segunda-feira, 15 de novembro de 2010

15 de Novembro



      Lembro-me, como se fosse hoje, de um trabalho que fiz para a matéria de Brasil I - correspondente ao período colonial -  que tive na faculdade: era sobre o livro de Caio Prado Júnior. A apresentação foi lastimável. Eu ainda cismei de fazer uma afirmação categórica, interpretando livremente o autor, dizendo que ainda vivíamos em plena República Velha. A professora não entendeu e eu não soube explicar. Passados seis anos desta malfadada apresentação, sinto ter agora uma justificativa plausível, posto que minha opinião não mudou muito.
   Para os monarquistas, o dia 15 de Novembro é um dia de luto. Chamam golpe a articulação republicana e se reúnem para tomar chá e lamentar a deposição do Imperador. Talvez isso seja a manifestação do descontentamento com o atual regime - e eu não lhes tiro a razão! São constantes os casos de corrupção, desvios de verbas, improbidades, falta de decoro da parte de políticos. Voltando à minha afirmação categórica, vejo raízes nefastas, a herança maldita de um tempo em que se tratava o bem público como algo privado. Em verdade, uma ruptura efetiva nunca houve. Mesmo quando aparentemente agentes do povo chegam ao poder. O que existe de fato é uma adequação ao sistema e uma mimetização da própria elite que se ajusta aos processos históricos para continuar no comando - ou será que existiu no Brasil uma revolução popular de grande alcance e que tencionasse modificar a conformação do Estado? Acho que dormi nessa aula. O que há, o que sempre houve, é a política dos coronéis, dos personagens bonachões, que apadrinham, que mentem acintosamente, que trocam benfeitorias por votos, que representam o ranço, o vício de uma sociedade que não conhece a verdadeira cidadania. E que não recaia a culpa somente na República Velha! Os tais coronéis são bem mais antigos. Eles têm sobrenomes que remontam ao Império. Têm um passado construído a partir da nossa Independência, onde garantiram assento cativo no cenário nacional.
   Não acredito que a Democracia seja o sistema ideal, todavia ainda não foi superado por outro melhor. E, no caso do Brasil, é uma utopia crer em sua consolidação. Afinal, não entendo como se pode falar em Democracia consolidada com voto obrigatório! Mais: não entendo Democracia sem o conhecimento da cidadania. E a cidadania não está somente nos direitos adquiridos, mas nos deveres também! Parafraseando Stendhal, na Nau do Estado, todos querem uma posição de comando - maiorias e minorias -, todos querem uma 'fatia do bolo', uma autopromoção, reafirmando o pensamento que compreende apenas o bem privado e o direito individual. Assim, a República vai mal!
   É provável que o 15 de Novembro haja sido uma grande conquista, da qual, porém, não soubemos fazer bom proveito. Para que possamos viver em um regime igualitário é preciso que promovamos rupturas, que apostemos em alguma renovação, por menor que ela seja, e não mantenhamos as velhas figuras... Engraçado, não sei o motivo de escrever isso... Bem, parabéns para a República e a quem ainda tem esperança de comemorá-la! Acho que vou tomar chá com os monarquistas!

domingo, 7 de novembro de 2010

Banquete nas Trevas

-A que horas foi o óbito?
-Há cinco minutos.
-Ele está morto mesmo?
-Sim, acabei de verificar a pulsação.
-Passe-me a garrafa, quero mais vinho.
-Quanto tempo será que leva para o acharem?
-Não sei, mas deve demorar... Ninguém gostava dele. É provável que o deixem apodrecer no quintal.
-Tenho medo...
-Não se preocupe, vai parecer um ataque cardíaco...
-Sinto-me aliviada... Esse demônio nunca mais nos atormentará!
   Riscaram o fósforo e a luz tênue da chama iluminou três figuras. Ali, sentadas nas trevas, repartiam pão e vinho, mas somente duas dialogavam. A terceira permanecia em silêncio. 
-Está tão calado, o que houve? Arrependeu-se?
-Estou pensando... Não estou arrependido, mas me perguntando se ele realmente merecia.
-E como não? Ele nos humilhava, nos agredia todos os dias, não permitia que convivêssemos com nossa família, nos intrigava, insuflava rancores, nos tirava a esperança. Era um homem odioso! Agora está lá, caído, estendido na terra; as formigas começam a andar sobre suas carnes flácidas e a entrar pela boca pendente; os olhos ressecam-se, o sangue coagula, a pele perde a cor!
-Você sente alguma satisfação nisso, não? Vejo sua alegria nesta imagem tão aterradora!
-Valdemar era um velho asqueroso, não devemos ter pena dele! Ele nunca me despertou bons sentimentos em vida... Não despertará na morte! 
-Este pão que comemos é seu corpo e o vinho, seu sangue!
-Maldito! Este vinho é demasiado doce e o pão, demasiado tenro. Jamais seriam como o féu que corria em suas veias e a pedra que lhe servia de carapaça!
-Representaste muito bem, minha cara, durante todos esses meses! Fingir-se arrependida pelas brigas, manifestar afeto, chamá-lo de pai... 
-E eu ainda disse quando lhe servi o café: ''com muito amor''. Merecia um prêmio pela minha atuação. Agora só resta chorar no enterro. Queria mesmo cuspir-lhe e gritar: ''já vai tarde, infeliz''!
-Não consigo esquecer seus momentos finais: ele se queixou de ardência na garganta e falta de ar, caiu, debateu-se um pouco e ficou estático... Para sempre!
-Temos que pensar em um álibi!
-Álibi? Estávamos todos fora e quando chegamos, soubemos da morte do Valdemar por ataque fulminante! Aliás, lamentável... 
-Ouçam, acho que alguém chamou a polícia.
-Pensando melhor, acho que eu merecia um prêmio por ter dado um fim nesse homem, sabe?
-O que faremos?
-Vamos esperar... A garrafa de vinho ainda está cheia e restam quatro pães...
-Hum, onde está aquele que multiplica os pães e o vinho, hein? Poderíamos ficar nisso a vida inteira!
-Ele está morto agora.
-Só espero que não ressuscite no terceiro dia! Mandei fazer um vestido lindo para o velório...
-Entraram na casa... Estão andando sobre nós!
-Estão falando alguma coisa! Podem ouvir?
-Ei, eu estou ouvindo... Não! Não pode ser! É... É a voz do Valdemar! Mas ele estava morto!
-Vocês ministraram o veneno na quantidade certa?
-Acho que coloquei pouco!
-Ele sobreviveu! Como pôde levantar-se e chamar a polícia?
-Não sei, não sei, mas esse maldito tem que morrer!
    A moça ergueu-se e, pegando a faca do cesto de pães, correu imediatamente para o pavimento superior, saindo das trevas do porão. O rapaz, sentado à cabeceira da mesa, foi atrás, deixando o outro quieto na escuridão. Valdemar estava sendo socorrido por médicos na sala, observado por policiais. 
-Você ainda está vivo, maldito? - A moça tentou cravar-lhe a lâmina da faca, mas foi impedida.
-Foi ela - balbuciou Valdemar - foi ela! - Os policiais detiveram a moça e o rapaz pela suspeita de terem tentado matar aquele homem.
   Uma vez no hospital, depois de terem-lhe desintoxicado, Valdemar acordou de um longo sono, avistando, ainda com certa dificuldade, um rosto.
-Você? O que está fazendo aqui? A polícia não prendeu você junto com aqueles dois?
-Vim trazer uma lembrança de sua filha, papai, com muito amor!
   Valdemar foi encontrado pela enfermeira com a lâmina de uma faca dentro de sua boca.