sábado, 4 de dezembro de 2010

Porcos

  
   Os porcos são um problema na cidade. Está certo que é uma cidade de muitas permanências e, embora média, com população numerosa, às sombras de uma capital, mantém o ar bucólico de interior. E os porcos representam esta tal permanência. Por onde passam, reviram o lixo, espalham todo seu conteúdo pela calçada e deixam seus dejetos pelo caminho. São grandes, rubicundos e numerosos. Famílias inteiras passeiam para lá e para cá, imperturbáveis, como se a rua lhes pertencesse. É sabido que podem atrair doenças, além de dar um aspecto horrível ao bairro, porquanto carregam o estigma da imundície. O prefeito, contudo, que habita plagas estrangeiras, faz vistas grossas e ouvidos de mercador: só se interessa pelos problemas do município em época de eleição; aí faz alguma obra de maquiagem em um logradouro de classe média e é reeleito. E, em tempos de calmaria, torna-se um parente suíno na boca de algum eleitor indignado. 
   Os moradores, daqui e acolá, não sabem mais o que fazer. Algumas senhorinhas temem os malfadados animais. Há quem seja obrigado a desviar-se do caminho original - e com razão: tomam boa parte das vias. Questão de saúde pública? Talvez. Porém, quando resolveram fazer justiça com as próprias mãos - o problema parecia não ter solução - quando se decidiram por uma atitude mais enérgica, contundente, a voz da sabedoria ergueu-se em defesa daquelas humilíssimas criaturas:
- Alto lá - dizia - estes suínos não podem ser vítimas de uma visão predatória, contextualizada em seu bojo pela política capitalista que visa construir um projeto de conjuntura pseudo-classista de ordem pública, enfatizando o caráter complexo de uma desconstrução do conceito de porco, revisitado pela pós-modernidade, 'publicizado' em todas as cadeias midiáticas, reformado na propaganda burguesa viceral que atinge o caráter mediano do cidadão desinformado, privando dos direitos constituídos os seres invisíveis, porém concretos, sólidos e viventes de então; exonerando da parcela democrática o indivíduo, enquanto suíno, atentando contra sua psicologia e ostracizando o seu coletivo, entendido como vara! Quando o Estado ergue sua lâmina contra a carne, objetivando sanar um problema consentido pela anuência social unânime, comete um ataque fragmentário, cujos cacos vão cortar a moral emblemática daqueles que se sacrificaram pela liberdade de expressão, desrespeitada dentro de uma interpretação macroeconômica, tendo em vista os progressos de países periféricos e o ressurgimento de movimentos que englobam uma compreensão igualitária, dizendo que os porcos são nossos irmãos! Digam não ao churrasco, pois ele viola a capacidade de ir e vir destes seres!
   Voltaram-se aqueles que tinham pedaços de pau e facões nas mãos para ver o dono de palavras tão categóricas. Era alguém que se proclamava intelectual. No fundo, ninguém compreendeu nada - talvez nem o próprio. Mas ele valeu-se do repertório decorado para tentar conter a fúria daquela gente. Afinal, o diploma e o título conferiram-lhe as prerrogativas de recomendar como as pessoas deveriam agir - elas precisavam de quem lhes dissesse a razão de pensarem assim e prescrevesse o modo correto de atuar dentro da sociedade; escolhendo, claro, muito bem as palavras para não denunciar algum possível sentimento baixo que o igualasse aos demais. Terminou o discurso improvisado falando em 'hipocrisia das gerações subsequentes'. Baixaram-se os pedaços de pau, baixaram-se os facões; uma barbárie foi evitada - a missão do intelectual estava cumprida. Carregou os infelizes porcos para sua casa - eram cinco ao todo - e lá não sabia bem onde alojá-los. Ao cabo de uma semana, os animais disputavam o lugar no sofá, comiam o que viam pela frente, espalhavam excrementos pelos cômodos e deixavam um bodum tenebroso. O Intelectual não teve dúvidas; ligou para todos os seus correligionários e fez correr o aviso: CHURRASCO ANUAL DO PARTIDO - CARDÁPIO: CARNE DE PORCO.

Um comentário:

Anna Cecilia disse...

Gostei do texto, mas admito que fiquei tonta na parte do discurso a favor dos porcos ... RS

Ao terminar de ler me fiz o seguinte quastionamento: Seria da natureza humana a hipocrisia?

Mais uma vez está de parabéns! Adoro como vc escreve!