domingo, 30 de dezembro de 2012

Ônibus

   A estrada que ligava um município ao outro estava escura. Somente o brilho dos faróis lançava luz um pouco adiante, mais os dos demais carros que vinham pela pista contrária. O aperto no peito, quase esmagando o coração, forçando as lágrimas nos olhos, faziam-no conduzir raivosamente o ônibus por aquelas vias mal iluminadas. Abaixou um tanto a cabeça, respirou fundo - e tudo se apagou inopinadamente... Quando tornou a si, sentia uma dor terrificante pelo corpo: dor de costelas quebradas, dor de ferro atravessando a coxa, dor de pernas partidas, de ventre fendido, de sangue esvaindo - dor de morte...
   Havia três anos que estava na companhia quando Josival entrou: caboclo mediano, neto de pernambucanos emigrados, era cheio da manha risonha e simples; chegou conquistando amigos, próprio que lhe era a facilidade de levar a todos o conforto de uma nova amizade. Tomou a função de trocador. No início não se bicaram. Josival não logrou entrar naquele peito endurecido e taciturno que odiava aquele trabalho, como só alguém que faz por pura necessidade e por ter esposa e uma linda menininha para sustentar.Tanto que respondia atravessado aos passageiros, não tinha paciência com os velhos que se demoravam a subir na condução e vivia se queixando dos horários de trabalho - se cedo, se tarde, se sábado ou domingo. Mas retinha para si o queixume; aos outros apenas azedume, de maneira que nenhum colega mexia com ele.
   Josival, no terceiro mês, passou a ser um companheiro de jornada - bem ou mal -, trocando notas e moedas no mesmo ônibus. Ah, coube a ele a tarefa de abrir uma fresta ali para que se pudesse ao menos vislumbrar algo no interior. Aos poucos, entretanto, aos poucos. Falava muito, ainda que não obtivesse resposta, ria sozinho, debochava, e como adorava uma dancinha aconchegante acompanhada da boa aguardente, convidou-o para ir, dia desses, no bar perto de sua casa. 
   Foi ali que o rapazote, cinco anos mais moço, passou a ser visto com olhos diferentes - alegre, desinteressado, não muito bonito, é verdade, porém conquistador. Saltaram dos cumprimentos às conversas de bar, às visitas mútuas, ao riso frouxo. Tratavam-se na intimidade fazendo piadinhas infames, parecendo dois garotos, emprestavam dinheiro na hora do aperto, consolavam-se.
     ''Ah, Josival, o seu sorriso, a colônia barata, o peitilho aberto com o crucifixo reluzente...''- pegou-se pensando assim. Havia mudado algo em seu interior. Não sabia bem o que era, todavia. Afastou as imagens... Aquelas imagens... Não, não, como poderia? Deitou-se e abraçou sua esposa... Jo-si-val, continuou a reverberar enquanto não dormia...
     Josival não mais dividiria o mesmo ônibus, foi substituído por outro naquele horário. Não se encontravam mais, os horários não coadunavam - só ficou uma saudadezinha inexplicável e a raiva voltou. Sentia-se estranho, ainda mais quando falavam nele: Josival fez outros amigos, novos amigos...  
     Meses correram com ambos afastados. Aquilo amainou dentro de si e cria já esquecido até que, certa noite, parou no ponto final e ele estava lá, palestrando animadamente com o despachante. Disse que ia embora e pediu uma carona até a garagem. Por fim, Josival decidiu-se a ficar mais um pouco, ensombrecendo o breve sorriso no rosto do antigo companheiro. Irritado, fechou a porta e deu a partida. Sim, aquilo existia adormecido embaixo de toda a fuligem, como brasa quieta, ao menor sopro reavivada.  Mas o quê? Mas o quê? O que era aquilo? Cerrou as pálpebras e viu novamente o sorriso de Josival - na curva, outro ônibus vinha na pista contrária... Perdeu o controle...
     As pálpebras abriram-se novamente, uma última vez. O olhar vazio, perdido, procurava por ele. Foi a derradeira impressão na retina, após o que tudo escureceu...

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Amor Verdadeiro

   Ela levantou primeiro. Entrou no vestido curto cinza com estampa de cobra; espalhou um pouco do perfume importado no pescoço, escolheu algumas bijuterias, o relógio de pulseira fina, ajeitou o chanel, trepou nos saltos, pegou sua bolsa vermelha com alças douradas e cutucou o marido - ''estou indo, vou na frente, ouviu?'' - colocou os óculos escuros e ainda verificou no espelho se aparecera algum novo vinco no rosto. Ele levantou depois. Banhou-se, besuntou o cabelo com pomada, ficou entre a camisa de gola verde e a azul e sorriu por levar bem menos tempo para estar pronto; passou a mão na pasta preta e foi tomar café.

   Ele, enquanto cortava o pão, reparava de esguelha na diarista: baixinha, bem magra, de sandálias rasteiras, bermuda enfiadinha e blusinha curta. Num repente levantou e aproximou-se dela por trás. Concentrada na louça e sussurrando uma musiquinha, assustou-se com as mãos que escorregavam até seu ventre - ''o que é isso, seu Carlos?'' - tentou se desvencilhar dele -''ô morena, sabe que você ficou ainda mais bonita com esses seus cachos alourados?''- disse roçando seu corpo no dela - ''adoro esse seu perfume barato'' - ela logo reagiu - ''seu Carlos, o perfume não é nada barato, viu? Comprei a colônia em duas vezes na revista da Zulmira, entendeu? E olha, dona Vânia não vai gostar nada de saber que o senhor anda fazendo essas coisas!''- ele a virou de frente - ''esquece a dona Vânia e mostra esses biquinhos para mim, vai!'' - ela ainda relutando - ''seu Carlos, eu estou grávida'' - isso parece tê-lo açulado mais - ''deixa eu chupar esses biquinhos e eu lhe dou um celular novinho!'' - minutos depois, ele desceu as escadas do prédio com ar satisfeito e limpando os cantos da boca. 

   O motorista já esperava por ela. Entrou no carro no banco do carona e cruzou as pernas. Apesar de passar um tanto dos quarenta, sua pele ainda era lisa e tenra, e sentia um certo prazer em exibir suas coxas que escapavam dos vestidos que usava. Mesmo que não fosse uma mulher bonita, notou que o motorista andou reparando timidamente nela. Logo ele, um rapaz tão calado, formoso, porém, e longe dos trinta. Fantasiava, é verdade, com um homem mais novo, não obstante o seu marido fosse um. Mas ela desejava um bem mais, algo inexperiente, ou aparentando ser. Alguém como seu motorista, robusto e de olhos verdes; alguém com aquele perfume e pelos no peito. O carro diminuiu a velocidade por causa do trânsito engarrafado. Foi quando ela deu um piparote na guimba de cigarro, virou-se para ele e balbuciou no ouvido: ''o médico recomendou que eu andasse sem calcinha'' - depois deixou sua mão correr até a virilha do motorista ruborizado, pegou no pulso dele e levou seus dedos para baixo de sua roupa. Mandou que lhe fizesse uma massagem na região; e ela, esticando-se no banco, retesando os membros, cerrando as pálpebras, gemia baixinho. Ele só parou quando os dedos estavam molhados e ela acendia outro cigarro. Ao estacionar o carro, ela saltou e disse alto: ''passe para me pegar às seis!''

   À noite, após chegarem do trabalho, Vânia e Carlos jantaram e viram televisão; deitaram cada um em seu lado da cama e antes de apagarem a luz do abajur, beijaram-se e enfim um disse ao outro: ''amo você".




segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Picadinho

   Wilson era um homem aborrecido. Seco, austero e não obstante os tempos se forem, ele permaneceu firme ante os ventos de modernidade. Cresceu ouvindo o pai falar bem de Getúlio, e com igual veemência defendia a ditadura arrematando: ''naquela época é que era bom!'' - tornou-se um velho chato, daqueles que desata um palavrório infinito quando encontra um conhecido na rua, ou se inventa de catequizar algum jovem - ''ouça a voz da experiência, garoto!'' A bondade, entretanto, não vem com a idade. Ora, quem foi enjoado por toda a vida, o será também na morte!
   Sua esposa, de nome Vera, era uma mártir. Tinha que cozinhar, passar, cuidar da casa enfim e ainda aturar aquele homem. Em diversos momentos, arrependera-se secretamente, e imaginava outro destino para si. Mas estava velha também e não se permitia certos desejos. Seu marido levantava-se cedinho, sentava-se sempre no mesmo lugar da mesa, tomava seu café e ia ler o jornal. Daí é que começava a reclamar do governo, do preço das coisas, dos gastos mensais. E, em seguida, sua distração era achar defeitos em tudo o que via na casa e na esposa: ''o móvel da sala está empoeirado'', ''você deveria fazer arroz fresco mais vezes'', ''essa sua blusa não é muito decotada para uma mulher de sua idade?'', ''quantas vezes eu já disse que meu suco é com adoçante?'', ''estou com uma dor aqui, acho que morro em breve. O que será desta casa sem mim, hein?'' - e levantava-se para ir à banca, fazer fezinha no bicho e amofinar algum incauto vizinho. 
   Desfilava as canelas finas e as rugas franzidas no cenho, de peitilho aberto da camisa amarela, bermuda desfiada; grisalho e meio dentuço; gago exasperante ao defender suas posições amalucadas e rançosas. E discutia, xingava, era o senhor da razão - falava mal de mulher, de preto e de viado - ''está tudo errado! Eu já disse para meu filho que não quero neto mulatinho! Agora, se andar com homem, acho que eu mato! A culpa é da mãe dele, que não criou direito!''
   Vera, então, teve uma ideia. Agora não mais bufava enquanto ouvia Wilson. Limitava-se a soltar alguns risinhos discretos. E ele perguntou, certa vez, o que era. Não era nada, estava apenas pensando na receita do picadinho que serviria no almoço de domingo.
   - Picadinho? Finalmente você resolveu fazer algo diferente! Veja se fará isso direito, hein, pois penso até em chamar a minha mãe. Na última vez foi um desastre! A feijoada ficou rala, horrível! Bem, e como é essa receita, posso saber?
   -Claro, vai ser um picadinho com carne de porco! - dito isso, cravou-lhe a faca de carne no pescoço.
   No domingo, os familiares todos elogiavam o prato. A mãe de Wilson estranhou a ausência do filho.
  -Ele foi fazer uma viagem, mas fez questão que eu a convidasse... Está servida de mais um pouco de picadinho, dona Amália?

sábado, 20 de outubro de 2012

Borboleta Azul

   Aquele homem dormia em um dos últimos bancos do ônibus. Encolhido, envergado para o lado direito, agasalhado e cheirando mal. Quando viam o ser de rosto sumido na aba da boina, as pessoas escolhiam outro assento ou preferiam ficar de pé. Mãos e pés envelhecidos, carcomidos, estragados, nus denunciavam sua condição. Havia se urinado, mas isso ainda ninguém notara. Um sono profundo dormia. Nenhum barulho em redor, de fala, freio ou buzina, o fazia despertar. Rodou horas a fio pela linha circular, até que por fim o trocador resolveu sacudi-lo: ''ei, já chegamos na garagem, acorda!''
   Não recordo seu nome, acho que era algo similar a Francisco. Sei que foi professor durante um tempo. Era voluntário e ensinava adultos a ler. Também era escritor, entretanto suas histórias nunca foram escritas de fato; permaneceram na imaginação. Tinha família; se não me engano, arranjou-se com uma moça quando já entrara em idades. Dois filhos nasceram daí: Melgibso e Shéreston, ambos nomes que homenageavam atores estrangeiros dos quais ele gostava. A mãe queria batizar o primeiro filho de Romestilte, porque na casa onde trabalhava, os patrões viviam dizendo que iriam ver o 'home theater'; de onde concluiu que, tendo um nome tão bonito, deveria ser alguém importante. O marido explicou que se tratava de um aparelho. O segundo também era menino, por isso resolveu adaptar e o chamou assim - com o sobrenome Silva. Seu Silva dizia de si para si: ''Melgibso será advogado; Shéreston, um grande médico''; um se envolveu com más companhias e foi preso, o outro engravidou uma menina e viveu de bico; e a esposa, a pobre esposa, morreu desgostosa na eterna fila do transplante. 
   Seu Silva, então, quis afogar-se em um copinho de cerveja, depois de vinho barato e, finalmente, cachaça. Bebia, bebia e comia sonhos, sonhos que jamais se realizaram. E no auge da embriaguez, tinha novamente sua mulher ao lado na cama, aninhava seus filhos pequenos, nutria o desejo de um destino diverso para eles, escrevia seu livro sobre uma borboletinha azul para crianças, comprava uma casinha fora do morro... Era um  homem de valor! Mas ora, seu Silva, o senhor sempre fora um homem de valor! Quem poderia ter alfabetizado com palavras retiradas de papéis avulsos catados do lixo? Talvez virasse notícia de jornal sob o título 'superação'. Era estranho o gosto popular por esta palavra sendo que ele jamais alçara esta tão nobre e sonhada superação. Do que se tratava mesmo? Sobreviver e ser admirado por isso? Admiração nunca encheu barriga, doutor! Exemplo muito menos! Meu filho continua na cadeia e o outro repetiu o pai!
   Surtou após uma bebedeira. Sumiu na cidade, não sabia onde estava. Chamava por um e outro; chamava nomes. Diziam-no louco, bêbado, enxotavam-no. Uma ideia, então, lhe acudiu: juntou uns trocados que amealhara na rua e pagou para entrar em um ônibus. Ali podia dormir tranquilamente, e proteger-se da chuva. Rodava, rodava, rodava, esquecido de si, esquecido do mundo, perdido; rodava, rodava, rodava pela cidade, em bairro de luxo e de lixo; rodava, rodava, rodava dormindo até que...
-Ei, já chegamos na garagem, acorda! - seu Silva ao menor toque tombou, de olhos cerrados e boquiaberto.  Morrera havia algumas horas. E ninguém se dera conta... Ninguém se dera conta que, naquele coração habitara uma borboleta azul; borboleta azul que agora voava...

sábado, 6 de outubro de 2012

Menos Uma Boca

   O pobre rapaz de carnes moles, indolente e cabelos ralos, encontrava-se esparramado no colchão. Àquela hora do dia, passando das onze, aproveitava-se do silêncio langoroso fazendo movimentos tímidos de quem não quer levantar. Abriu um olho, depois o outro, bocejou e passou logo a mão num aparelho para saber das últimas notícias do mundo - ergueu a tampa e ligou; só lá pelas tantas lembrou de comer... E já era tempo de almoçar. 
   Arrastou-se pelo corredor, em trajes menores e com uma camisa de tamanho grande. O palor da pele acentuava-se ainda mais por causa dos panos brancos; o que agravava seu aspecto enfermiço, mesmo que não estivesse doente, mas apenas denotando alguém que não costuma sair muito do quarto. Catou algo para comer, requentou e esgueirou-se novamente, parando um tanto desdenhoso na porta do cômodo. Correu as vistas em torno de si: roupas espalhadas, sujas e limpas misturadas, no chão, na cadeira e na escrivaninha; revistas, copos, farelos, um bodum tenebroso tresandando toalha molhada, meias encardidas e resto de comida. Deveria arrumar a bagunça... Sim, algum dia, concluiu. 
   -Bernardo, vou na casa de sua tia - passou a mãe dizendo - depois vou com ela fazer compras, viu? - Beijou-lhe a testa e saiu, ignorando o estado do filho. Cansou-se, é verdade, de falar dos seus modos, do seu comportamento, de que deveria dar um jeito no quarto, de que ele já transpusera os trinta e ainda não tomara rumo na vida - estou velha e não suporto mais, ademais, ele sempre se tranca e liga o rádio no último volume - pensava. E, de fato, naquele universo particular, Bernardo era o único que existia - e respirava.
   Recostou-se novamente no travesseiro, comeu parcamente, largou o prato, espalhou algumas migalhas e voltou a relacionar-se virtualmente. 
   Cochilou e, quando deu por si, era tarde. Lembrou-se de tomar banho. Embora o asseio fosse inadequado, sentia com prazer, no banho demorado, a água quente bater em suas costas. Seu pai, então, esmurrou a porta:
   -Bernardo, quando tiver um emprego e puder pagar a conta, você gasta o quanto quiser! Eu não sou mais obrigado a lhe sustentar! - O pai interrompera um momento íntimo, onde quase atingia um êxtase, e teve raiva dele por isso. Fechou o chuveiro, parou para contemplar seu corpo flácido no espelho e suas olheiras de quem troca a noite pelo dia; examinou os dentes amarelecidos, uns pontos avermelhados no rosto; percebeu que possuía menos fios de cabelo, que sua barriga crescera em terrível contraste com os membros finos, que sua corcova aumentara. Vestiu-se para ouvir a ladainha paterna sobre trabalho, sobre o que seria dele quando os pais morressem, sobre o irmão que se encaminhara, sobre ser um inútil etc. Fechou, então, a porta do quarto, colocou o rádio no último volume e deitou-se outra vez.
   Possuía um personagem, entretanto, virtual que era como ele, Bernardo: vestia-se bem, namorava uma moça bonita, morava em um casarão com piscina, andava de carro próprio e visitava os milhares de amigos em suas residências, onde havia festa sempre. Dinheiro era fácil, e quando era tempo de procurar um emprego, bastava acelerar o relógio para que a noite chegasse mais depressa. Ali havia uma felicidade estranha - enquanto a realidade desmoronava.
   Dia desses, Bernardo acordou com uma sensação esquisita, uma pontada, parecia faltar-lhe o ar. Não conseguiu erguer-se, estava fraco. E, pouco a pouco, a vista escureceu. Gradativamente, então, deixou de funcionar. Como era de costume a família não se encontrar, ou melhor, haver apenas encontros furtivos no corredor, na sala, nunca na mesa da cozinha; ninguém notou sua ausência. Até o cheiro estranho no quarto foi tido como normal. Somente após uma semana, quando a faxineira retornou, foi que se deram conta: -acho que seu Bernardo está morto!
   A mãe desesperou-se, o irmão estava de saída e o pai balbuciou secretamente: -menos uma boca para alimentar!

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Justa Causa

   Aparício era um juiz que sonhava com o desembargo. Imaginava-se mil vezes tomando posse. Talvez porque viesse de uma família tradicional de magistrados. Desde a época do Império, dizia seu avô quando ainda era criança, seu bisavô já se tornara conceituado jurista; e de lá para cá, todos os homens - primos, tios ou irmãos - formaram-se advogados, procuradores e o próprio pai de Aparício, Aparício filho, foi desembargador. Portanto, daí a imensa responsabilidade - ''tornar-me-ei desembargador'', dizia de si para si, ''para não decepcionar papai''.
   Em seu apartamento, de frente para praia, todo mobiliado com móveis de jacarandá, alguns até remanescentes da antiga casa vizinha ao Palácio do Catete; havia um desfile de fotografias dos ancestrais que davam ao bom sobrenome o orgulho de se ostentar na sala seu grande peso, que equivalia a ter um Caravaggio original. Está certo que o Guinard e o Brecheret não eram autênticos, porém serviam para emprestar àquela sala um ar moderno e sofisticado; mais para reafirmar que Aparício não parou no tempo. 
   ''Este aqui foi meu avô'' -respondia com embófia caso perguntado- ''era amigo pessoal de Clóvis Bevilácqua!''; pensava intimamente que o poder judiciário deveria se sobrepor aos demais, porquanto não fosse eletivo. Não, não que se colocasse frontalmente contra a democracia. Só possuía uma nostalgia langorosa quando revia a imagem de seu batizado, ao qual compareceu Getúlio Vargas pouco antes de morrer. Teria dito que aquela criança seria um poderoso mandatário! Se tornou um juiz - indolente, roliço, de pés cascudos e pelos nos ouvidos, abandonado ao costume rançoso de olhar de esguelha as ancas da empregada enquanto fumava seu charuto. De quando em quando, sua esposa lhe gritava: ''não vais ao tribunal hoje?'', ao que ele respondia: ''amanhã, amanhã'' - e tornava às pernas, aos quadris da moça que se esforçava por dobrar a coluna para limpar embaixo do sofá. 
   Teve um filho que se salvou de chamar-se também Aparício. De vinte e dois anos, mais ou menos, que, depois de uma viagem a Orlando, decidiu que iria estudar música. Seu pai teve um achaque.''Como'' - interrogava-se - ''como pretende sobreviver de música?'' O rapaz tocava violão razoavelmente e guitarra, e foi graduar-se em oboé. Não possuía qualquer talento, todavia. E como nesta terra se faz artistas em cada esquina, achou que contava com o apoio dos pais. Ledo engano. Aparício ameaçou deserdá-lo se não se tornasse um advogado! Com o tempo cedeu e prometeu inclusive montar um estúdio para o filho.
   Certo domingo, pela manhã, Aparício ainda se debatia na cama depois de um sonho ruim, quando ouviu-se uma bulha que se aproximava. Eram gritos e batuques que cada vez se faziam mais sonoros. O juiz, então, chegou na janela e viu que uma multidão, empunhando cartazes e faixas, repetia alto palavras de ordem que alguém berrava em um alto-falante. 
- O que significa isto? Será que um homem de bem não pode mais descansar? - e passando a mão no telefone, ligou para a delegacia - aqui é o juiz Aparício! Tem um bando de baderneiros debaixo da minha janela! Onde já se viu? O quê? Protesto pela legalização do quê? Mais um motivo para o senhor mandar seus homens sentarem o malho nessa patuleia! Eu quero dormir, caramba! Eu sou juiz, eu baixo uma liminar, hein!
   Logo a polícia chegou contundente, com porretes e bombas de efeito moral, dispersando toda a gente e fazendo alguns prisioneiros. Aparício, de sua varanda, sorria numa maliciosa satisfação, assistindo de camarote ao espetáculo. ''Essa juventude está mesmo perdida'', concluiu.
   Passada uma hora, o telefone toca: era da delegacia. O filho de Aparício havia sido preso na manifestação. Vislumbrando um possível vexame, vociferou: 
- Senhor delegado, onde nós estamos? Meu filho é um menino bom, honesto! Só mesmo neste país é que inocentes vão para a cadeia! Ele tinha todo o direito de se manifestar, oras! Afinal, vivemos ou não em uma democracia? - E batendo o telefone - era uma justa causa, oras!

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Outra Entrevista com uma Socialite

Entrevistador: -marcando o retorno de nosso programa, estamos aqui no Jóquei Clube para entrevistar a socialite Lucinha Lafourd que hoje está promovendo um jantar beneficente.

Socialite: -é isso mesmo. Esse jantar é em prol da nova ong que eu estou ajudando a fundar.

Entrevistador: -e que ong é essa? Como surgiu essa ideia?

Socialite: -Eu fiz uma viagem espiritual pelo sudeste asiático e lá eu tive uma iluminação: por que não ajudar os animaizinhos carentes? Quando eu voltei, em Novembro do ano passado, reuni umas amigas socialites daqui do Rio e de São Paulo e resolvemos fazer todo esse movimento, porque eu acho que o nosso país está precisando. Aí foi maravilhoso! Todas elas aceitaram e hoje estamos aqui, nessa noite linda!

Entrevistador: -fale um pouquinho mais sobre o que a ong oferece...

Socialite: -então, na verdade ela oferece bem mais do que um abrigo. Nós montamos uma casa na serra e para lá nós levamos os animaizinhos de rua. A ong oferece alimentos baseados em dietas balanceadas, hair stylist, personal trainer, além de ter adaptado as maiores grifes de roupa, joias e acessórios para cães e gatos. Lá também tem adestradores multilíngues e duas novidades: uma linha exclusiva de cosméticos e cirurgia plástica! Vocês precisam conferir, é maravilhoso!

Entrevistador: -assim eu vou ficar com inveja desses animais, hein! E me diz uma coisa, e aquela sua outra fundação?

Socialite: -aquela que recolhia pessoas em situação de rua? Infelizmente, nós não tivemos o apoio necessário do governo estadual e, por falta de verba, tivemos que fechar as portas!

Entrevistador: -é um absurdo o que o nosso governo faz!

Socialite: -Eu pago meus impostos e quero ter o direito, por exemplo, de ver a rua limpa! Mas não é isso que a gente vê na zona sul, entendeu? Seria maravilhoso poder andar com tranquilidade nessas praias lindas da cidade...

Entrevistador: -você poderia tentar a carreira política, já pensou nisso? Lucinha Lafourd para presidente!

Socialite: -mas eu venho como deputada no próximo pleito! Eu quero que a discriminação contra os animais tenha um fim! Poxa, não é possível que, em pleno século vinte e um, nós tratemos cães e gatos como animais! Eles são gente como eu, como você, como o telespectador, entendeu? Meu sonho é que uma emenda constitucional transforme em crime inafiançável o ato de chamar um cãozinho de animal!

Entrevistador: -e nesse jantar beneficente, qual é o cardápio?

Socialite: -um cardápio vegetariano com verduras, legumes e grelhados.

Entrevistador: -mas grelhados não são carne animal? Animal não é gente?

Socialite: -ah, uns são mais gente do que outros, né?
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CONFIRA AQUI A PRIMEIRA ENTREVISTA

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Sonhamento


Conto enviado por Leonardo Lusitano.

Sonhamento

- Sonhos. Somos nós que sonhamos...ou serão eles, na feitura do real encorpado em cada um que nos sonham?
Sonhando ou sonhado, eis o sonho:
Estava em casa, não raciocino bem se em Lumiar ou na novidade de Itacoatiara. É fato que a razão faz apenas sua parte. Atrás da casa existe, no sonhamento, um rio que só descobri de ouvir. Ver nunca tinha visto. Já era noite, assim começo de noitinha. Talvez as seis horas da tarde onde o anjo- em sonho- anunciou a vinda do filho do dono de muitas moradas. Inclusive a minha? Voava a casa no céu e o lago eram nuvens escondendo-mostrando a aguinha sua de outro jeito? A fantasiação. Cabe no sonho?
O acontecimento sonhante foi que do lago, atrás da casa, vinha uma bela melodia: daquelas que a gente pensa que os anjos cantam em dia de festa pascoal, quando a vida recomeça. Aturdido com a potência desadjetivada daquilo, flutuei até os fundos ( do mundo?) e vi o que só se podia ouvir: um cardume de anjos cantando a Paixão de São Matheus, sonhada por Bach!
Sonho-entre-sonho, era o estúrdio aquilo. Puxando o mundo para si, angelicais, simplesmente cantavam para o rio! Kommt, ihr Töchter, helft mir klagen, podia-se escutar. Cantavam a vida, para que ela se movimente, permaneça a mesma na mudança. Cantavam os peixes que se entregam em alimento, como o filho cósmico sem tempo ensinou a destinarem-se. Cantavam a surpresa com aquilo que nos acostumamos a ver e desacostumamos a pensar: a natureza é divina e o homem, apenas uma parte do todo. Homens nascem, capim rebrota, porque a vida criou o ovo e a galinha. Ela vem junto.
Co-movido, entrei no rio. Quis me plasmar na celebração da natureza com os tempos. Tudo em harmonia. Todos os tempos naquela água inicial. Todo o verde, todo azul, todo o branco, o tudo e o todo em escuta concertada. E foi então que um dos anjos me disse:
-Viver não é um sonho. Viver é um sonho.

sábado, 19 de maio de 2012

Deuses Canibais e Forças Predatórias


Neste mês de maio, o blog Mau Prosador faz dois anos, e para comemorar, serão publicados textos de autores convidados. O primeiro foi escrito por Leonardo Leitão. Para mais de seus contos, acessem: http://absortoemabsurdos.blogspot.com.br/

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Deuses canibais e forças predatórias


Eu estava pensando... chove lá fora e eu estive pensando. Minha casa desabou comigo dentro e me matou. Mas minha casa não é um barraco precário construído com papelão em uma encosta íngreme e lamacenta. Minha casa tem mais de cem anos e foi construída pra durar mais de mil, eternamente. Foi construída em uma extensa campina, pelo pai do meu avô, ou pelo pai dele. À frente tem uma avenida ladeada por altas palmeiras e atrás um pasto a perder de vista. 
A água da chuva foi minando a casa, se infiltrando nos tijolos e na massa até que todo sólido ficou poroso. O único sinal disso eram uns focos de mofo aqui e ali. Normal para uma casa velha. Mas no todo ela não era tão velha sabe, ela tinha apenas uns cento e poucos anos apesar de ter sido construída para durar mais de mil. 
Eu ainda ouço na minha cabeça os tambores dos pretos, de quando eles cantavam e gritavam. Não sei se me contaram isso quando criança ou se a lembrança me foi transmitida geneticamente pelos meus ancestrais, expostos tão continuamente ao som desses rituais. Eles cantaram a toa, todos trabalharam até morrer. Eu não, mesmo morto continuo pensando, não vou morrer nunca porque meus pensamentos foram feitos para durar mais de mil anos. Por que eles batiam aqueles tambores se isso não os salvou da morte? Quais forças eles tentavam mobilizar a seu favor? Não faz diferença, não adiantou. Nada adianta. As raízes das árvores continuam movendo-se lentamente, quebrando concreto, a chuva continua minando construções, o vento transformando pedra em areia e o mar transportando areia por aí. 
Só meu pensamento continua, por mais de mil anos, eternamente, e dentro dele os tambores dos pretos.