes, distraídas, ocupadas. Rosto pobre, mas olhos ricos, de filosofia, talvez, de saudosismo e de esperança. Antes tinha sede de tornar-se algo, até ficar invisível. Ainda que fosse uma cadeira onde o puxariam, acomodariam; pode ser que o elogiassem e se regozijassem de estar. Ou um vaso contendo terra, grande, ornamentado, frondoso. Entretanto, nem mais os vasos gozavam de notabilidade. Eram tão-somente passagem - tal como o beco, tal como ele.
   Os olhos vívidos, porém, no corpo agonizante, percebiam que ora vinha um homem, ora ia uma mulher. Não! Ora ia um pai, ora vinha uma esposa; ora vinham o chefe e a diretora. Sentavam à mesa, almoçavam, riam, falavam mal do trabalho, reclamavam de cansaço. O cheiro do perfume se misturava ao da carne assada; ao do cigarro posto fora, do vinho nos cacos sobre as pedras do chão; do cafezinho, dos dois beijinhos, da despedida, da ausência. E eis que lá foram seu pai e sua mãe. Seus irmãos, quem sabe? Amigos - que jamais se dignaram a retribuir aqueles olhos.
   A luz da tarde caiu pouco e pouco. A luz dos postes e dos estabelecimentos acendeu. O restaurante desceu as portas. Os transeuntes tornaram um ou dois. Depois o calar da noite. Nada mais ali. Permaneceu, contudo, de cócoras, encolhido e leve. Descalço, sentiu entre os dedos a urina quente escorrer-lhe, molhando o calção ensebado. Não mais se constrangia. Era como se um animal o fizesse - as pessoas costumam dar de ombros. Deu também; deu de si, para si: aliviar-se era um prazer. Último dos quais possuiu algum dia. 
   Veio a chuva, o frio, lavando-lhe o corpo. Sorriu e fechou os olhos. Eis que Deus o abençoa, o benze - e o chama, enfim. E antes que viesse a aurora, um homem louro, trajado de um casaco de couro preto, pôs as mãos em sua face, nos olhos que insistiam em ver, e pronunciou: - bem-aventurada alma da rua, hoje o Paraíso é teu, apenas teu!
   Aqueles olhos indigentes se descarnaram... 

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

saLdades eternas

  Bete era uma ex-atriz; malograda, diga-se de passagem. Não passou de apresentações de várzea e o máximo a que chegou foi a encenação em uma quermesse. Porém, nutria a fantasia de que era, ou seria em qualquer dia, algo reconhecida, pois mantinha viva a chama poética correndo em suas veias dramáticas. Quando afirmava isso, estava já a tal ponto alta que ninguém lhe levava a sério. E não era de se levar. Bebia um vinho, uma cervejinha, dançava em seus tamanquinhos uma melodia mais agitada e recitava Pessoa. Depois alguém a carregava para casa. 
  Feiosa, estrábica, roliça, mulher de meia-idade, aparecia sempre com roupas impróprias: uma sainha mais curta, um vestido mais apertadinho; somando às unhas vermelhas, à meia arrastão, aos beiços roxos de batom. Tingia os cabelos e, por fim, nada combinava. Gostava de jovens, jovenzinhos, sabe? Podia ter uns vinte, uns trinta; mas velho acima dos sessenta? Jamais! Queria roçar as coxas entre as pernas de um pangaré, sentir uns braços fortes lhe agarrando, uma respirada mais contundente em seu perfume barato, seus seios esmagando-se em peito cabeludo. Entretanto, ninguém queria deitar-se com Bete.
  Possuía uns amigos desvairados, amigos de bar. Amigos de palavreado frouxo, baixo; amigos sem amarras, sem pudores - personagens decadentes que, por discutirem política ou qualquer filosofia torta, odiarem religião, xingarem o pai e a mãe, terem um filho em cada casa; descobrirem autores que ninguém lia, no olhar de Bete eram seres arrojados, embora não fossem além de bêbados enfadonhos.
  Nas festas, Bete dava vexame. Não que se embriagasse. Catava os doces, pedaços de bolo, arranjos da mesa, enfiava tudo na bolsa; e no velório? Bem, a viram fazendo sinal para um carro carregando uma coroa de flores. Por isso todos falavam dela. Sorriam risos mascarados, e falavam dela. Tanto que pararam de convidá-la, fosse para o que fosse. E ficava ela, no quarto e sala alugado cheirando a mofo, sobrevivendo do que não fora...
  Três semanas se passaram sem que vissem Bete novamente. A síndica foi cobrar as taxas atrasadas. Bateu, bateu, esmurrou a porta - e nada... Nada! Bete havia sentado em frente a uma penteadeira, cheia de fotografias presas aqui e lá. Lembravam o passado, de quando era jovem, de quando era... Sei lá. Só via agora uma boneca triste, desengonçada, de quem todos recordavam com graça, a quem nunca um homem quis se unir. Esticou a face e concluiu: ''estou velha e não vi o tempo passar''. Esvaziou uma cartela de calmantes e virou um copo de conhaque ordinário. Deitou-se na cama desarrumada com suas fotografias...
  Três semanas se passaram e encontraram apenas um corpo que dormitava. Na capelinha, somente a síndica compareceu. Uma velinha de sete dias brilhava e na parede, uma coroa onde estava escrito: ''saLdades eternas''.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Nova Entrevista com uma Socialite

Entrevistador: - Estamos aqui, no Copacabana Palace, na festa de Ano-Novo com essa figura ilustre da sociedade carioca...

Socialite: - Obrigada, é maravilhoso estar com vocês novamente!

Entrevistador: - A festa está linda e você, mais ainda!

Socialite: - Gostaram? A festa tem o tema da prosperidade! Por isso fiz questão que, além do branco, tivessem muitas coisinhas douradas.

Entrevistador: - Como esse seu vestido? Dá uma voltinha para a gente ver...

Socialite: - Não é maravilhoso? Todo bordado com fios de ouro. É de uma grife italiana, feito sob medida! Aí eu decidi colocar anéis, braceletes, colar, brincos, tudo de ouro também para combinar!

Entrevistador: - Assim, o ano vai ser mesmo de muita fartura, de muita prosperidade...

Socialite: - E de paz, não é, gente? Acho que o Brasil está precisando de paz. E não só o Brasil como o mundo também!

Entrevistador: - O próximo ano tem que ser bom, porque esse não foi muito bom para você, né?

Socialite: - É verdade! Tive que fechar duas ongs, me divorciei do meu terceiro marido...

Entrevistador: - Mas foi uma separação amigável?

Socialite: - Que nada! Imagina que ele queria me dar uma pensão de dezessete mil reais! Meus advogados entraram com uma ação e pediram trinta. Ele é empreiteiro, tira no mínimo quinhentos por mês e quer me dar só dezessete mil? Meus dois outros ex me dão mais, por que ele não vai dar? Eu tenho um filho com ele, você sabe, e por causa dessa sociedade machista, eu é que vou criar, entendeu? E a responsabilidade dele como pai?

Entrevistador: - Ah, o ano que vem será melhor!

Socialite: - Com certeza! Estou aqui, tomando champanhe, nessa noite linda, para festejar esse novo ano que promete!

Entrevistador: - E quais são seus planos?

Socialite: - Recebi um convite para posar nua pela terceira vez. Pela terceira vez serei rainha de bateria. E quero abrir outra ong voltada para o tratamento de pessoas na melhor idade.

Entrevistador: - Tudo três?

Socialite: - Tudo três! Meu número da sorte nesse ano!

Entrevistador: - E que mensagem você quer deixar para os nossos telespectadores?

Socialite: - Eu estou aqui, na grife, no champanhe, toda trabalhada no ouro para desejar a todos um ano maravilhoso, sem violência e sem desigualdade social! Fiquem com Deus!
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VEJA AQUI A SEGUNDA ENTREVISTA

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Negrinho do Sinal

   O negrinho do sinal é compositor. ''Mas como?'' - perguntou a minha esposa; ué, estou dizendo, ele é compositor! - ''Ah, sei, esse negrinho é compositor? E compõe o quê?'' - Ópera, é acho que é isso sim. Noutro dia ele cantarolava um trecho enquanto distribuía os saquinhos de bala pelos retrovisores. - ''Ópera? Sei, e como ele compôs essa ópera se ele não tem instrumentos, não sabe tocar e provavelmente jamais ouviu uma ópera?'' - E artistas lá precisam disso? O talento nasce com eles, precisam apenas moldá-lo, burilá-lo, entendeu? - ''O garoto nem deve saber ler, vai compor algo tão difícil quanto uma ópera? Ah, faça-me o favor!'' - Você não comentava ontem sobre uma garotinha alemã que compôs sua própria sinfonia aos seis anos? Ele deve ser pouco só mais velho. - ''Mas a garota tinha formação, estudo, um meio bom, era alemã!'' - Olha o menino lá, o sinal fechou, vem ele... Aí, passou, ouviu? Ele está sempre cantarolando. - ''E como sabe que isso é ópera? Isso pode ser mais uma dessas músicas malucas!'' - Eu conversei com ele, oras - minha esposa riu alto.
   Certa vez, meu carro enguiçou ali. Enquanto eu esperava o guincho, o menino franzino, descalço e usando uma bermudinha azul, veio até mim. Tentou vender as balinhas, dessas que ele vende no sinal. Não quis porque não gosto de balas. Porém, isso foi pretexto para entabularmos uma conversa. Quando ouviu a música que tocava no meu rádio, perguntou: - é Mozart? - Não preciso dizer que fiquei surpreso - você conhece Mozart? - Creio, aliás, que nossa conversa começou a partir daí. Respondeu que sim, que adorava. A mãe dele trabalhou durante algum tempo fazendo faxina na casa de um velho compositor e o levava junto, pois era bem pequeno. O velho ouvia muito a Mozart, Beethoven, Chopin e as principais óperas. Foi assim que tomou gosto e aprendeu um pouquinho sobre música, instrumentos, porque o velho apreciava muito a companhia do jovenzinho, porquanto não tinha família. Morreu, parece, no ano passado. A mãe ficou desempregada e ele precisou vir para a rua. Foi aqui, entre o abrir e fechar do sinal que ele compôs a ópera! Chama-se O Viaduto. Começava com dois homens sentados nesses jardins, esses que ficam em meio as ruas, debaixo de um viaduto. São dois vendedores e cantam ''os jardins improváveis da vida florescem no asfalto, oferecendo descanso no oásis do deserto de piche''. Acho que é isso.
   - Então quer dizer que esse negrinho tem refinamento suficiente para compor uma ópera? Sinceramente, prefiro Beethoven! - Retrucou minha esposa descrente. - minha querida - disse eu - você nunca gostou de Beethoven, de ópera ou coisas afins, como pode avaliar a capacidade dele? - E ela, gritando no banco do carona: ''- o quê? Está insinuando que eu sou uma mulher inculta? Não é possível que...''
   Ela iria continuar, contudo o sinal abriu. Dei a partida e a discussão se encerrou.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Ônibus

   A estrada que ligava um município ao outro estava escura. Somente o brilho dos faróis lançava luz um pouco adiante, mais os dos demais carros que vinham pela pista contrária. O aperto no peito, quase esmagando o coração, forçando as lágrimas nos olhos, faziam-no conduzir raivosamente o ônibus por aquelas vias mal iluminadas. Abaixou um tanto a cabeça, respirou fundo - e tudo se apagou inopinadamente... Quando tornou a si, sentia uma dor terrificante pelo corpo: dor de costelas quebradas, dor de ferro atravessando a coxa, dor de pernas partidas, de ventre fendido, de sangue esvaindo - dor de morte...
   Havia três anos que estava na companhia quando Josival entrou: caboclo mediano, neto de pernambucanos emigrados, era cheio da manha risonha e simples; chegou conquistando amigos, próprio que lhe era a facilidade de levar a todos o conforto de uma nova amizade. Tomou a função de trocador. No início não se bicaram. Josival não logrou entrar naquele peito endurecido e taciturno que odiava aquele trabalho, como só alguém que faz por pura necessidade e por ter esposa e uma linda menininha para sustentar.Tanto que respondia atravessado aos passageiros, não tinha paciência com os velhos que se demoravam a subir na condução e vivia se queixando dos horários de trabalho - se cedo, se tarde, se sábado ou domingo. Mas retinha para si o queixume; aos outros apenas azedume, de maneira que nenhum colega mexia com ele.
   Josival, no terceiro mês, passou a ser um companheiro de jornada - bem ou mal -, trocando notas e moedas no mesmo ônibus. Ah, coube a ele a tarefa de abrir uma fresta ali para que se pudesse ao menos vislumbrar algo no interior. Aos poucos, entretanto, aos poucos. Falava muito, ainda que não obtivesse resposta, ria sozinho, debochava, e como adorava uma dancinha aconchegante acompanhada da boa aguardente, convidou-o para ir, dia desses, no bar perto de sua casa. 
   Foi ali que o rapazote, cinco anos mais moço, passou a ser visto com olhos diferentes - alegre, desinteressado, não muito bonito, é verdade, porém conquistador. Saltaram dos cumprimentos às conversas de bar, às visitas mútuas, ao riso frouxo. Tratavam-se na intimidade fazendo piadinhas infames, parecendo dois garotos, emprestavam dinheiro na hora do aperto, consolavam-se.
     ''Ah, Josival, o seu sorriso, a colônia barata, o peitilho aberto com o crucifixo reluzente...''- pegou-se pensando assim. Havia mudado algo em seu interior. Não sabia bem o que era, todavia. Afastou as imagens... Aquelas imagens... Não, não, como poderia? Deitou-se e abraçou sua esposa... Jo-si-val, continuou a reverberar enquanto não dormia...
     Josival não mais dividiria o mesmo ônibus, foi substituído por outro naquele horário. Não se encontravam mais, os horários não coadunavam - só ficou uma saudadezinha inexplicável e a raiva voltou. Sentia-se estranho, ainda mais quando falavam nele: Josival fez outros amigos, novos amigos...  
     Meses correram com ambos afastados. Aquilo amainou dentro de si e cria já esquecido até que, certa noite, parou no ponto final e ele estava lá, palestrando animadamente com o despachante. Disse que ia embora e pediu uma carona até a garagem. Por fim, Josival decidiu-se a ficar mais um pouco, ensombrecendo o breve sorriso no rosto do antigo companheiro. Irritado, fechou a porta e deu a partida. Sim, aquilo existia adormecido embaixo de toda a fuligem, como brasa quieta, ao menor sopro reavivada.  Mas o quê? Mas o quê? O que era aquilo? Cerrou as pálpebras e viu novamente o sorriso de Josival - na curva, outro ônibus vinha na pista contrária... Perdeu o controle...
     As pálpebras abriram-se novamente, uma última vez. O olhar vazio, perdido, procurava por ele. Foi a derradeira impressão na retina, após o que tudo escureceu...