sábado, 8 de outubro de 2011

Morte Solitária

   Uma vida interrompida. Era tudo o que se poderia dizer naquele momento. Ninguém sabia seu nome. Limitavam-se a balbuciar palavras entre si. Uns três talvez, ou quatro, nada além; o resto transcorria: pessoas indo, carros vindo, e somente um detalhe no quadro geral destoava: o cadáver de um homem, caído ali, próximo da sarjeta, ao lado do poste; de braços esticados, entrelaçados; roupas simples, um tanto encardidas; meia-idade e olhos abertos, fitos no horizonte limitado pela calçada e pela morte.
   Chegara na cidade havia pouco. Saiu da rodoviária e andou em um rumo perdido. Sua impressão modesta mal reparou no aspecto agitado e sujo do centro, tinto de cores cinzas, escorrido de um preto musgoso; nos andarilhos feios e comuns;  nos odores confusos de comida, vapor e dejetos. Não, decerto não reparou, pois assim era qualquer centro daquela região. Era o centro de onde vinha. Era o centro com que convivia - prédios crescendo desordenadamente, ruas tortas e gente; muitas gentes a esbarrarem-se. Não havia planejamento, não havia timbre nem tom. Havia um sentido metálico, opaco, triste. Havia pobreza de alma e de estilo; e o dinheiro que todos iam ali buscar!
   Quando passou daquela esquina, deparou-se com o corpo. Assustou-se: primeiro com o detalhe, depois, ganhando amplitude, o olhar analisou os outros elementos e somente encontrou indiferença. Ficou um tanto turvo, tonteou, não pôde conter a curiosidade e o desejo de aproximar-se. O homem não mais respirava. Contudo, seus olhos continham a última gota de vida e retinham perpetuamente o quadro dramático que ali tinha lugar: pés humanos, rodas, pressa - esquecimento. E, num átimo, os dois olhares se encontraram, compartilhando uma só visão do avesso da vida - ''quem está verdadeiramente morto?'' - Disse o rapaz - ''somos nós ou ele?'' Um senhor, que estava perto, franziu o cenho como que não houvesse compreendido as palavras que o jovem proferira alto sem perceber. Uma mulher perguntava se alguém havia chamado a ambulância e um terceiro meneou a cabeça negativamente.
   Inopinadamente veio a chuva. E quem estava ali se afastou. Só o rapaz, sentindo-se ainda mal, permaneceu por mais alguns minutos. Estava perdido, não lograria encontrar o endereço aonde deveria levar os papéis, não debaixo de chuva; também não podia deixar o cadáver anônimo abandonado. Encontrava-se tão aturdido que não percebera as poças transformarem-se em rio, molhando seus calçados, suas bainhas, suas pernas, sua cintura... A catadupa barrenta e contundente, empurrou-o e arrastou. Os documentos se perderam, a roupa se perdeu... E, no esforço de agarrar-se em anteparo que fosse e manter a cabeça acima d'água, tentou ocultar de sua mente os olhos sempiternos do corpo inerte. Não adiantou, eles eram fortes, vivazes, eternos! Tragaram-no para dentro daquele mar - e mais uma vez se encontraram no fundo. Aquele homem não estava mais sozinho.

sábado, 2 de julho de 2011

A Umbra

  O Texto a seguir faz parte de um exercício narrativo feito por Adem Ibrovic que consistia em contar a mesma história de Voz da Mata, mas com abordagem própria.
***

    A noite começava a cair. Os últimos raios de sol ainda reluziam na copa das árvores enquanto a escuridão se aprofundava no interior da trilha. Os dois amigos decidiram que era hora de começar a voltar antes que a penumbra se tornasse breu e se perdessem pelo caminho. Nestas ocasiões Pedro costumava sempre andar com sua lanterna e alguns equipamentos básicos de trilha, mas naquele dia tudo havia sido decidido de última hora e por isso estavam completamente desprevenidos. Além da falta de qualquer equipamento de orientação, ainda vestiam trajes incômodos para uma caminhada naquele tipo de terreno. Calças jeans, tênis de solado gasto e a inusitada camisa pólo de Marcos compunham o visual dos dois trilheiros casuais.
- Pronto! Começo a não distinguir raízes de pedras, e não vejo um palmo a minha frente! – reclamava Marcos enquanto desciam pela encosta.
- Você só sabe reclamar? – a pergunta de Pedro foi seguida por um som abafado e algumas pedras rolando. Ao olhar para trás, lá estava Marcos caído no chão com braços e pernas abertos sobre a terra.
- Marcos!!! Está tudo bem? –
- Sim, está tudo “ótimo”! Só me estirei no chão para ver o que você iria dizer... – respondeu Marcos, usando o sarcasmo que lhe era bastante característico.
- Oras, então levante-se daí e vamos andando porque não há tempo para este tipo de brincadeiras! – completou Pedro, quase que estendendo o sarcasmo do amigo para um nível muito próximo do irritante.
   A caminhada seguia, ao passo que a preocupação de ambos aumentava. A trilha, que costumava ser bastante movimentada por caminhantes indo e vindo, estava agora completamente deserta e os sons de pássaros diurnos silenciavam aos poucos para dar lugar ao barulho de grilos e cigarras. Naquele momento, todos os caminhos pareciam iguais e os dois amigos travavam um silêncio perturbador na expectativa de qual deles diria primeiro o que já era óbvio: Estavam perdidos. Na cabeça de Pedro tudo se resolveria se continuassem descendo, afinal, enquanto houvesse caminho para baixo, estariam ao menos na direção da estrada onde a trilha tinha início. Mas durante a descida, Pedro olhava à sua volta com a estranha sensação de que já haviam passado por aquele lugar.
- Merda! Acho que estamos andando em círculos... –
- Silêncio... – sussurrou Marcos, interrompendo imediatamente o amigo. – Está ouvindo isso? Preste atenção... –
   Passaram-se alguns segundos até que Pedro pudesse distinguir algumas vozes em meio aos barulhos da noite. – Tem alguém falando... E vem daquela direção. - Enquanto ele apontava com uma mão, ia abrindo caminho em meio aos arbustos com a outra e avançava na direção das vozes. Marcos não estava com um bom pressentimento sobre aquilo, mas era melhor seguir Pedro do que ficar sozinho no meio da mata e naquela escuridão. - Pelo menos vá devagar. Não sabemos o que está acontecendo... –
   Cuidadosamente os garotos se aproximavam de uma pequena encosta onde a mata não era tão densa. Abaixaram-se atrás de um monte de terra e observaram ao longe algumas luzes que se mexiam freneticamente, como lanternas balançando na escuridão. As vozes continuavam e, embora ainda não pudessem distinguir o que era dito, percebiam que se tratava de uma discussão acalorada. – Vamos embora daqui! – Marcos tentava convencer Pedro, como se pressentisse que aquele era um ponto sem volta.
   Pedro estava completamente tomado pela curiosidade, ou talvez algum tipo de senso de “destino”, que não o fazia nem ao menos considerar a hipótese de retornar sem descobrir o que estava acontecendo ali. Estavam tão perto, as luzes pareciam oscilar a uns vinte ou trinta metros à frente. O problema agora, é que ao sair de trás do monte de terra onde estavam abaixados, ficariam completamente expostos na vegetação baixa e qualquer rápido movimento daquelas luzes revelaria imediatamente a posição de suas silhuetas.
- Vamos pelas laterais. – Sugeriu Pedro.
- Como assim? Nos separar? Está louco Pedro!!! –
   Não foi preciso muita discussão para que a decisão fosse tomada. Um estampido agudo irrompeu o ar e silenciou os dois amigos, que se entreolharam ao mesmo tempo. Pedro, tomado pelo impulso do momento e já antevendo o que teria acontecido, correu na direção do barulho. – Isto foi um tiro! – Marcos, pouco antes de acompanhar o amigo, teve tempo apenas de pensar: - Ótimo, ouvimos um tiro e qual a coisa mais inteligente que conseguimos fazer? Corremos na direção de onde ele veio. Excelente Pedro... Excelente. –

------------- X -------------
   Chegaram rapidamente ao local de onde antes vinham as vozes. Agora tudo estava calmo e silencioso. Pedro localizou de pronto a fonte das luzes que viram: três lanternas, ainda ligadas, jogadas no chão. Um pouco mais adiante, na borda da clareira, dois corpos sem vida deitados sobre uma lona quadrada e voltados com o rosto para baixo. Mesmo sob os protestos de Marcos, Pedro se aproximou dos corpos. Carregava nas mãos uma das lanternas que havia encontrado e parecia estar absorto em pensamentos distantes. O amigo gritava do outro lado da clareira, mas era como se ele não pudesse ouvir uma palavra. Abaixou ao lado da lona e virou um dos corpos para cima. O choque foi tão grande que Pedro retomou, imediatamente, o controle sobre seus pensamentos. No chão, deitado bem à sua frente e com uma perfuração de bala na cabeça, estava “ele mesmo”. O corpo ao lado era o de Marcos. – Meu Deus, somos nós! – Entre tropeços e quedas os dois correram sem olhar para trás, deixando naquela clareira mais do que corpos e lanternas, deixaram também parte de sua sanidade.
   Chegaram à base da montanha pouco tempo depois, com lágrimas no rosto e várias escoriações pelo corpo. Mas havia algo ainda mais estranho por vir. Ao olharem para o alto da montanha, vislumbraram uma cena impossível de se explicar com palavras. O mais próximo que conseguiram chegar do que viram foi um breve relato postado, dias depois, em seus blogs, onde descreviam o que viram como uma enorme mancha escura pairando no céu sobre a montanha... Uma mancha mais negra que a própria noite.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Voz da Mata



   As cores do fim de tarde esmaeciam em tons suaves de azul arroxeado e coral; as trevas, da noite que já se anunciava, cerravam vagarosamente a sua boca sobre a mata, acinzentando as folhas, outrora verdes, das árvores centenárias. A vegetação, com seus galhos, talos e furtivas flores, desaparecia do último plano, restando ao caminho apenas os troncos pardacentos de plantas que pareciam adormecer. Ouvia-se balbuciar o filete de água que serpenteava, quase sumido, na rama seca, para ir deitar-se alhures no mar; ou o passo minúsculo de algum lagarto, ou o romper de toco sem seiva - no mais, reinava o silêncio.
   A Natureza, contudo, que insiste em coabitar com a cidade, não passa sem ser perturbada, mesmo que seu ninho faça desaparecer o tempo: dois rapazes singravam degraus colocados ali, não se sabe por que mãos, para facilitar a passagem; o primeiro, movido pelo ímpeto da idade e irrefletido, andava com certa destreza, ironizando o que ficara para trás, mais novo, a quem sobrara moderação, resbunante pelas vias tortuosas da trilha. Aquele sumia das vistas deste por vezes, encontrando-se em qualquer curva, imitando animais selvagens por mera provocação, depois da qual ria-se como se fosse a brincadeira mais engraçada. A razão de estarem ali era um simples passeio: subiram um monte e agora o desciam rapidamente, pois a promessa da paisagem não desculpara a escuridão - era preciso voltar o quanto antes, para não se perderem!
   Os trajes incomodavam um pouco, porquanto fossem inadequados para o tipo de exercício que se apresentava. Mas nada fazia esmorecer a agitação que uma inusitada aventura proporcionava - o alívio bucólico da amofinação citadina servia de refrigério aos olhos e ouvidos cansados do barulho incessante. Ali puderam encontrar um universo diverso, imutável e indiferente; eivado de tintas e de sons; uma tela vívida, enfim. O que ia adiante pulava entre as pedras, tentando livrar-se da terra molhada e escorregadia, traiçoeira debaixo dos sapatos do outro, ameaçado constantemente de queda: - ande lá! - Dizia aquele, inconsequente nos melhores anos de juventude onde falta o juízo necessário do perigo - você está muito lerdo! - e continuava meio impaciente com a demora: - calma! Você leva vantagem porque fez isso antes. Ademais, eu não estava preparado! - Retrucou o outro.
   A idéia surgiu em uma mesa de restaurante, quando ao longe apontava-se o morro. Em menos de uma hora estavam no sopé. O esforço da caminhada foi compensado com montanhas, pôr do sol e brisa marinha; com metrópole incansável e luzes despontando em suas habitações, estendendo braços por todos os lados. Contudo, ao modo de Dante atravessando o Limbo, os dois rapazes foram tomados de angústia desabrida, sopitando a felicidade de ditosa paisagem, quando um deles - justamente o que conhecia a trilha - enganou-se, conduzindo ambos a uma via errada. Perderam-se; e só se deram por isso tardiamente.
   Algo proposital e misterioso havia na mata que se fechava enquanto os pés confusos avançavam; alguma presença invisível, algum observador oculto. À angústia avizinhava-se o medo e, no torvelinho de pensamentos, embrenhavam-se mais no intestino da floresta, que queria digerir os invasores depois de havê-los mastigado - pedras e galhos assemelhavam-se a dentes afiados que os feriam a cada tropeço. O mais experimentado não desejava demonstrar sua fraqueza. A verdade é que mal podia conter-se devido ao nervosismo que dominava seus membros. Sentia frio e esforçava-se por não deixar tremer seu maxilar. Frebicitante, o coração pulava. O que vinha logo atrás tinha perdido um tanto a noção da realidade, quase em um sonho ruim, numa reação orgânica imediata que o anestesiara, alternando excitação e pavor. Inopinadamente, vozes vieram da direção que seguiam: primeiro como sussurros, aumentando assim até transparecer em bulha similar a uma altercação. Hesitaram... Dois estampidos simultâneos ressoaram... Correram sem atinar para a situação; esbarraram-se, caíram e depararam-se, ao fim, com uma cena terrível: estirados na clareira, dois corpos perfurados na altura dos pulmões, de cujos orifícios saía sangue em pequenas bolhas - os dois corpos tinham os rostos exatos dos rapazes perdidos. Dias depois, acharam ambos, ainda no mesmo local, aturdidos. Mal conseguiam entender o que viram. Em laivos de lucidez, somente a breve certeza do que lhes teria acontecido caso ignorassem o aviso recebido no instante do choque: ''saiam e não voltem!''
  

terça-feira, 31 de maio de 2011

Dostoiévski e o Muro

Dostoiévski é o último convidado a chegar com duas citações de Notas do Subterrâneo.
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Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821-1881)

'' 'Perdão! - dir-se-á - não cabe protestar: dois e dois são quatro. A Natureza não vos pede licença; nada tem a ver com vossos desejos, nem lhe interessa que vos agradem ou não suas leis. Sois obrigado a aceitá-la tal como é, e, consequentemente, todas as suas decorrências. Um muro, evidentemente, é um muro... etc. etc.'' Mas, meu Deus! Que me importam as leis da Natureza e a aritmética se, por esta ou aquela razão, eu detesto essas leis, detesto o fato de que dois e dois são quatro? Está claro que não poderia derrubar o muro com a minha testa, se minhas forças não bastassem; mas não aceito humilhar-me diante do obstáculo só por ser ele um muro de pedra e não ter eu forças para derrubá-lo.''

''Repito, enfaticamente repito: todas as pessoas diretas, todos os homens ativos são ativos porque simplesmente obtusos e limitados. Como explicá-lo? Da seguinte maneira: em consequência de sua limitação, eles tomam por primárias as causas secundárias, imediatas, e assim se convencem, mais depressa e mais facilmente do que as outras pessoas, de encontraram um fundamento inabalável para sua atividade. Então se tranquilizam, e isto é que importa. Para começar a agir, com efeito, é preciso antes de mais nada estar perfeitamente tranquilo, sem nenhum vestígio de dúvida.''

   Creio que ambas as passagens possam surtir em amplo debate. Elas me fazem lembrar um conto de Edgar Allan Poe, onde se diz que Deus é o único ser de felicidade plena por conhecer a causa de todas as coisas. A nós cabe uma dúvida sempiterna: qual o sentido da vida? Por que almejar, tentar conquistar, cair e levantar se a história de cada um termina em morte? Se não há final onde tudo se resolva magicamente? Os homens de ação, como bem diz Dostoiévski, com o perdão da redundância, agem; não param para pensar na razão - apenas agem. Ou então se paralizariam diante de perguntas que jamais poderão ser respondidas: qual o próximo passo? Somente incertezas adiante...
   A penúria, a privação de faculdades motoras, enfermidades, insucessos de qualquer ordem sobrevêm mesmo àqueles que se julgam afortunados - se assim pode nomear-se, a sorte muda ao sabor das circunstâncias. Entretanto, não é de sorte que o autor fala; há algo ainda mais incompreensível, não obstante sua aceitação, de característica irremediável, que são as leis da Natureza. Ora, ao deparar-se com ela - a exemplo de um muro - o homem de ação reconhece sua incapacidade de transpor-lhe. O homem de consciência, porém, digladia com esta incapacidade. Por isso Dostoiévski afirma ser a consciência uma doença: ela imobiliza ante a dúvida do porvir. Ou ainda: não se conforma com os ditames da própria vida.
   Tomar o efeito pela causa é, por mais banal que seja a analogia, outorgar uma medida, desejada como ideal pelo bem comum, sem atacar as raízes do provável vício social. É querer remediar situações, que exigiriam a devida anuência, com palavras que em nada mudarão o estado de quem atravessa uma dificuldade, de quem perdeu algo ou alguém, de quem sofre. Ter consciência de que o futuro é incerto, da falência e fragilidade do corpo, da finitude da vida - da possibilidade de sermos seres pífios e quixotescos abandonados no Universo; é decerto uma doença!

domingo, 29 de maio de 2011

Machado e as Batatas

Machado chegou trazendo as Batatas!

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Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908)

''Supõe tu  um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma tribo extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, as aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas.''

   Segundo a Bíblia, o homem foi criado a imagem e semelhança de Deus. A menos que Ele também esteja submetido à fragilidade e limitação da matéria, o homem jamais teve uma origem divina. Ao contrário, sua transformação em ser racional foi um 'acidente' na escala evolutiva. Mesmo que seja capaz de rir, diferenciar-se de seu próximo, discernir, raciocinar e antever a morte, o ser humano não é nada além de um animal. Há aqueles, entretanto, que enaltecem a capacidade de raciocinar, em detrimento de teorias criacionistas, como se o primado da razão lhe desse um poder maior sobre a Natureza - o topo da cadeia alimentar. Talvez seja isto verdade; não obstante, a condição animal não desapareceu.
   Pode-se partir de observações simples que considerem as necessidades fisiológicas e de reprodução que exigem um esforço maior do organismo; e ir mais adiante até a impossibilidade de superar um dado universal: a violência. No entanto, a civilização, filósofa e científica, quer suprimir esta condição a todo custo. Eterno paradoxo! Aqui uma pequena tribo lutando por sua sobrevivência; ali uma nação querendo submeter a outra - e por que, eu pergunto, por que se, depois de séculos perseguindo o que é bom e o que é justo, os seres parecem não ter aprendido nada? Ou será que tantos pontos de vista nunca lograrão resolver nosso dilema, porquanto atrás de cada capa, espada, coroa ou cetro existe uma massa de carne perecível que nos torna iguais neste aspecto?
   As prerrogativas da civilização compreendem o dever de preservação da Natureza; com o devido distanciamento, contudo. Sopeamos os gêneros e prolongamos a vida; desejamos a paz e a igualdade; vestimos roupas e comemos alimentos congelados - porém, e se nós nos depararmos mais uma vez com o campo de batatas? Faremos guerra ou morreremos de inanição?  

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Proust e Dionísio

Eis que surge o Proust também, No Caminho de Swann!
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Marcel Proust (1871-1922)

''Porém, por mais que eu ficasse respirando diante dos espinheiros-alvares, mostrando a meu pensamento que não sabia o que fazer com ele, a perder e a reencontrar, seu aroma fixo e invisível, unindo-me ao ritmo que as suas flores lançavam aqui e ali com uma alegria juvenil e a intervalos imprevistos como certos intervalos musicais, eles ofertavam-me indefinidamente o mesmo charme com uma profusão inesgotável, mas sem me deixar todavia aprofundá-lo mais, como as melodias que tocamos cem vezes seguidas sem escavar mais a fundo o seu segredo.''

  Este pequeno trecho me fez recordar a leitura recente de Nietzsche por um simples detalhe: a obra de Proust, que eu arriscaria chamar de Impressionista, pois que me faz visualizar cada quadro pintado em profusão de cores, a imaginar como seria a Combray de sua época; em breve passagem, evidencia sua união com a imagem vislumbrada, em torvelinho de sentimentos e inspirações que lhe emprestava a Natureza; ao modo de um homem dionisíaco - nas palavras do filósofo: ''Agora, graças ao evangelho da harmonia universal, cada qual se sente não só unificado, conciliado, fundido com seu próximo, mas um só, como se o véu de Maia tivesse sido rasgado e, reduzido a tiras, esvoaçasse ante ao misterioso Uno-primordial.''
   Tal é a prerrogativa da arte: tornar-se um com o objeto; experimentá-lo, vivenciá-lo, incorporá-lo de maneira a representar, mesmo que numa quase totalidade, até que ponto ele toca. Proust, rememorando sua infância, compõe uma obra sinestésica, que empresta ao leitor os odores e os sabores de cores variadas; permitindo que o olhar retorne para sua própria vida, mudando de perspectiva e abrindo os sentidos para ampla percepção. Ainda que o intento do artista não seja este, mas criticar, despertar, criar novos mundos, enternecer; ele deve partir de si, do objeto que lhe é familiar; deve se revelar, colocar suas questões, seu pensamento, se fundir ao 'misterioso Uno-primordial' de sua arte. Escrever livros, por exemplo, acerca de temas alheios, termina em páginas retóricas e sem fundamento.
   Neste tocante, vemos aí pessoas que se intitulam artistas aos borbotões. Confundem o termo com celebridade. Ou mais: há aqueles que submetem a sua produção ao jugo do mercado e a tudo fazem por encomenda - ou ao gosto do grande público. Devido a isso, vemos brotar cantores de uma música só, escritores e seus 'best-sellers', modelos que viram atores, todos para serem consumidos em dado tempo, explorados pela mídia e descartados. Muitos ganham seu quinhão; alguns logram a fama e a arte vai enfeitar prateleiras, às quais recorrem os chamados intelectuais, que pagam para afetar qualquer tipo de cultura picaresca de almanaque e não passarem por ignorantes.
   Também existe uma outra classe de 'artista' que se julga muito talentosa. São aqueles que escrevem poesias sem rima e critério; são pintores de quadros abstratos; são dançarinos contemporâneos; são esses novos cantores que só valem pela melodia de suas canções, quando a letra é um fracasso. Ora, os meios de comunicação em massa transformaram estas categorias na ponta de lança, na vanguarda, em franca contradição com as celebridades de ocasião que tentam promover - no fundo, são tudo uma coisa só: pro-du-to. E, que fique claro, produto a ser consumido, pois não vale investir naquilo que não dá retorno financeiro! Fazer rabiscos em uma tela; rolar no chão e sacudir os braços; combinar porta com amor e contar histórias de bruxinhos até uma criança faz melhor!
    A arte tem a função de conduzir, primeiramente o que a compõe, depois o expectador, à comunhão com aquele Uno-primordial; ela deve se fazer enxergar no cotidiano; deve participar, não obstante a mensagem que traga, da vida de cada um.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Poe e a Esperança

Finalmente, Poe chegou para a festa!
***
Edgar Allan Poe (1809-1849)

O Dia Mais Feliz

I
''O dia mais feliz, a hora mais doce,
conheceu-os a minha alma desolada.
De orgulho e poderio, a mais ousada
esperança (bem sinto) consumou-se.
II
De poderio? Assim pensei! Mas, ai,
toda esperança é já desvanecida!
Visões do florescer de minha vida,
pobres visões, mortas visões passai!
III
E tu, orgulho, que tenho ainda contigo?
Teu veneno herde uma outra fronte incalma
onde, sutil, se instile esse inimigo.
Que possa ao menos descansar minha alma.
IV
O dia mais feliz, a hora mais doce
que meus olhos já viram ou verão,
de orgulho e poderio a aspiração
mais luminosa, tudo (eu sei) finou-se.
V
Mas se a esperança fosse dada, ainda,
de orgulho e poderio, com a mesma fria
dor que outrora senti, não quereria
nunca mais reviver essa hora linda.
VI
Pois negro era o feitiço de sua asa
espalmada, a esvoaçar, onde caía
potente essência destruidora, em brasa,
por sobre a alma que bem a conhecia.''

   O mito da caixa de Pandora, conhecida mais ou menos de todos, diz-nos que, após cada mazela, salvar-nos-ia a Esperança, único bem que dá sentido à vida dos seres humanos. Uma vida que, mesmo condicionada aos ditames do destino, trágico e desabrido, oferece uma resolução que traz alívio; a certeza de que nem tudo está perdido, de que vale a pena viver. Porém, a sorte que ora nos cabe pode ser acompanhada de algum revés. Ou melhor, sempre é acompanhada de algum revés!
   Esperança, Esperança, já diz seu nome que é consolo de quem espera; voa como pássaro por sobre nós e traz, escondido entre as penas, o 'feitiço de sua asa espalmada'. Antes não ter o seu flerte, dar cada passo sem colocar-lhe o peso da expectativa; a ânsia da volta; a espera sem fim. Pois cada minuto é uma eternidade para quem espera - ainda mais quando nunca chega!
   Esperança estava na nova casa erguida pelo homem que, vendo-a destruída pela chuva, desejou ter sido levado junto com as águas. Esperança estava em um mísero frango assado, dividido por mendigos, quando uma pedra se soltou do barranco e esmagou um deles. Nunca se pode ter certeza da chuva que cairá ou da pedra que rolará - vem a sorte e leva embora todas as Esperanças. Então cabe a pergunta: é assim algo tão salutar, que nos move e adianta, que dá sentido a tudo o que fazemos, não obstante a constante ameaça de a tudo perder nos dados ou na roleta? Não alçamos maior desgosto a não ver nada correspondido, ao depositarmos confianças, porquanto o desejável é dar sem pensar no retorno? E nós poderíamos nos livrar desta tal Esperança? Quem sabe tudo não se resuma nisso: aproveitar da casa ou do frango enquanto eles não são tirados de nós?


sexta-feira, 13 de maio de 2011

Tchekhov e o Trabalho

E lá vem Tchekhov com parte de seu conto A Casa de Mezanino.
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Anton Pavlovich Tchekhov (1860-1904)

''-O importante não é que Anna haja morrido do parto, mas sim que todas essas Annas, Mavras e Pielaguiêias vergam a coluna de sol a sol, adoecem por causa do trabalho pesado, a vida inteira temem pelos filhos famintos e enfermos, a vida inteira temem a morte e as doenças, a vida inteira tratam-se, cedo definham, cedo envelhecem e morrem em meio à imundície e ao fedor; os filhos, crescendo um pouco, entram na mesma dança; assim se passam centenas de anos, bilhões de pessoas vivem pior que os bichos, e tudo apenas por um pedaço de pão, presas de um medo permanente. Todo o horror da situação dessas pessoas está em que não têm tempo para pensar nas coisas da alma nem para se lembrar de seus semelhantes; a fome, o frio, o medo animal e montoeira de trabalho, tal qual aludes, obstruíram-lhes todos os caminhos de acesso à atividade intelectual, precisamente aquilo que distingue o homem dos outros animais e constitui a única coisa pela qual vale a pena viver. Vós socorreis essas pessoas com hospitais e escolas, mas com isso não as libertais das peias; vós as tornais ainda mais escravas, pois, introduzindo novos preconceitos, aumentais o número de suas necessidades, para não dizer já que elas terão de pagar pelos emplastros e livros ao ziêmstvo, ou seja, vergar a coluna ainda mais.''  

   O pensamento ocidental, guiado pela filosofia de segmentos do Cristianismo, dignifica o homem através do trabalho. As questões que lhe envolvem trazem à tona dois momentos da História, que ora diviram o mesmo período, a que muitos aludem sem entender: a Escravidão Moderna e a Revolução Industrial. Ambos processos complexos, com diversos aspectos, e cuja compreensão demanda visualização específica de cada caso. Não cabendo aqui uma análise mais profunda, partamos de seus princípios mais amplos, o que talvez rememorem as consciências que lhes têm reconhecimento, ainda que rarefeitos: a Escravidão Moderna caracterizou-se pelo trabalho forçado, onde seu agente, privado de direitos, tratado como propriedade, estava perpetuamente sob ameaça de violência. A Revolução Industrial, por sua vez, modificou as relações de trabalho, condicionando, a períodos longos de serviço, adultos e crianças muito mal remunerados. Está claro que, posteriormente, houve transformações profundas em ambos os quadros, muito embora haja permanências até a atualidade. Há aí, portanto, uma contradição entre a dignidade apregoada e o próprio trabalho: será que é mesmo algo dignificante?
   Trabalho, ao menos no Brasil, é como salvo-conduto, quase uma identidade, herança provável do governo de Getúlio Vargas, quando a carteira de trabalho passou a valer como distintivo - existia uma lei contra a vadiagem que mandava prender quem estivesse 'à toa' e não a possuísse. Pois bem, sinônimo de honestidade hoje é dizer-se trabalhador; algo, aliás, usado se alguém quer se livrar da acusação de um crime, por exemplo. É um engano; trabalhadores podem ser desonestos e continuar trabalhadores. O que ora se pretende discutir, contudo, é a necessidade de se trabalhar. Trabalhamos porque precisamos; precisamos comer, quitar os compromissos pecuniários, e outros tantos objetivos. Mas, e se não precisássemos? Será que as pessoas acordariam cedo, tomariam a condução lotada, se submeteriam a um patrão e a ganhos ínfimos, perderiam tempo de vida realizando coisas que podem não ter validade alguma?
   Essa foi a via que a civilização optou: nós abrimos esse caminho e construímos uma estrada por ele. Nada mais trágico. É bonito dizer que se está 'enrolado', que não tem 'tempo', que está 'atolado' - se as pessoas reparassem no quão melancólico e triste é repetir isso. Afinal, o tempo que elas dispõem ao trabalho as rouba de todos os demais compromissos com a vida; as rouba de perseguir um ideal mais elevado - o que o texto supracitado chama de atividade intelectual. Mais: não as faz parar e questionar a que ou a quem aquele trabalho serve; em que lugar ele coloca; o que ele proporciona - se ele foi uma escolha ou imposição. Trabalhar não é digno, mas saber por que se trabalha e que bons resultados ele pode trazer; se ele degrada ou embota; se ele exige um conhecimento aplicado ou se ele permite ampliá-lo.
   Trabalho é uma necessidade, reitero; muitos estão privados dele. E como seria bom se pudéssemos dedicar boa parte do dia a fazer o que nos dá gosto, prazer. Tchekhov prossegue dizendo: ''Se todos nós, citadinos e camponeses, todos sem exceção, concordássemos em dividir o trabalho que a humanidade gasta para satisfazer as suas necessidades físicas, então a cada um caberiam duas ou três horas por dia, não mais.'' Uma utopia, talvez,  que, provavelmente, nos faria receber em minutos de existência.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Goethe e a Cruz

E temos mais um convidado: Goethe trazendo um trecho de Os Sofrimentos do Jovem Werther.

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Johann Wolfgang Von Goethe (1749-1832)

''Faz parte do destino humano cada um de nós carregar a sua cruz  e beber o fel de seu cálice até a última gota. Se mesmo o Filho de Deus considerou o cálice demasiadamente amargo para Seus lábios humanos, por que devo fingir, considerando-o agradável? E por que deveria envergonhar-me, no terrível momento em que todo meu ser oscila entre a vida e a morte, quando o passado ressurge como um relâmpago alumiando o abismo sombrio do futuro, e tudo desmorona em torno de mim, e o mundo inteiro parece se extinguir? Não é esta a voz de uma criatura angustiada, já sem forças, a quem uma atração irresistível arrasta para o precipício e, em um último esforço, grita: 'Meu Deus, meu Deus, por que me abandonou?' Deveria me envergonhar dessas palavras, se Ele próprio não receou em pronunciá-las, Ele, que reina sobre os céus?''

   Atualmente, talvez pela moda ou autopreservação, as pessoas têm comercializado as receitas de Felicidade ainda mais do que nunca. É forçoso observar que o gênero humano apresenta aspectos muito cruéis, algo infinitamente explorado pelos meios de comunicação, o que faz com que se busque um caminho que fabrique sonhos, que permita acreditar que a realidade pode ser diferente. Basta um olhar sobre a História, contudo, para perceber que esta mesma realidade, não obstante os laivos de esperança, que porventura ofereça uma época, sempre foi marcada por aquela referida crueldade: seja em guerras, perseguições, genocídios, intrigas, assassinatos, etc. É como se nós não pudéssemos nos libertar de características intrínsecas que lembram a todo momento que somos animais. E quando não parte da ação dos homens, é efeito da própria vida: misteriosa, incompreensível e, para muitos, injusta.
   A sociedade tenta afastar a infelicidade, a dor, a fatalidade e a morte. Mesmo que uma leva experimente a solidão e o vazio; que se veja vítima irremediável de doenças ou perdas; que deseje algo impossível; que se depare com a fragilidade do corpo diante do fim; há a necessidade de erguer painéis fantásticos, remendando a existência com imagens de alegria, de igualdade, de amor. O mal deve ser extirpado a qualquer custo; escondido, encarcerado, longe das vistas, em uma medida desesperada de cobrir o espelho e seu reflexo horrível. O que prevalece são as cândidas sensações que nos trazem os livros de mensagens boas, os filmes com final feliz, as terapias, a religião e tantos outros veículos que, assim unidos, vendem a Felicidade. Nada mais falso! E com isso, ela, a sociedade, adoece. Afinal, nem todos logram o destino desejado. Muitos são detidos no caminho e, tardiamente, descobrem que, ao contrário do que dizem, não temos compromisso algum com a Felicidade.
   Então, por que desprezar aqueles que verdadeiramente sofrem? Aqueles que não podem se superar? Aqueles que não podem se reerguer, que não vêem vantagem na miséria, no abandono, na agressão involuntária contra seu corpo e sua alma? Aqueles que jamais terão suas vontades realizadas? Pois há coisas que, nem o Estado e nem Deus, são capazes de remediar. ''Meu Deus, meu Deus, por que me abandonou?'' Por que somos tão ínfimos e tão suscetíveis?  Por que permanecemos nadando contra esta maré que rouba as nossas forças? Não seria mais fácil reconhecer a nossa incapacidade? Que não somos divinos, porém fracos? Apenas recordamos da ressurreição, todavia esquecemos da cruz!

terça-feira, 10 de maio de 2011

Schopenhauer e os Demagogos

   O segundo a chegar para a comemoração é Schopenhauer, com o trecho de A Arte de Escrever, retirado de seu livro Parerga e Paralipomena.
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Arthur Schopenhauer (1788-1860)

''Quando observamos a quantidade e a variedade dos estabelecimentos de ensino e de aprendizado, assim como o grande número de alunos e professores, é possível acreditar que a espécie humana dá muita importância à instrução e à verdade. Entretanto, nesse caso, as aparências também enganam. Os professores ensinam para ganhar dinheiro e não se esforçam pela sabedoria, mas pelo crédito que ganham dando a impressão de possuí-la. E os alunos não aprendem para ganhar conhecimento e se instruir, mas para poder tagarelar e para ganhar ares de importantes. A cada trinta anos, desponta no mundo uma nova geração, pessoas que não sabem nada e agora devoram os resultados do saber humano acumulado durante milênios, de modo sumário e apressado, depois querem ser mais espertas do que todo o passado.''

   Esse é o quadro que percebemos nas Universidades atualmente: alunos e professores pretensamente engajados na construção do saber. Lêem livros, debatem, fazem notas de rodapé, citam autores e a todos, diante da pompa do conhecimento, impressionam e angariam o respeito dos incautos. Porém, se olharmos bem de perto, com uma lupa que aumente sua proporção, veremos que não há efetivamente a construção do saber, mas simples imitação. O esquema, talvez, seja um tanto complexo para quem não teve oportunidade de observar pontualmente, porquanto há muitos aspectos que perfazem o dito quadro. O que se pode dizer é que se a Universidade fosse a ágora grega, haveria a predominância de demagogos.
   Evidentemente, contudo, que não se pode afirmar peremptoriamente que cada Universidade apresente tais características. Mas as temos visto muitas assim. Os professores adotam uma postura absoluta e distante, transmitem o conteúdo das aulas, recomendam textos e, de tal forma se embrenham naquela ciência, que só sabem falar dela. Não adianta que lhes peçam irem além: o conteúdo é limitado. E este mesmo conteúdo vai estampar capas de livros que enfeitam prateleiras, as quais poucos visitam - apenas os iniciados nesta arte e linguagem complexas e herméticas. Viviam gritando contra o sistema e o criticam quando podem, mas são incapazes de desfazê-lo. Ao contrário, se imiscuem e perpetuam aquilo que ora condenavam - se fazem algum trabalho que pareça mais próximo da sociedade, é pura falsidade; na realidade, são seres egoístas qua jamais abririam mão de seu quinhão. Morrerão em suas cátedras, jurando que sua ciência é maior do que as demais.
   No que tange aos alunos, a situação não é muito diferente. Adquirem o conhecimento sem questioná-lo, ou, se questionam, é para atacar o conhecimento do outro. Querem afetar a consciência e presam por valores torpes que divide a turma, a qual acharam por bem juntar-se, para não parecerem retrógrados e mesmo ignorantes. E são extremamente contraditórios: a igualdade e a liberdade se justificam no caso do próximo, quando pensam ser correto julgar; nunca no caso deles próprios, afinal, qualquer coisa que lhes embote a opinião é repressão desavisada. O falar pode ser rebuscado conforme a ocasião, podem tabém usar de expressões modernas e há quem se valha dos talentos da oratória para lograr alguma consideração entre os seus. Porém, nenhum deles parou para se perguntar a razão daquilo tudo, nem mesmo pensou na possibilidade de estar errado. No fundo, o pensamento que tanto divulgam não lhes é original; é uma cópia, uma imensa colcha de retalhos de frases de efeito tiradas de inúmeros filósofos. Culpa do ensino que obriga a tudo provar com referências - nada do que é seu pode servir, a menos que seja corroborado por algum grande pensador. Então, podemos concluir que não há produção, mas reprodução. E uma malta de fantoches que irá virar professora no futuro, mantendo o sistema como ele é. Ora, na Universidade também há padrões: seja no modo de se vestir ou na qualidade dos livros que se lê; o importante é não destoar. Claro que um aluno jamais dirá que segue padrões, pois o padrão é exatamente este!
   A Universidade é uma ilha; ela analisa a sociedade de longe; e se convém, faz seminários, colóquios, convenções para tentar saber o que há de errado extramuros. A ação, entretanto, passa longe de sua intenção. A Universidade é uma ilha, reitero; uma ilha de demagogos.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Victor Hugo e a Pólvora Desperdiçada

   Em Maio de 2011, o Mau Prosador faz um ano de existência. Para comemorar, durante o mês publicarei trechos de textos de autores consagrados, fazendo breves comentários em seguida. O primeiro a ser convidado para a pequena festa é o escritor francês Victor Hugo. Espero que apreciem.

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Victor-Marie Hugo (1802 - 1885)

''Calculou-se que, em salvas, cumprimentos reais e militares, trocas de disparos corteses, sinais de etiqueta, formalidades de cais e cidadelas, saudações ao nascer e ao pôr do sol, feitas diariamente por todas as fortalezas e navios de guerra, aberturas e fechamentos de portos, etc., etc. o mundo civilizado gastava com pólvora, por toda a terra, a cada vinte e quatro horas, cento e cinquenta mil tiros inúteis de canhão. A seis francos cada tiro, são novecentos mil francos por dia, trezentos milhões por ano, que se vão em fumaça. Mero detalhe. Enquanto isso, os pobres morrem de fome.''

   Esta pequena citação foi retirada do livro 'Os Miseráveis', obra monumental que se transforma em verdadeiro tratado durante sua leitura. O trecho é bem atual; não no que diz respeito aos tiros de canhão, mas aos gastos inúteis em um mundo onde milhares de pessoas vivem na miséria. Não é preciso ir muito longe, basta acompanhar o cotidiano das pessoas, suas vontades, suas ambições, seus valores, indissociáveis de um sistema desigual e controlador. O que dizer do consumo, por exemplo? Quase todos reconhecem as mazelas advindas do consumismo, não conseguindo libertar-se, contudo. Afirmam que o importante é o bem estar, é a saúde, e, contraditoriamente, adquirem bens de pouca serventia. Ou ainda: entram em prestações sob o risco de não poder pagar. Não há quem fique indiferente diante de uma grande soma de dinheiro - a questão é saber gastar. Entretanto, o mencionado sistema sobrevive disso, da Economia, tão festejada. E as mesmas pessoas tornam-se números e estatística em uma planilha. A política se preocupa mais com a indústria, o comércio, os faturamentos, os prejuízos e, se fala em serviços para a população, entram sempre em segundo lugar - acelerar o crescimento, esta é a chave da riqueza!
   O consumo está também, não obstante a camuflagem, nos padrões de beleza, na condenação da velhice, no novo estilo musical, na moda, no entretenimento e em tantos outros pontos onde as cifras de poucos chegam na casa dos milhões. E aí vale a questão: de que adianta tudo isto? Matar-se para ter o corpo perfeito, comprar os cremes mais caros que retardam a idade, ouvir a música em outra língua sem nem entender o que está sendo dito e aplaudir celebridades que recebem cachês altíssimos apenas por vestirem roupas de modo adequado, ou por serem belas, por protagonizarem escândalos. E com isso tudo vão os 'tiros de canhão' - supérfluos e dispendiosos!
   A pólvora desperdiçada é a alegoria desta sociedade de disparates absurdos, de polarizações, de extremos. Onde muitos tentam alcançar um objetivo, arrefecendo a competitividade e as teorias de sucesso e positividade, vinculadas ao termo de capacidade, da qual, relativamente, nem todos compartilham. E que valores elegemos? O do conhecimento aplicado, técnico e incompleto; do corpo belo; do trabalho sem escolha; do sucesso financeiro como o fim desejado; do respeito por uma profissão em detrimento de outra; de leis que somente oneram o Estado; e, sobretudo, da irreflexão - platéias e platéias consagram papéis canhestros de atores ruins, ainda que tenham dormido durante o ato.
   Os tiros são cada vez mais comuns e fazem mais barulho. Cada vez que desponta uma nova estrela, no céu da política ou da mídia, se vão mais tantos francos de pólvora. A cada nova negociação ou novo acordo assinado; a cada nova passarela e contrato; a cada novo filme, a cada novo sensacionalismo - tantas salvas de canhão e tantos gastos inúteis! O mundo civilizado talvez não devesse se orgulhar desta alcunha, posto que realmente não lhe faz juízo perante suas levas de miseráveis.


segunda-feira, 18 de abril de 2011

Apenas um Sintoma

   Todos os meios de comunicação veicularam o trágico episódio ocorrido em Realengo até a exaustão. Valeram-se de termos diversos para desqualificar o causador e incitaram a opinião pública a julgar e a perseguir sob a máscara do papel informativo. O senso comum não tem o discernimento suficiente para separar a boa matéria; ele a tudo assume como verdade e sequer sabe diferenciar um psicótico de um psicopata. Aqueles que tinham a palavra, contudo, e a envergadura para contribuir em algum esclarecimento, nada fizeram além de prestar um deserviço. Não houve uma análise satisfatória da situação. Uns acharam por bem contextualizar; outros quiseram dar receitas para evitar futuros eventos similares; houve quem se aproveitasse para fazer campanha, para adotar medidas repressivas com as prerrogativas da segurança. Por fim, só pudemos assistir a desgraça alheia sendo explorada de forma vil, e a desfaçatez da comoção forçada de quem estava indiferente a tragédia.
   Então elegeram o bullying, palavra do momento, como culpado. E mais uma vez a Imprensa saiu-se mal: adotou modelos e distorceu conceitos. Bullying é um nome diferente, inglês, mas que não existia há anos atrás; serve para definir a execração de uma ou mais pessoas por seus colegas de escola. Pois bem, acreditam que a Justiça poderá dar conta de punir seus executores. E eu pergunto: como? Colocando crianças e adolescentes atrás das grades? Estabelecendo multas? Será que a demência dessa sociedade é tanta que não a faz ver que bullying é um problema de Educação? Que é no próprio colégio que nasce e deve morrer o tal do bullying? E, assim mesmo, o bullying pode não desaparecer. Afinal, bullying não se manifesta somente no colégio e de forma evidente. Ele pode ser velado, silencioso. E aí, haverá Justiça que dê jeito?
   O assassino de Realengo foi chamado de animal, e outra questão que se interpõe é: acaso a atitude de colocar a cabeça de alguém no sanitário e dar descarga é digna de seres humanos? Isto não foi dito. A vítima do bullying pode ter uma predisposição a sérios comprometimentos psiquiátricos, e como cada um reage de uma maneira, deu no que deu. Mas os homens de ação tratam o efeito como causa. Os pais e o colégio não assumem a responsabilidade da educação das crianças e seu peso recai sobre os professores. Agora, o jeito é remediar uma sociedade que está doente. Wellington foi apenas um sintoma.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Vontade e Civilização

   Cada ato de crueldade, que aos homens escandaliza, nos desperta para nossa terrível condição animal a qual a civilização não logrou sopitar. Está certo que temos a razão como aliada e que para a sobrevivência da própria civilização é necessária a manutenção de princípios morais e éticos - o que compreende não matar. Entretanto, passam idades, eras, épocas inteiras e a violência continua presente. E por que, pergunto eu, não podemos de vez superá-la?
   Dostoiévski, grande autor realista, nos fala, em um de seus livros¹, que, não obstante a ciência seja capaz de prever cada ação, ainda assim existirá a vontade dos humanos, classificados por ele como 'ingratos'. E essa vontade, em tempos de bem-aventurança, distorce maldosamente os mencionados princípios, pelo simples prazer de se contrapor à razão, parcela ignota da constituição física. Vamos a ele: ''Que é que a civilização suaviza em nós? A civilização só faz produzir no homem a diversidade de sensações, e decididamente nada mais. E, graças ao desenvolvimento dessa diversidade, acontece que homem pode acabar encontrando prazer no sangue. (...) Seja como for, se a civilização não tornou o homem mais sanguinário, decerto o fez mais perversamente, mais covardemente sanguinário do que antes. Antes, ele via no derramamento de sangue um ato de justiça e era de consciência tranquila que ele exterminava quem lhe aprazia; hoje, embora considerando o derramamento de sangue uma coisa abominável, entregamo-nos a essa abominação ainda mais frequentemente que antes.'' Mais adiante, ele continua: ''mas a razão é a razão, e satisfaz apenas a faculdade de raciocinar do homem, enquanto que a vontade é a expressão da totalidade da vida, ou seja, da vida humana inteira, inclusive a razão e seus escrúpulos; e embora nossa vida real, tal como se exprime assim, se torne às vezes má, nem por isso deixa de ser vida, e não uma extração de raiz quadrada. (...) Que sabe a razão? A razão só sabe o que aprendeu (...) enquanto que a natureza humana age com todo seu peso, por assim dizer, com tudo o que traz em si, consciente e inconscientemente; e, mesmo errando, vive. (...) Mas repito-vos pela centésima vez: existe um caso, um só em que o homem pode conscientemente, propositadamente, desejar o que é desvantajoso para ele, o que lhe parece estúpido, muito estúpido - simplesmente para ter o direito de desejar para si até mesmo o que é muito estúpido, e não ficar preso à obrigação de só desejar o que é sensato.''
   Ouvi, certa feita, que a maior tragédia do homem foi a civilização; a todo momento essa sensatez nos faz coibir, dentro de aspectos políticos ou religiosos, a Natureza que não consegue aceitar que Deus predestinou o homem a um destino sublime; que este homem é a imagem e semelhança do Ser Divino; esta Natureza que percebe possivelmente que o mundo conhecido é apenas mera ilusão, uma construção, e que seus valores são falhos, vagos e facilmente burláveis. A vontade está acima de qualquer estudo científico - ela não pode ser dissecada por fórmulas. O que é sensato, portanto? Pode o sensato suprimir sua vontade? Ou melhor: pode o homem dizer impossível que cometa um ato de sua vontade? Que julgue seu próximo como se estivesse imune à tal Natureza? A vontade está acima da civilização!


1: DOSTOIÉVSKI, Fiodor M. Notas do Subterrâneo. 6ª ed. Rio de Janeiro: Bertand Brasil. 2008.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Alienistas Alienados

   Dizer de Machado de Assis que era pessimista é pura retórica. Talvez porque buscasse entender a alma humana acima de todas as suas demandas - e reconhecia sua irremediável miséria. Provavelmente, será esta a sensação que o leitor terá nas páginas de O Alienista, onde um cientista procura pesquisar os males psíquicos que assolam os habitantes de Itaguaí, na virada do século XVIII para o XIX. Com muito humor, carregado, porém, de certa melancolia, Machado demonstra que o discurso racional nem sempre está associado aos métodos ortodoxos, antes feito de paliativo, valendo-se das prerrogativas da própria ciência para contraditoriamente prender pessoas sãs, as quais nada apresentavam de evidentemente anormal, e cuja conclusão é algo irônica. No fundo, nada passava de um ponto de vista de Simão Bacamarte, aquele quem dá título à obra; homem que gozava do respeito e admiração locais, mas que acaba provocando reações adversas da população. Humor com melancolia significa rir da frágil condição dos seres; rir um riso triste dos que pensam deter todo o conhecimento, mas que em verdade não entendem de nada. Antes: mesmo com o pouco adquirido, não percebem o extenso caminho a percorrer; ou ainda: a impossibilidade de percorrê-lo.
   E quantos alienistas não vemos atualmente? Quantos daqueles que nos dizem o que devemos comer, vestir e pensar? Frequentemente, médicos, psicólogos, pedagogos, advogados, administradores aparecem para interpretar a sociedade, indicar os novos rumos, entender o comportamento, o modo correto de agir. Não logramos abandonar o discurso civilizatório - e mais: padronizador, higienizante, condenatório - dentro de uma perspectiva racional, defendendo que isto, e não aquilo, é o melhor para todos. Se é administrador, como se deve portar-se em entrevistas, fazer um currículo e a que geração pertence; se é médico, a refeição mais saudável ou o exercício para não morrer logo; se é psicólogo, a atitude da pessoa que pode possuir algum transtorno que a deixe louca; se é advogado, a lei que pune quem não andar corretamente; se é pedagogo, como pais e professores devem domesticar suas crianças. Reitero: o discurso civilizatório é padronizante, higienizador e condenatório. Padrozinante, pois entende que todos são iguais e devem agir da mesma maneira; higienizador porque pretende identificar as enfermidades e curá-las, mesmo onde elas não existam; e condenatório quando estimula a perseguição através das leis.
   Mas é possível que a sociedade seja civilizada desta maneira? Há alguma fórmula que possa prever os desequilíbrios da mente ou do organismo; do pai, do patrão ou do professor? Alguma fórmula qual seja  para que possamos desfrutar da tecnologia dentro da devida moral? Ou será que os cientistas de nosso tempo não sabem que as leis, os compêndios, os remédios são insuficientes para tratar do caso dos seres humanos? Pois bem, sairemos sempre como alienistas, acreditando nesta fórmula, trancafiando a todos que parecerem destoar, que parecerem loucos; não somos capazes de enxergar a nossa diferença, a nossa particularidade, a nossa individualidade, intens a que o modelo não comporta. Somos alienistas alienados, os quais no fim descobrem que quem deveria estar internado no hospício éramos nós!

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Um Pouco Sobre a Justiça

   Recentemente, treze pessoas foram presas por protestarem diante da embaixada dos Estados Unidos durante a visita do presidente Obama. As treze pessoas manifestavam-se pacificamente, mas foram desabridamente repelidas e conduzidas a presídios. Não houve uma acusação formal, não houve um julgamento. Apenas a determinação de um juiz e a conivência da sociedade que, malgrado seu, não foi satisfatoriamente informada devido o caso ser assim sopitado pela grande imprensa. Uma breve nota de jornal, porém, guardou um imenso significado: a supressão dos direitos democráticos em prol de um bem maior. A frase é tão curiosa quanto a sua origem. Afinal, o que são direitos democráticos? E que bem maior é esse?
   O cidadão tem direito de protestar, tem direito de reivindicar e tem direito de se posicionar; e isso não somente em época de eleição, quando a Democracia é festejada. Se direita ou esquerda, cada um pode expressar-se, pois este é um princípio de uma sociedade que se quer livre e autônoma. Todavia, o passado nebuloso do Brasil insiste em reaparecer; passado onde havia autoritarismo e punição. E não por vias justas; por vias repressivas. Este fantasma não foi plenamente exorcizado - ele ainda nos assombra nas ações da polícia e, agora, nas medidas do judiciário.
   Certa vez, uma professora disse que o poder judiciário rivalizava com o executivo. Parece, entretanto, que o executivo encontra-se nulo. E pior: o legislativo e o mencionado judiciário, ora associados, fazem corroborar a idéia de que o bem público é algo privado. Ou será que não foi uma medida personalista, capaz de vencer a própria lei, que ordenou o encarceramento das treze pessoas sem um julgamento? Digo personalista, pois não se pode fazer prevalecer uma ideologia sobre outras dentro da Democracia - ou então teremos uma ditadura! Mais: teremos perseguições, proibições e encarceramentos propriamente ditos!
   Terrível precedente, péssimo exemplo! Isto demonstra que qualquer cidadão pode ser abordado, posto a ferros sob o pretexto da ordem, não obstante esteja exercendo o seu direito de manifestar-se. Isto demonstra que estamos vulneráveis diante das atitudes de qualquer pessoa que alcance um cargo notório, como o de um juiz, e que, valendo-se das prerrogativas, entenda que o certo é extrapolar suas reais funções! Tantas pessoas morreram em nome da Liberdade e olha aí, a História do Brasil é marcada por regimes autoritários e por golpes, de maneira que vivemos com o 'rei na barriga' e nos prosternamos até o chão às autoridades.
   Na aula daquela mesma professora, analisamos o código de 1830 e chegamos à conclusão óbvia de que quem legisla, legisla em causa própria - era assim com as leis do Império, é assim com as leis de hoje. Ao contrário do que era de se esperar: que as leis fossem constantemente revistas e questionadas; são tomadas como absolutas e, pelo visto, passíveis de serem burladas. Servem para que um calouro de direito, ou mesmo um desembargador, ufane-se, com a Constituição debaixo do braço, e diga que você poderá ser processado porque não sabe com quem está falando! O judiciário orgulha-se do seu prestígio e alardeia sua pretensão de agilidade, porém não consegue livrar-se da carga de um poder que pune ao invés de corrigir. Aí protagoniza este teatro canhestro prendendo treze pessoas que somente exerciam o seu direito de manifestar-se - coisa, aliás, garantida por lei.
   Enquanto elegermos o judiciário como aquele que realiza a vingança por nós, estaremos a mercê desse Estado desequilibrado, onde os poderes deveriam regular-se e não desaparecer uns diante dos outros.

sábado, 2 de abril de 2011

O Romantismo de Amélia

   Amélia é que era mulher de verdade - diziam; de fato, era moça, cabelos negros, pele alva, lindos olhos esmeraldinos, mediana, fresca, odor de rosas... Linda! Além de tudo era inocente. E sua inocência cativava. Se velha, pela candura e bondade; se amiga, pela atenção e deferência; se família, pelo respeito e devoção; se homem, pela beleza e ancas largas que fariam qualquer um fartar-se. Apetitosa! - Afirmariam antigamente - gostosa! - Diriam certamente nos dias de hoje.
   Amélia sonhava. Sonhava com um príncipe que lhe fizesse muito feliz. E ia aos poemas com certa volúpia, imaginando que um daqueles amores poderia estar guardado para si. Lia romances e se via resgatada, de toda maldade e todo o tédio, por um cavalo branco que a levaria ao castelo dos suspiros. Escrevia em seu diário, anotava a espera, contava os minutos e mirava a paisagem pela janela, apoiando a cabeça na mão direita, correndo os olhos pelos transeuntes, assistindo ao sol poente e depois, a lua majestosa! E ali, arfando da saudade de algo que não viveu, sentia poder rebentar de paixão por alguém que não existia. Caso se encontrasse sozinha, permitia correrem-lhe as lágrimas, as quais iam molhar a fronha de mais uma noite solitária.
   Todavia, dentre as reviravoltas da vida, surge o Dimas. Rapaz bonito, alto e de personalidade. Era desejado em segredo por muitas jovens do bairro; e invejado, talvez, por muitos outros que lhe tinham na conta de cafajeste - afinal, ainda que um canastrão de marca maior, Dimas saía com a mulher que quisesse. Certa feita, seus olhares se encontraram e Amélia sentiu palpitar-se inteira. Teve até um pouco de vertigem e mal pôde balbuciar um cumprimento quando Dimas veio falar-lhe. Foi em uma festa. Dali a alguns dias estavam namorando. Amélia escrevia seus versos, fazia desenhos de rodapé, vivia o amor em cada gesto como uma princesa encantada. Dedicava ao Dimas seus pensamentos, sua respiração e sua existência. Primeiros amores são assim: crê-se no enlace sempiterno, na sobrevivência e na eternidade do namoro. Uma breve nota, porém, deve ser observada: os pais da menina não aprovavam, mas ainda assim o recebiam em casa. Para ela, o fato da desaprovação emprestava um ar trágico a que todo o amor deve prosternar-se. Ou não seria amor. Na cabeça dela funcionava assim: amores impossíveis, fugas repentinas, sacrifícios são todos ingrediente de romance e felicidade. E temia, temia que ele morresse, temia ver-se separada de Dimas, temia não realizar todo o platonismo que, para Amélia, ganhava o clamor de um fetiche.
   Dimas, então, em um desses encontros tórridos e proibidos - no banco detrás ou na sombra da árvore; queria ir com Amélia às vias de fato. E tanto fez, tanto insistiu, que ela cedeu e armaram tudo para não perder o clandestino, o mistério. A fantasia de Amélia mistificou a união dos corpos, a comunhão que os tornaria unos, que sacramentaria o sentimento, mesmo que, em seu íntimo, achasse que deveria antes casar-se. Entregaria-se e quase não podia conter-se por isso!
   Dimas pegou um carro emprestado, buscou-a às oito e só parou próximo da rodoviária, em uma rua pouco iluminada e frequentada por tipos estranhos. O hotel ficava ao lado: construção baixa, de três pavimentos, parecendo exceder em idade devido a sua decadência. Dimas e Amélia subiram as escadas escuras e chegaram no andar do quarto: uma porta empenada abria-se para um cubículo que cheirava a mofo. Havia infiltrações pelas paredes, um colchonete, uma lâmpada pendurada por um fio e insetos, muitos insetos. A moça não esperava por aquilo, não era aquilo que ela havia imaginado. Dimas acendeu um cigarro e foi tirando a roupa; em seguida, forcejou por tirar a dela. Depois de alguma insistência, ambos enfim deitaram e ele pediu que ela fizesse coisas imundas, além de gritar um palavriado baixo e tentar agredi-la. Nua após o ato, deixou-o deitado de lado e foi banhar-se. Não havia tábua no retrete; um cano fazia jorrar a água gélida sobre ela e um sabãozinho de coco serviu-lhe para lavar a intimidade cheia de sangue.
   O romantismo de Amélia morreu  naquele quarto barato de um hotel ordinário, nos braços de um homem cuja vontade era destruir-lhe a pureza... nada mais...

segunda-feira, 7 de março de 2011

Entrevista com uma Socialite

Entrevistador: -estamos aqui com a socialite Lucinha Lafourd, que acaba de voltar de Nova York onde apresentou um desfile da sua mais nova grife. E aí, Lucinha, o que está achando da recepção aqui no Copacabana Palace?

Socialite: -estou achando tudo maravilhoso, a festa está linda; só estou estranhando um pouquinho o calor do Rio de Janeiro. Sabe como é, em Nova York faz um frio nessa época do ano!

Entrevistador: -e como foi apresentar a nova coleção de sua grife nos Estados Unidos?

Socialite: -ah, foi maravilhoso. Você sabe que eu não modelo mais, né? Meu marido tinha ciúme de mim na passarela. Aí resolvi montar essa grife e chamei vários modelos e estilistas para me prestigiarem. Agora, nós estamos querendo abrir uma filial em Londres, Paris, Milão e, quem sabe? Aqui no Rio.

Entrevistador: -parece que você superou muito bem a morte de seu marido, Pierre Lafourd...

Socialite: -ah, Pierre era maravilhoso. Morreu com noventa e três anos, acredita? Ninguém dizia, meu amor, Pierre era inteiraço! Nosso amor era verdadeiro porque não via idade; nossas almas eram jovens, isso que importava.

Entrevistador: -para quem não sabe, Pierre era dono de uma das maiores cadeias de hotéis do mundo e, curiosamente, não tinha filial no Brasil.

Socialite: -ah, mas já tem previsão para abrir uma em Ilhéus, se não me engano. Uma rede indiana quer comprar e prometeu abrir uma filial aqui.

Entrevistador: -você vai posar nua novamente?

Socialite: -como é que você sabe disso? Ah, me fizeram uma proposta, eu estou estudando com meu empresário; me chamaram também para ser Rainha de Bateria. Mas agora só estou interessada em lançar o meu cd; se Deus quiser, até novembro sai.

Entrevistador: -mas essa mulher tem alma de artista, depois de lançar um livro, agora um cd também?

Socialite: -a arte é maravilhosa, gente. Aquele meu livro vendeu feito água; era um romance que se passava na Europa e no meio tinha uns roteiros gastronômicos, umas dicas de hotéis. Eu quis unir o útil ao agradável, sabe? E tudo bem baratinho para as pessoas sem recursos poderem aproveitar também, né? Afinal, quem não gosta de viajar? E a Europa é logo ali!

Entrevistador: -a renda foi para a sua ong, né?

Socialite: -foi, e a renda do novo cd também vai. Inclusive, eu fiz um leilão, antes de viajar, em prol dessa ong que visa recolher da Zona Sul as pessoas em situação de rua. Porque todas elas estão na linha de risco, né? E a ong tem um espaço bom, um espaço onde essas pessoas poderão encontrar dignidade! Ao invés de deixá-los usando drogas, assaltando, a ong recolhe e leva para lá! Não é maravilhoso?

Entrevistador: -e o que a ong oferece?

Socialite: -lá tem cursos de etiqueta, línguas e em breve teremos corte e costura. Não basta dar o peixe, gente, tem que ensinar a pescar, e com esses cursos, eles terão os instrumentos necessários para arranjar uma profissão. Olha, se vocês quiserem visitar, nosso espaço fica em Sepetiba... As pessoas se queixam da distância, mas de táxi é rapidinho! Passem lá, estamos precisando de doações.

Entrevistador: -é de iniciativas como essa que o país precisa para melhorar!

Socialite: -é, sim! E o último governo fez um bem enorme a essa população com uma obra, que eu não chamaria nem de social, mas de caridade. Quando que a esquerda faria isso, gente? Impensável, né? Todo mundo dizia que comunista comia criancinha e olha aí, quer atitude mais cristã? Nada contra as outras religiões, gente! Foi maravilhoso, agora só voto com eles!

Entrevistador: -e agora, você já tem um novo destino para viajar?

Socialite: -amanhã embarco para Paris, meu amor, preciso renovar meu guarda-roupa! Esse calor do Brasil faz a gente suar e aí estraga minhas fazendas. Fora que Paris, nessa época do ano, é ma-ra-vi-lho-sa!

quarta-feira, 2 de março de 2011

Capitalismo Selvagem II

Na última mensagem que deixei aqui, aventurei-me a falar sobre o Sistema Capitalista. Está claro que é um tema inesgotável e que jamais caberia em um mero 'post'; aliás, é tema que mal caberia no espaço de um livro, devido aos seus múltiplos aspectos. A minha intenção foi a de abordar determinados pontos que me têm causado um certo incômodo e o fiz de forma sucinta e pouco explicativa; 'joguei no ar' como dizem. Portanto, gostaria de esmiuçar algumas coisas, o que ainda não será de modo satisfatório.

***

1- Digo que sou pessimista por não crer que uma só ideologia dê conta de abarcar e transformar um processo histórico plenamente, alterando o sistema de modo satisfatório. Ideologias são frágeis, permeáveis e mudam ao sabor do momento; são incapazes de alterar um estado essencial da natureza humana. Pois, por mais que tenhamos o status de civilizados, jamais deixaremos de ser animais. Afinal, a nossa compreensão dos direitos humanos não superou um dado universal: a violência entre os povos é algo latente, existe desde que o mundo é mundo.
2- Apesar de ser cristão, tenho severas críticas ao Cristianismo; ao me ver, a mentalidade tacanha da sociedade ocidental se deve em parte à sua cultura religiosa. Talvez, o que ora vá dizer tenha mais a ver com o catolicismo: o discurso de humildade, subserviência e compaixão tornou o nosso pensamento medíocre, nos estagnou, nos fez hipócritas. Afinal, por que é ilícito reconhecer suas próprias qualidades, enriquecer, ambicionar, desejar algo grandioso e não se contentar com pouco? Por que temos sempre que nos justificar como se pedíssemos perdão? Por que não podemos dizer o que realmente pensamos e escamoteamos qualquer reação adversa para ser politicamente corretos?  Jesus expulsou os vendilhões do templo, mas nós só lembramos de dar a outra face!
3- Ainda sobre a mentalidade cristã: as situações que provocam a comoção alheia, movimentam a sociedade em favor daqueles que sofreram prejuízos; pois bem, o Cristianismo, em todas as suas vertentes, prega a caridade e a compaixão, mas não há nada pior do que isso. Entenda-me: não há sentimento que nos torne mais superiores do que a compaixão, e não há ato que nos distancie mais do próximo do que a caridade. O indivíduo faz doações para pessoas que ele nem conhece, acreditando que cumpre um dever perante Deus e esquece-se de atuar no seu cotidiano como uma pessoa de bem. Jogar moedas no gazofiláceo, para fazerem bastante barulho e outros perceberem o tamanho da obra, é uma prática corrente. Todavia, ao invés de mandar um casaco roto através de terceiros a alguém desconhecido, deveríamos ser solidários - e não caridosos - com aqueles que estão ao nosso lado. Não quero dizer que sejamos indiferentes, mas objetivos quanto à real mudança que podemos proporcionar. De que adianta me preocupar com a fome, no outro lado do oceano, se os meus vizinhos sofrem? Por isso eu não acredito quando o empresário fulano, ou o artista beltrano, aparece na televisão para mostrar o grande favor que fez à sociedade com tais e quais projetos.
4- Afirmar que a sociedade é extremamente desigual é lugar-comum. Ela sempre foi e sempre será; já o disse, sou pessimista. Uma camada, que se diga minoria, exije seus direitos, mas com a devida punição daqueles que os violarem; ou seja, não há garantias de acesso à cidadania que desfaça a discriminação, a desigualdade, porque há sempre um ponto de vista, há sempre um referencial cultural, há sempre um desejo de punir, há sempre uma perspectiva maior e melhor em detrimento de outra - há sempre um oposto, um mal a ser combatido! Não adiantam os presidentes negros, mulheres, operários, são todos seres humanos, falhos e insígnes. Não adiantam a Justiça e a mídia que se quer combativa; elas estão sempre construíndo novos valores e perseguindo, ainda que sutilmente, quem não concorde, condenando previamente quem pense diferente ou mesmo quem deu um mal-passo, como se ninguém pudesse errar. E aí todos se calam, porque é feio dizer que a coleguinha é gorda, que detesta animais, que não gosta de pobre, que o outro teve uma conduta repreensível, etc, etc... O desejável é ser hipócrita, é julgar, mas afirmar que não o faz; é ser desigual, é alimentar um sistema com a suprema ignorância que nos torna cegos à crítica das nossas próprias práticas; é se matar na academia e nunca ter o corpo perfeito; é querer copiar o cabelo e o nariz da protagonista; é se trancafiar em casa com os animais e colocar-lhes roupa e nome de gente; é achar que cair de bêbado e beijar oito pessoas de sexos diferentes na mesma noite é ser de vanguarda; é se furtar do contato pessoal, dos laços sociais; e, sobretudo, é enriquecer os terapeutas porque nos sentimos extramente solitários em um mundo sem valores!
5- Inaugurou-se uma nova ditadura da bem-aventurança: as pessoas precisam ser felizes. E a que preço? A Felicidade plena é uma utopia e não foram poucos aqueles que já defenderam essa idéia. Talvez pelo fato de jamais conseguirmos aproveitar um instante que seja de Felicidade. E como poderíamos? A vida é regida pelos números, pelas estatísticas, pela alta do mercado; agora as grandes empresas valorizam a criatividade, a versatilidade de um profissional robótico que, feito rato, corre em uma roldana para produzir cada vez mais e, quando esgota-se - entenda-se: quando envelhece - é mandado embora. Os administradores, os economistas e as infelizes do RH vivem fazendo recomendações de como se deve ou não compor o currículo, de como se deve ou não se portar em entrevistas, de como se deve anular a personalidade de alguém para que seja bem-sucedido profissionalmente. Quem permite que eles falem? Quem lhes deu ouvidos? Quem sabe não são os mesmos que se convencem com as propagandas que vendem a Felicidade; que compram livros de auto-ajuda porque são feios e desempregados e nunca logram um lugar embaixo do Sol que ilumina o alto executivo e o galã da novela? Quem lhes disse que é essa a verdadeira Felicidade?
6- A sociedade está mais alienada a cada dia, e eu me incluo nela. Não perseguimos a instrução, não buscamos ampliar nossos horizontes. Lemos uma Literatura comercial, não estamos acostumados a refletir. Vivemos em constante medo e pedimos o auxílio do malfadado  Leviatã. Imitamos, pois não temos personalidade para reinventar. Adotamos a opinião do grupo para não destoar. Não acreditamos em nada porque não há nada em que se acreditar. Bebemos muito, perdemos os sentidos, imergimos na fantasia enganosa dos aditivos para não vermos a realidade. Rogamos pela paz e subsidiamos a violência. Somos extramente contraditórios. Queremos ser o chefe da matilha, queremos ser selecionados e continuar vivendo na ilusão de que somos os mais inteligentes animais.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Capitalismo Selvagem

   Sou um crítico atroz do Capitalismo; não que comungue das opiniões socialistas ou comunistas. Mas creio que a via que escolhemos para nosso desenvolvimento foi péssima, de maneira que somos incapazes de escapar-lhe, porquanto estamos irremediavelmente vinculados ao consumo. Não obstante, tenho o direito de abominá-lo,e abomino.  O homem transformou amor de pai, amor de mãe, o sexo e até Deus em produtos geradores de lucro: vide o crescimento do comércio, da indústria pornográfica e das igrejas; que vendem carinho, prazer e perdão. E para qualquer coisa que se vislumbre, pergunte-se: quem está lucrando com isso?
   Parafraseando um poeta contemporâneo, o Capitalismo está 'na Natureza'; por isso mesmo o interpreto como 'selvagem'. Isto porque ele não foi uma teoria inventada, ninguém disse: 'a partir de hoje estará fundado um novo sistema'; ele está enraizado e profundamente associado à nossa moral paleolítica, que insiste em permanecer vívida apesar das inovações tecnológicas. Por todos os lados vemos competição, disputa acirrada; seres humanos mais capazes, mais aptos a este ou aquele serviço - seleção natural. Abomino também a Administração e a Economia; podem ser necessárias, porém a que mundo? São duas ciências, imiscuídas a tantas outras que surgem a cada dia, que raciocinam em números, estatísticas e que calculam quanto de prejuízo houve em uma tragédia qualquer, onde centenas de pessoas morrem. Ou será que não é isso que se ouve falar quando há uma enxurrada, terremoto ou incêndio: 'o ramo de hotelaria, o comércio, etc, etc deixaram de lucrar'?  Serão também honestas as intenções daqueles que eregem a solidariedade em grandes painéis para que todos se sensibilizem com suas vultosas contribuições? Quanto não recebem em troca, quanto de renda indireta? 
   Aí vêm a mídia, a consultora de RH e o economista dizer se beltrano está dentro dos padrões de beleza e inteligência, se ele faz parte de uma nova geração, a qual recebeu grande carga de informações, e se é um profissional de ponta a ser aproveitado pelo mercado de trabalho. E se beltrano não for nada disso, ainda lhe restará a velha fórmula da Felicidade, tão alardeada e tão vendida pelos escritores de auto-ajuda: seja feliz com o que você tem, ainda que feio, mal-ajambrado, pobre e desempregado! São esses os valores do Capitalismo. Mais: são esses os valores que a civilização judaico-cristã ajudou a erguer - 'os humilhados serão exaltados, e os exaltados serão humilhados'. Civilização esta, aliás, que defende acintosamente a Democracia, como regime igualitário e ideal para qualquer sociedade, sendo que este mesmo regime, contraditoriamente, é um dos mais desiguais.
   Sou pessimista, sim, o confesso; não acredito na segunda vinda de Jesus ou na Revolução Comunista. Lamento, com pusilanimidade e indolência, a terrível via que a nossa civilização escolheu. A nós cabe remendar pateticamente a solidão na qual nos vemos imersos gradualmente: tratamos os animais feito seres humanos, perdemos mais tempo em frente ao computador, nos furtamos de encontrar amigos e parentes, queremos ser bem-sucedidos antes dos trinta anos, tememos a velhice, desejamos um corpo esbelto e, sobretudo, fugimos dos laços sociais. Resta-nos que Deus tenha comiseração e nos exalte depois dessa humilhação que consentimos ao ajudarmos a manter-se de pé o edifício condenado do Sistema; pois que somos bons filhos e agradecemos por ter a liberdade... Liberdade de consumo.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Soterramento

   Começou com um leve trepidar; como o sono já se avizinhava, deu de ombros. Ajeitou-se mais uma vez na cama e virou de lado. O trepidar, contudo, aumentava. A chuva, caindo no meio da noite, rugia ferozmente e a catadupa, com seu barulho infernal, crescia, descendo feito rio das encostas, transformando a rua adiante em escoadouro. E do alto vinham os gritos, ainda baixos, longínquos, logo ganhando força, reverberando, agudos, desesperados, sumindo em seguida; a fúria das águas arrastava a gente para o abismo profundo da morte. No silêncio, que ainda teimava no quarto, Ivan tentava dormir. E, inopinadamente, o mundo veio abaixo.
   Era uma casa térrea, construída na subida do morro, que seu Lourisval acabara de caiar. Possuía janelinhas modestas e um quintal que circundava a propriedade. Ali viviam o próprio Lourisval, viúvo e já entrado em idades; Ivan, seu único filho e o cachorro vira-latas, que se abanava ladino com seu rabo no terreiro. O velho, na força de seus braços, ergueu a casa, aos poucos, assim guardando, assim economizando para enfim chamar de sua aquela morada. Infelizmente, a pobre esposa não sobrevivera para ver o sonho do portãozinho de ferro, das cortininhas rosadas, das paredes branquinhas, das margaridas na entrada, concluído. E Lourisval lembrava-a entristecido e dedicava cada pedacinho, de muro ou de azulejo, à amada de muitos anos. Depositava, agora, todo seu amor no filho, no jovem filho, para quem deixaria seu tesouro.
   A Ivan, em seu íntimo, não agradavam a cidade, o bairro ou mesmo a casa. Pareciam-lhe de uma feiúra, de um atraso, padecendo, a cada dia, da vontade terna de ir alhures buscar sua felicidade. Pensava na capital, na profusão de luzes a piscarem, dançando vivazes, provocando risos e a oportunidade da agitação das novidades contadas aqui e acolá; pensava nos amores caros, pensava no poder dos cifrões; pensava em algo rico, colorido, belo a pulsar longe daquele lugar arenoso, calado e aborrecido. Mas nada dizia ao seu pai; nada, nada dizia. Permitia ao velho gozar da fantasia de seus últimos anos, a alegria de acreditar no grande feito de toda uma existência - acreditar que aquela casa seria eterna e duraria o tempo das pirâmides. 
   Certa noite, Ivan foi ter com alguns amigos por ocasião do aniversário de um deles. Mas a festa, a tal ponto entediada, fez com que Ivan  saísse logo nas primeiras gotas de chuva. Algo lhe fazia desejar, mais que tudo, a tranquilidade do seu quarto. Talvez o corpo cansado do trabalho, talvez a conversa morosa daquela gente. Experimentou algum alívio quando bateu na cama; entregou-se ao sono que a tempestade veio interromper. Não obstante a torrente, a terra que se desfazia e a água que já carregara todos os convivas daquela festa, Ivan dormia; seu Lourisval berrava, o cachorro latia, a lama invadia - Ivan dormia. E no sonho, em contraste absoluto com o sonho anterior da casa, seu corpo, aquele corpo cansado, evolava como fumaça, tamanha a brincadeira que a tempestade fazia: jogava-o de lá para cá, de cá para lá, feito títere macabro, frangalho grotesco disputado pelos dois extremos da linha.
   Quando abriu os olhos, nada lograva divisar, apenas sentia uma dor lancinante que percorria seus membros. Naquele momento, não podia ver que estava embaixo de uma massa de terra molhada e escombros e que uma placa de concreto apoiava-se em seu tórax e escorava-se perpendicularmente na parede atrás, formando um ângulo de quarenta e cinco graus. Ironicamente, esta mesma placa protegera o pescoço e a cabeça de Ivan do completo soterramento, mas exercia-lhe uma pressão que o sufocava gradativamente. Perguntava de si para si o que ocorrera, onde estavam seu pai e seu cachorro; em seguida vieram-lhe a imagem da casa, dos momentos passados ali, da felicidade que jamais reconhecera. Lágrimas surgiram naquele corpo moído, naqueles ossos esmagados, naqueles músculos retesados pela umidade frígida. Desejou, por fim, apenas em um breve instante, renunciar à capital para estar novamente no lar, ao lado do pai e do cachorro. E neste torvelinho, o anúncio silente da alvorada trouxe com ele um certo movimento, rumores distantes, vozes que cresciam na sua direção. ''Alguém veio me tirar daqui!'' - quis gritar: ''socor...'' - mas o grito sufocou na garganta - ''eu estou aqui, eu estou aqui'' - sua mente, de tanto que se afligia, quase poderia produzir um som; a voz em nada obedecia; o grito ainda sufocava. Boas intenções nem sempre levam a grandes feitos, principalmente quando a azáfama produz uma atitude pouco estudada: a picareta de um dos homens, que assim revolvia o escolho, atingiu algo - um cano, talvez - fazendo, mais uma vez, brotar a água que, descendo em jorro, escorreu até o pequeno fosso formado pela placa de concreto, a parede e todo o entulho; o fosso por onde escapara a cabeça de Ivan a respirar. Pouco e pouco, o líquido gélido tomou a boca e as narinas da pobre alma aterrorizada pelo anjo que ainda não se evadira. Horas mais tarde, acharam Ivan, do corpo moído; e cabeça afogada.