Começou com um leve trepidar; como o sono já se avizinhava, deu de ombros. Ajeitou-se mais uma vez na cama e virou de lado. O trepidar, contudo, aumentava. A chuva, caindo no meio da noite, rugia ferozmente e a catadupa, com seu barulho infernal, crescia, descendo feito rio das encostas, transformando a rua adiante em escoadouro. E do alto vinham os gritos, ainda baixos, longínquos, logo ganhando força, reverberando, agudos, desesperados, sumindo em seguida; a fúria das águas arrastava a gente para o abismo profundo da morte. No silêncio, que ainda teimava no quarto, Ivan tentava dormir. E, inopinadamente, o mundo veio abaixo.
Era uma casa térrea, construída na subida do morro, que seu Lourisval acabara de caiar. Possuía janelinhas modestas e um quintal que circundava a propriedade. Ali viviam o próprio Lourisval, viúvo e já entrado em idades; Ivan, seu único filho e o cachorro vira-latas, que se abanava ladino com seu rabo no terreiro. O velho, na força de seus braços, ergueu a casa, aos poucos, assim guardando, assim economizando para enfim chamar de sua aquela morada. Infelizmente, a pobre esposa não sobrevivera para ver o sonho do portãozinho de ferro, das cortininhas rosadas, das paredes branquinhas, das margaridas na entrada, concluído. E Lourisval lembrava-a entristecido e dedicava cada pedacinho, de muro ou de azulejo, à amada de muitos anos. Depositava, agora, todo seu amor no filho, no jovem filho, para quem deixaria seu tesouro.
A Ivan, em seu íntimo, não agradavam a cidade, o bairro ou mesmo a casa. Pareciam-lhe de uma feiúra, de um atraso, padecendo, a cada dia, da vontade terna de ir alhures buscar sua felicidade. Pensava na capital, na profusão de luzes a piscarem, dançando vivazes, provocando risos e a oportunidade da agitação das novidades contadas aqui e acolá; pensava nos amores caros, pensava no poder dos cifrões; pensava em algo rico, colorido, belo a pulsar longe daquele lugar arenoso, calado e aborrecido. Mas nada dizia ao seu pai; nada, nada dizia. Permitia ao velho gozar da fantasia de seus últimos anos, a alegria de acreditar no grande feito de toda uma existência - acreditar que aquela casa seria eterna e duraria o tempo das pirâmides.
Certa noite, Ivan foi ter com alguns amigos por ocasião do aniversário de um deles. Mas a festa, a tal ponto entediada, fez com que Ivan saísse logo nas primeiras gotas de chuva. Algo lhe fazia desejar, mais que tudo, a tranquilidade do seu quarto. Talvez o corpo cansado do trabalho, talvez a conversa morosa daquela gente. Experimentou algum alívio quando bateu na cama; entregou-se ao sono que a tempestade veio interromper. Não obstante a torrente, a terra que se desfazia e a água que já carregara todos os convivas daquela festa, Ivan dormia; seu Lourisval berrava, o cachorro latia, a lama invadia - Ivan dormia. E no sonho, em contraste absoluto com o sonho anterior da casa, seu corpo, aquele corpo cansado, evolava como fumaça, tamanha a brincadeira que a tempestade fazia: jogava-o de lá para cá, de cá para lá, feito títere macabro, frangalho grotesco disputado pelos dois extremos da linha.
Quando abriu os olhos, nada lograva divisar, apenas sentia uma dor lancinante que percorria seus membros. Naquele momento, não podia ver que estava embaixo de uma massa de terra molhada e escombros e que uma placa de concreto apoiava-se em seu tórax e escorava-se perpendicularmente na parede atrás, formando um ângulo de quarenta e cinco graus. Ironicamente, esta mesma placa protegera o pescoço e a cabeça de Ivan do completo soterramento, mas exercia-lhe uma pressão que o sufocava gradativamente. Perguntava de si para si o que ocorrera, onde estavam seu pai e seu cachorro; em seguida vieram-lhe a imagem da casa, dos momentos passados ali, da felicidade que jamais reconhecera. Lágrimas surgiram naquele corpo moído, naqueles ossos esmagados, naqueles músculos retesados pela umidade frígida. Desejou, por fim, apenas em um breve instante, renunciar à capital para estar novamente no lar, ao lado do pai e do cachorro. E neste torvelinho, o anúncio silente da alvorada trouxe com ele um certo movimento, rumores distantes, vozes que cresciam na sua direção. ''Alguém veio me tirar daqui!'' - quis gritar: ''socor...'' - mas o grito sufocou na garganta - ''eu estou aqui, eu estou aqui'' - sua mente, de tanto que se afligia, quase poderia produzir um som; a voz em nada obedecia; o grito ainda sufocava. Boas intenções nem sempre levam a grandes feitos, principalmente quando a azáfama produz uma atitude pouco estudada: a picareta de um dos homens, que assim revolvia o escolho, atingiu algo - um cano, talvez - fazendo, mais uma vez, brotar a água que, descendo em jorro, escorreu até o pequeno fosso formado pela placa de concreto, a parede e todo o entulho; o fosso por onde escapara a cabeça de Ivan a respirar. Pouco e pouco, o líquido gélido tomou a boca e as narinas da pobre alma aterrorizada pelo anjo que ainda não se evadira. Horas mais tarde, acharam Ivan, do corpo moído; e cabeça afogada.
2 comentários:
Parabéns pelo texto! Adoro o jeito com que vc escreve.
Angustiante! Diante das tragédias recentes esse é o adjetivo...
Beijos
E a vida, a "que-não-foi"... Bom texto, camarada!
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