segunda-feira, 9 de maio de 2011

Victor Hugo e a Pólvora Desperdiçada

   Em Maio de 2011, o Mau Prosador faz um ano de existência. Para comemorar, durante o mês publicarei trechos de textos de autores consagrados, fazendo breves comentários em seguida. O primeiro a ser convidado para a pequena festa é o escritor francês Victor Hugo. Espero que apreciem.

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Victor-Marie Hugo (1802 - 1885)

''Calculou-se que, em salvas, cumprimentos reais e militares, trocas de disparos corteses, sinais de etiqueta, formalidades de cais e cidadelas, saudações ao nascer e ao pôr do sol, feitas diariamente por todas as fortalezas e navios de guerra, aberturas e fechamentos de portos, etc., etc. o mundo civilizado gastava com pólvora, por toda a terra, a cada vinte e quatro horas, cento e cinquenta mil tiros inúteis de canhão. A seis francos cada tiro, são novecentos mil francos por dia, trezentos milhões por ano, que se vão em fumaça. Mero detalhe. Enquanto isso, os pobres morrem de fome.''

   Esta pequena citação foi retirada do livro 'Os Miseráveis', obra monumental que se transforma em verdadeiro tratado durante sua leitura. O trecho é bem atual; não no que diz respeito aos tiros de canhão, mas aos gastos inúteis em um mundo onde milhares de pessoas vivem na miséria. Não é preciso ir muito longe, basta acompanhar o cotidiano das pessoas, suas vontades, suas ambições, seus valores, indissociáveis de um sistema desigual e controlador. O que dizer do consumo, por exemplo? Quase todos reconhecem as mazelas advindas do consumismo, não conseguindo libertar-se, contudo. Afirmam que o importante é o bem estar, é a saúde, e, contraditoriamente, adquirem bens de pouca serventia. Ou ainda: entram em prestações sob o risco de não poder pagar. Não há quem fique indiferente diante de uma grande soma de dinheiro - a questão é saber gastar. Entretanto, o mencionado sistema sobrevive disso, da Economia, tão festejada. E as mesmas pessoas tornam-se números e estatística em uma planilha. A política se preocupa mais com a indústria, o comércio, os faturamentos, os prejuízos e, se fala em serviços para a população, entram sempre em segundo lugar - acelerar o crescimento, esta é a chave da riqueza!
   O consumo está também, não obstante a camuflagem, nos padrões de beleza, na condenação da velhice, no novo estilo musical, na moda, no entretenimento e em tantos outros pontos onde as cifras de poucos chegam na casa dos milhões. E aí vale a questão: de que adianta tudo isto? Matar-se para ter o corpo perfeito, comprar os cremes mais caros que retardam a idade, ouvir a música em outra língua sem nem entender o que está sendo dito e aplaudir celebridades que recebem cachês altíssimos apenas por vestirem roupas de modo adequado, ou por serem belas, por protagonizarem escândalos. E com isso tudo vão os 'tiros de canhão' - supérfluos e dispendiosos!
   A pólvora desperdiçada é a alegoria desta sociedade de disparates absurdos, de polarizações, de extremos. Onde muitos tentam alcançar um objetivo, arrefecendo a competitividade e as teorias de sucesso e positividade, vinculadas ao termo de capacidade, da qual, relativamente, nem todos compartilham. E que valores elegemos? O do conhecimento aplicado, técnico e incompleto; do corpo belo; do trabalho sem escolha; do sucesso financeiro como o fim desejado; do respeito por uma profissão em detrimento de outra; de leis que somente oneram o Estado; e, sobretudo, da irreflexão - platéias e platéias consagram papéis canhestros de atores ruins, ainda que tenham dormido durante o ato.
   Os tiros são cada vez mais comuns e fazem mais barulho. Cada vez que desponta uma nova estrela, no céu da política ou da mídia, se vão mais tantos francos de pólvora. A cada nova negociação ou novo acordo assinado; a cada nova passarela e contrato; a cada novo filme, a cada novo sensacionalismo - tantas salvas de canhão e tantos gastos inúteis! O mundo civilizado talvez não devesse se orgulhar desta alcunha, posto que realmente não lhe faz juízo perante suas levas de miseráveis.


Um comentário:

Febo Vitoriano disse...

De fato, o Mau Prosador tece interessantes considerações paralelas entre o estado miserável do séc XIX e nossa sociedade consumista miserável em espírito