sexta-feira, 25 de maio de 2012

Sonhamento


Conto enviado por Leonardo Lusitano.

Sonhamento

- Sonhos. Somos nós que sonhamos...ou serão eles, na feitura do real encorpado em cada um que nos sonham?
Sonhando ou sonhado, eis o sonho:
Estava em casa, não raciocino bem se em Lumiar ou na novidade de Itacoatiara. É fato que a razão faz apenas sua parte. Atrás da casa existe, no sonhamento, um rio que só descobri de ouvir. Ver nunca tinha visto. Já era noite, assim começo de noitinha. Talvez as seis horas da tarde onde o anjo- em sonho- anunciou a vinda do filho do dono de muitas moradas. Inclusive a minha? Voava a casa no céu e o lago eram nuvens escondendo-mostrando a aguinha sua de outro jeito? A fantasiação. Cabe no sonho?
O acontecimento sonhante foi que do lago, atrás da casa, vinha uma bela melodia: daquelas que a gente pensa que os anjos cantam em dia de festa pascoal, quando a vida recomeça. Aturdido com a potência desadjetivada daquilo, flutuei até os fundos ( do mundo?) e vi o que só se podia ouvir: um cardume de anjos cantando a Paixão de São Matheus, sonhada por Bach!
Sonho-entre-sonho, era o estúrdio aquilo. Puxando o mundo para si, angelicais, simplesmente cantavam para o rio! Kommt, ihr Töchter, helft mir klagen, podia-se escutar. Cantavam a vida, para que ela se movimente, permaneça a mesma na mudança. Cantavam os peixes que se entregam em alimento, como o filho cósmico sem tempo ensinou a destinarem-se. Cantavam a surpresa com aquilo que nos acostumamos a ver e desacostumamos a pensar: a natureza é divina e o homem, apenas uma parte do todo. Homens nascem, capim rebrota, porque a vida criou o ovo e a galinha. Ela vem junto.
Co-movido, entrei no rio. Quis me plasmar na celebração da natureza com os tempos. Tudo em harmonia. Todos os tempos naquela água inicial. Todo o verde, todo azul, todo o branco, o tudo e o todo em escuta concertada. E foi então que um dos anjos me disse:
-Viver não é um sonho. Viver é um sonho.

sábado, 19 de maio de 2012

Deuses Canibais e Forças Predatórias


Neste mês de maio, o blog Mau Prosador faz dois anos, e para comemorar, serão publicados textos de autores convidados. O primeiro foi escrito por Leonardo Leitão. Para mais de seus contos, acessem: http://absortoemabsurdos.blogspot.com.br/

--X--

Deuses canibais e forças predatórias


Eu estava pensando... chove lá fora e eu estive pensando. Minha casa desabou comigo dentro e me matou. Mas minha casa não é um barraco precário construído com papelão em uma encosta íngreme e lamacenta. Minha casa tem mais de cem anos e foi construída pra durar mais de mil, eternamente. Foi construída em uma extensa campina, pelo pai do meu avô, ou pelo pai dele. À frente tem uma avenida ladeada por altas palmeiras e atrás um pasto a perder de vista. 
A água da chuva foi minando a casa, se infiltrando nos tijolos e na massa até que todo sólido ficou poroso. O único sinal disso eram uns focos de mofo aqui e ali. Normal para uma casa velha. Mas no todo ela não era tão velha sabe, ela tinha apenas uns cento e poucos anos apesar de ter sido construída para durar mais de mil. 
Eu ainda ouço na minha cabeça os tambores dos pretos, de quando eles cantavam e gritavam. Não sei se me contaram isso quando criança ou se a lembrança me foi transmitida geneticamente pelos meus ancestrais, expostos tão continuamente ao som desses rituais. Eles cantaram a toa, todos trabalharam até morrer. Eu não, mesmo morto continuo pensando, não vou morrer nunca porque meus pensamentos foram feitos para durar mais de mil anos. Por que eles batiam aqueles tambores se isso não os salvou da morte? Quais forças eles tentavam mobilizar a seu favor? Não faz diferença, não adiantou. Nada adianta. As raízes das árvores continuam movendo-se lentamente, quebrando concreto, a chuva continua minando construções, o vento transformando pedra em areia e o mar transportando areia por aí. 
Só meu pensamento continua, por mais de mil anos, eternamente, e dentro dele os tambores dos pretos.