quinta-feira, 30 de junho de 2011

Voz da Mata



   As cores do fim de tarde esmaeciam em tons suaves de azul arroxeado e coral; as trevas, da noite que já se anunciava, cerravam vagarosamente a sua boca sobre a mata, acinzentando as folhas, outrora verdes, das árvores centenárias. A vegetação, com seus galhos, talos e furtivas flores, desaparecia do último plano, restando ao caminho apenas os troncos pardacentos de plantas que pareciam adormecer. Ouvia-se balbuciar o filete de água que serpenteava, quase sumido, na rama seca, para ir deitar-se alhures no mar; ou o passo minúsculo de algum lagarto, ou o romper de toco sem seiva - no mais, reinava o silêncio.
   A Natureza, contudo, que insiste em coabitar com a cidade, não passa sem ser perturbada, mesmo que seu ninho faça desaparecer o tempo: dois rapazes singravam degraus colocados ali, não se sabe por que mãos, para facilitar a passagem; o primeiro, movido pelo ímpeto da idade e irrefletido, andava com certa destreza, ironizando o que ficara para trás, mais novo, a quem sobrara moderação, resbunante pelas vias tortuosas da trilha. Aquele sumia das vistas deste por vezes, encontrando-se em qualquer curva, imitando animais selvagens por mera provocação, depois da qual ria-se como se fosse a brincadeira mais engraçada. A razão de estarem ali era um simples passeio: subiram um monte e agora o desciam rapidamente, pois a promessa da paisagem não desculpara a escuridão - era preciso voltar o quanto antes, para não se perderem!
   Os trajes incomodavam um pouco, porquanto fossem inadequados para o tipo de exercício que se apresentava. Mas nada fazia esmorecer a agitação que uma inusitada aventura proporcionava - o alívio bucólico da amofinação citadina servia de refrigério aos olhos e ouvidos cansados do barulho incessante. Ali puderam encontrar um universo diverso, imutável e indiferente; eivado de tintas e de sons; uma tela vívida, enfim. O que ia adiante pulava entre as pedras, tentando livrar-se da terra molhada e escorregadia, traiçoeira debaixo dos sapatos do outro, ameaçado constantemente de queda: - ande lá! - Dizia aquele, inconsequente nos melhores anos de juventude onde falta o juízo necessário do perigo - você está muito lerdo! - e continuava meio impaciente com a demora: - calma! Você leva vantagem porque fez isso antes. Ademais, eu não estava preparado! - Retrucou o outro.
   A idéia surgiu em uma mesa de restaurante, quando ao longe apontava-se o morro. Em menos de uma hora estavam no sopé. O esforço da caminhada foi compensado com montanhas, pôr do sol e brisa marinha; com metrópole incansável e luzes despontando em suas habitações, estendendo braços por todos os lados. Contudo, ao modo de Dante atravessando o Limbo, os dois rapazes foram tomados de angústia desabrida, sopitando a felicidade de ditosa paisagem, quando um deles - justamente o que conhecia a trilha - enganou-se, conduzindo ambos a uma via errada. Perderam-se; e só se deram por isso tardiamente.
   Algo proposital e misterioso havia na mata que se fechava enquanto os pés confusos avançavam; alguma presença invisível, algum observador oculto. À angústia avizinhava-se o medo e, no torvelinho de pensamentos, embrenhavam-se mais no intestino da floresta, que queria digerir os invasores depois de havê-los mastigado - pedras e galhos assemelhavam-se a dentes afiados que os feriam a cada tropeço. O mais experimentado não desejava demonstrar sua fraqueza. A verdade é que mal podia conter-se devido ao nervosismo que dominava seus membros. Sentia frio e esforçava-se por não deixar tremer seu maxilar. Frebicitante, o coração pulava. O que vinha logo atrás tinha perdido um tanto a noção da realidade, quase em um sonho ruim, numa reação orgânica imediata que o anestesiara, alternando excitação e pavor. Inopinadamente, vozes vieram da direção que seguiam: primeiro como sussurros, aumentando assim até transparecer em bulha similar a uma altercação. Hesitaram... Dois estampidos simultâneos ressoaram... Correram sem atinar para a situação; esbarraram-se, caíram e depararam-se, ao fim, com uma cena terrível: estirados na clareira, dois corpos perfurados na altura dos pulmões, de cujos orifícios saía sangue em pequenas bolhas - os dois corpos tinham os rostos exatos dos rapazes perdidos. Dias depois, acharam ambos, ainda no mesmo local, aturdidos. Mal conseguiam entender o que viram. Em laivos de lucidez, somente a breve certeza do que lhes teria acontecido caso ignorassem o aviso recebido no instante do choque: ''saiam e não voltem!''