terça-feira, 31 de maio de 2011

Dostoiévski e o Muro

Dostoiévski é o último convidado a chegar com duas citações de Notas do Subterrâneo.
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Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821-1881)

'' 'Perdão! - dir-se-á - não cabe protestar: dois e dois são quatro. A Natureza não vos pede licença; nada tem a ver com vossos desejos, nem lhe interessa que vos agradem ou não suas leis. Sois obrigado a aceitá-la tal como é, e, consequentemente, todas as suas decorrências. Um muro, evidentemente, é um muro... etc. etc.'' Mas, meu Deus! Que me importam as leis da Natureza e a aritmética se, por esta ou aquela razão, eu detesto essas leis, detesto o fato de que dois e dois são quatro? Está claro que não poderia derrubar o muro com a minha testa, se minhas forças não bastassem; mas não aceito humilhar-me diante do obstáculo só por ser ele um muro de pedra e não ter eu forças para derrubá-lo.''

''Repito, enfaticamente repito: todas as pessoas diretas, todos os homens ativos são ativos porque simplesmente obtusos e limitados. Como explicá-lo? Da seguinte maneira: em consequência de sua limitação, eles tomam por primárias as causas secundárias, imediatas, e assim se convencem, mais depressa e mais facilmente do que as outras pessoas, de encontraram um fundamento inabalável para sua atividade. Então se tranquilizam, e isto é que importa. Para começar a agir, com efeito, é preciso antes de mais nada estar perfeitamente tranquilo, sem nenhum vestígio de dúvida.''

   Creio que ambas as passagens possam surtir em amplo debate. Elas me fazem lembrar um conto de Edgar Allan Poe, onde se diz que Deus é o único ser de felicidade plena por conhecer a causa de todas as coisas. A nós cabe uma dúvida sempiterna: qual o sentido da vida? Por que almejar, tentar conquistar, cair e levantar se a história de cada um termina em morte? Se não há final onde tudo se resolva magicamente? Os homens de ação, como bem diz Dostoiévski, com o perdão da redundância, agem; não param para pensar na razão - apenas agem. Ou então se paralizariam diante de perguntas que jamais poderão ser respondidas: qual o próximo passo? Somente incertezas adiante...
   A penúria, a privação de faculdades motoras, enfermidades, insucessos de qualquer ordem sobrevêm mesmo àqueles que se julgam afortunados - se assim pode nomear-se, a sorte muda ao sabor das circunstâncias. Entretanto, não é de sorte que o autor fala; há algo ainda mais incompreensível, não obstante sua aceitação, de característica irremediável, que são as leis da Natureza. Ora, ao deparar-se com ela - a exemplo de um muro - o homem de ação reconhece sua incapacidade de transpor-lhe. O homem de consciência, porém, digladia com esta incapacidade. Por isso Dostoiévski afirma ser a consciência uma doença: ela imobiliza ante a dúvida do porvir. Ou ainda: não se conforma com os ditames da própria vida.
   Tomar o efeito pela causa é, por mais banal que seja a analogia, outorgar uma medida, desejada como ideal pelo bem comum, sem atacar as raízes do provável vício social. É querer remediar situações, que exigiriam a devida anuência, com palavras que em nada mudarão o estado de quem atravessa uma dificuldade, de quem perdeu algo ou alguém, de quem sofre. Ter consciência de que o futuro é incerto, da falência e fragilidade do corpo, da finitude da vida - da possibilidade de sermos seres pífios e quixotescos abandonados no Universo; é decerto uma doença!

Um comentário:

luccas coutinho disse...

Muito bom, observei a passagem da mesma maneira, e pesquisando sobre o tal muro de pedra encontrei o seu blog. Parabéns pela síntese.