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Anton Pavlovich Tchekhov (1860-1904)
''-O importante não é que Anna haja morrido do parto, mas sim que todas essas Annas, Mavras e Pielaguiêias vergam a coluna de sol a sol, adoecem por causa do trabalho pesado, a vida inteira temem pelos filhos famintos e enfermos, a vida inteira temem a morte e as doenças, a vida inteira tratam-se, cedo definham, cedo envelhecem e morrem em meio à imundície e ao fedor; os filhos, crescendo um pouco, entram na mesma dança; assim se passam centenas de anos, bilhões de pessoas vivem pior que os bichos, e tudo apenas por um pedaço de pão, presas de um medo permanente. Todo o horror da situação dessas pessoas está em que não têm tempo para pensar nas coisas da alma nem para se lembrar de seus semelhantes; a fome, o frio, o medo animal e montoeira de trabalho, tal qual aludes, obstruíram-lhes todos os caminhos de acesso à atividade intelectual, precisamente aquilo que distingue o homem dos outros animais e constitui a única coisa pela qual vale a pena viver. Vós socorreis essas pessoas com hospitais e escolas, mas com isso não as libertais das peias; vós as tornais ainda mais escravas, pois, introduzindo novos preconceitos, aumentais o número de suas necessidades, para não dizer já que elas terão de pagar pelos emplastros e livros ao ziêmstvo, ou seja, vergar a coluna ainda mais.''
O pensamento ocidental, guiado pela filosofia de segmentos do Cristianismo, dignifica o homem através do trabalho. As questões que lhe envolvem trazem à tona dois momentos da História, que ora diviram o mesmo período, a que muitos aludem sem entender: a Escravidão Moderna e a Revolução Industrial. Ambos processos complexos, com diversos aspectos, e cuja compreensão demanda visualização específica de cada caso. Não cabendo aqui uma análise mais profunda, partamos de seus princípios mais amplos, o que talvez rememorem as consciências que lhes têm reconhecimento, ainda que rarefeitos: a Escravidão Moderna caracterizou-se pelo trabalho forçado, onde seu agente, privado de direitos, tratado como propriedade, estava perpetuamente sob ameaça de violência. A Revolução Industrial, por sua vez, modificou as relações de trabalho, condicionando, a períodos longos de serviço, adultos e crianças muito mal remunerados. Está claro que, posteriormente, houve transformações profundas em ambos os quadros, muito embora haja permanências até a atualidade. Há aí, portanto, uma contradição entre a dignidade apregoada e o próprio trabalho: será que é mesmo algo dignificante?
Trabalho, ao menos no Brasil, é como salvo-conduto, quase uma identidade, herança provável do governo de Getúlio Vargas, quando a carteira de trabalho passou a valer como distintivo - existia uma lei contra a vadiagem que mandava prender quem estivesse 'à toa' e não a possuísse. Pois bem, sinônimo de honestidade hoje é dizer-se trabalhador; algo, aliás, usado se alguém quer se livrar da acusação de um crime, por exemplo. É um engano; trabalhadores podem ser desonestos e continuar trabalhadores. O que ora se pretende discutir, contudo, é a necessidade de se trabalhar. Trabalhamos porque precisamos; precisamos comer, quitar os compromissos pecuniários, e outros tantos objetivos. Mas, e se não precisássemos? Será que as pessoas acordariam cedo, tomariam a condução lotada, se submeteriam a um patrão e a ganhos ínfimos, perderiam tempo de vida realizando coisas que podem não ter validade alguma?
Essa foi a via que a civilização optou: nós abrimos esse caminho e construímos uma estrada por ele. Nada mais trágico. É bonito dizer que se está 'enrolado', que não tem 'tempo', que está 'atolado' - se as pessoas reparassem no quão melancólico e triste é repetir isso. Afinal, o tempo que elas dispõem ao trabalho as rouba de todos os demais compromissos com a vida; as rouba de perseguir um ideal mais elevado - o que o texto supracitado chama de atividade intelectual. Mais: não as faz parar e questionar a que ou a quem aquele trabalho serve; em que lugar ele coloca; o que ele proporciona - se ele foi uma escolha ou imposição. Trabalhar não é digno, mas saber por que se trabalha e que bons resultados ele pode trazer; se ele degrada ou embota; se ele exige um conhecimento aplicado ou se ele permite ampliá-lo.
Trabalho é uma necessidade, reitero; muitos estão privados dele. E como seria bom se pudéssemos dedicar boa parte do dia a fazer o que nos dá gosto, prazer. Tchekhov prossegue dizendo: ''Se todos nós, citadinos e camponeses, todos sem exceção, concordássemos em dividir o trabalho que a humanidade gasta para satisfazer as suas necessidades físicas, então a cada um caberiam duas ou três horas por dia, não mais.'' Uma utopia, talvez, que, provavelmente, nos faria receber em minutos de existência.
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