terça-feira, 31 de maio de 2011

Dostoiévski e o Muro

Dostoiévski é o último convidado a chegar com duas citações de Notas do Subterrâneo.
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Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821-1881)

'' 'Perdão! - dir-se-á - não cabe protestar: dois e dois são quatro. A Natureza não vos pede licença; nada tem a ver com vossos desejos, nem lhe interessa que vos agradem ou não suas leis. Sois obrigado a aceitá-la tal como é, e, consequentemente, todas as suas decorrências. Um muro, evidentemente, é um muro... etc. etc.'' Mas, meu Deus! Que me importam as leis da Natureza e a aritmética se, por esta ou aquela razão, eu detesto essas leis, detesto o fato de que dois e dois são quatro? Está claro que não poderia derrubar o muro com a minha testa, se minhas forças não bastassem; mas não aceito humilhar-me diante do obstáculo só por ser ele um muro de pedra e não ter eu forças para derrubá-lo.''

''Repito, enfaticamente repito: todas as pessoas diretas, todos os homens ativos são ativos porque simplesmente obtusos e limitados. Como explicá-lo? Da seguinte maneira: em consequência de sua limitação, eles tomam por primárias as causas secundárias, imediatas, e assim se convencem, mais depressa e mais facilmente do que as outras pessoas, de encontraram um fundamento inabalável para sua atividade. Então se tranquilizam, e isto é que importa. Para começar a agir, com efeito, é preciso antes de mais nada estar perfeitamente tranquilo, sem nenhum vestígio de dúvida.''

   Creio que ambas as passagens possam surtir em amplo debate. Elas me fazem lembrar um conto de Edgar Allan Poe, onde se diz que Deus é o único ser de felicidade plena por conhecer a causa de todas as coisas. A nós cabe uma dúvida sempiterna: qual o sentido da vida? Por que almejar, tentar conquistar, cair e levantar se a história de cada um termina em morte? Se não há final onde tudo se resolva magicamente? Os homens de ação, como bem diz Dostoiévski, com o perdão da redundância, agem; não param para pensar na razão - apenas agem. Ou então se paralizariam diante de perguntas que jamais poderão ser respondidas: qual o próximo passo? Somente incertezas adiante...
   A penúria, a privação de faculdades motoras, enfermidades, insucessos de qualquer ordem sobrevêm mesmo àqueles que se julgam afortunados - se assim pode nomear-se, a sorte muda ao sabor das circunstâncias. Entretanto, não é de sorte que o autor fala; há algo ainda mais incompreensível, não obstante sua aceitação, de característica irremediável, que são as leis da Natureza. Ora, ao deparar-se com ela - a exemplo de um muro - o homem de ação reconhece sua incapacidade de transpor-lhe. O homem de consciência, porém, digladia com esta incapacidade. Por isso Dostoiévski afirma ser a consciência uma doença: ela imobiliza ante a dúvida do porvir. Ou ainda: não se conforma com os ditames da própria vida.
   Tomar o efeito pela causa é, por mais banal que seja a analogia, outorgar uma medida, desejada como ideal pelo bem comum, sem atacar as raízes do provável vício social. É querer remediar situações, que exigiriam a devida anuência, com palavras que em nada mudarão o estado de quem atravessa uma dificuldade, de quem perdeu algo ou alguém, de quem sofre. Ter consciência de que o futuro é incerto, da falência e fragilidade do corpo, da finitude da vida - da possibilidade de sermos seres pífios e quixotescos abandonados no Universo; é decerto uma doença!

domingo, 29 de maio de 2011

Machado e as Batatas

Machado chegou trazendo as Batatas!

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Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908)

''Supõe tu  um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma tribo extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, as aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas.''

   Segundo a Bíblia, o homem foi criado a imagem e semelhança de Deus. A menos que Ele também esteja submetido à fragilidade e limitação da matéria, o homem jamais teve uma origem divina. Ao contrário, sua transformação em ser racional foi um 'acidente' na escala evolutiva. Mesmo que seja capaz de rir, diferenciar-se de seu próximo, discernir, raciocinar e antever a morte, o ser humano não é nada além de um animal. Há aqueles, entretanto, que enaltecem a capacidade de raciocinar, em detrimento de teorias criacionistas, como se o primado da razão lhe desse um poder maior sobre a Natureza - o topo da cadeia alimentar. Talvez seja isto verdade; não obstante, a condição animal não desapareceu.
   Pode-se partir de observações simples que considerem as necessidades fisiológicas e de reprodução que exigem um esforço maior do organismo; e ir mais adiante até a impossibilidade de superar um dado universal: a violência. No entanto, a civilização, filósofa e científica, quer suprimir esta condição a todo custo. Eterno paradoxo! Aqui uma pequena tribo lutando por sua sobrevivência; ali uma nação querendo submeter a outra - e por que, eu pergunto, por que se, depois de séculos perseguindo o que é bom e o que é justo, os seres parecem não ter aprendido nada? Ou será que tantos pontos de vista nunca lograrão resolver nosso dilema, porquanto atrás de cada capa, espada, coroa ou cetro existe uma massa de carne perecível que nos torna iguais neste aspecto?
   As prerrogativas da civilização compreendem o dever de preservação da Natureza; com o devido distanciamento, contudo. Sopeamos os gêneros e prolongamos a vida; desejamos a paz e a igualdade; vestimos roupas e comemos alimentos congelados - porém, e se nós nos depararmos mais uma vez com o campo de batatas? Faremos guerra ou morreremos de inanição?  

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Proust e Dionísio

Eis que surge o Proust também, No Caminho de Swann!
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Marcel Proust (1871-1922)

''Porém, por mais que eu ficasse respirando diante dos espinheiros-alvares, mostrando a meu pensamento que não sabia o que fazer com ele, a perder e a reencontrar, seu aroma fixo e invisível, unindo-me ao ritmo que as suas flores lançavam aqui e ali com uma alegria juvenil e a intervalos imprevistos como certos intervalos musicais, eles ofertavam-me indefinidamente o mesmo charme com uma profusão inesgotável, mas sem me deixar todavia aprofundá-lo mais, como as melodias que tocamos cem vezes seguidas sem escavar mais a fundo o seu segredo.''

  Este pequeno trecho me fez recordar a leitura recente de Nietzsche por um simples detalhe: a obra de Proust, que eu arriscaria chamar de Impressionista, pois que me faz visualizar cada quadro pintado em profusão de cores, a imaginar como seria a Combray de sua época; em breve passagem, evidencia sua união com a imagem vislumbrada, em torvelinho de sentimentos e inspirações que lhe emprestava a Natureza; ao modo de um homem dionisíaco - nas palavras do filósofo: ''Agora, graças ao evangelho da harmonia universal, cada qual se sente não só unificado, conciliado, fundido com seu próximo, mas um só, como se o véu de Maia tivesse sido rasgado e, reduzido a tiras, esvoaçasse ante ao misterioso Uno-primordial.''
   Tal é a prerrogativa da arte: tornar-se um com o objeto; experimentá-lo, vivenciá-lo, incorporá-lo de maneira a representar, mesmo que numa quase totalidade, até que ponto ele toca. Proust, rememorando sua infância, compõe uma obra sinestésica, que empresta ao leitor os odores e os sabores de cores variadas; permitindo que o olhar retorne para sua própria vida, mudando de perspectiva e abrindo os sentidos para ampla percepção. Ainda que o intento do artista não seja este, mas criticar, despertar, criar novos mundos, enternecer; ele deve partir de si, do objeto que lhe é familiar; deve se revelar, colocar suas questões, seu pensamento, se fundir ao 'misterioso Uno-primordial' de sua arte. Escrever livros, por exemplo, acerca de temas alheios, termina em páginas retóricas e sem fundamento.
   Neste tocante, vemos aí pessoas que se intitulam artistas aos borbotões. Confundem o termo com celebridade. Ou mais: há aqueles que submetem a sua produção ao jugo do mercado e a tudo fazem por encomenda - ou ao gosto do grande público. Devido a isso, vemos brotar cantores de uma música só, escritores e seus 'best-sellers', modelos que viram atores, todos para serem consumidos em dado tempo, explorados pela mídia e descartados. Muitos ganham seu quinhão; alguns logram a fama e a arte vai enfeitar prateleiras, às quais recorrem os chamados intelectuais, que pagam para afetar qualquer tipo de cultura picaresca de almanaque e não passarem por ignorantes.
   Também existe uma outra classe de 'artista' que se julga muito talentosa. São aqueles que escrevem poesias sem rima e critério; são pintores de quadros abstratos; são dançarinos contemporâneos; são esses novos cantores que só valem pela melodia de suas canções, quando a letra é um fracasso. Ora, os meios de comunicação em massa transformaram estas categorias na ponta de lança, na vanguarda, em franca contradição com as celebridades de ocasião que tentam promover - no fundo, são tudo uma coisa só: pro-du-to. E, que fique claro, produto a ser consumido, pois não vale investir naquilo que não dá retorno financeiro! Fazer rabiscos em uma tela; rolar no chão e sacudir os braços; combinar porta com amor e contar histórias de bruxinhos até uma criança faz melhor!
    A arte tem a função de conduzir, primeiramente o que a compõe, depois o expectador, à comunhão com aquele Uno-primordial; ela deve se fazer enxergar no cotidiano; deve participar, não obstante a mensagem que traga, da vida de cada um.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Poe e a Esperança

Finalmente, Poe chegou para a festa!
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Edgar Allan Poe (1809-1849)

O Dia Mais Feliz

I
''O dia mais feliz, a hora mais doce,
conheceu-os a minha alma desolada.
De orgulho e poderio, a mais ousada
esperança (bem sinto) consumou-se.
II
De poderio? Assim pensei! Mas, ai,
toda esperança é já desvanecida!
Visões do florescer de minha vida,
pobres visões, mortas visões passai!
III
E tu, orgulho, que tenho ainda contigo?
Teu veneno herde uma outra fronte incalma
onde, sutil, se instile esse inimigo.
Que possa ao menos descansar minha alma.
IV
O dia mais feliz, a hora mais doce
que meus olhos já viram ou verão,
de orgulho e poderio a aspiração
mais luminosa, tudo (eu sei) finou-se.
V
Mas se a esperança fosse dada, ainda,
de orgulho e poderio, com a mesma fria
dor que outrora senti, não quereria
nunca mais reviver essa hora linda.
VI
Pois negro era o feitiço de sua asa
espalmada, a esvoaçar, onde caía
potente essência destruidora, em brasa,
por sobre a alma que bem a conhecia.''

   O mito da caixa de Pandora, conhecida mais ou menos de todos, diz-nos que, após cada mazela, salvar-nos-ia a Esperança, único bem que dá sentido à vida dos seres humanos. Uma vida que, mesmo condicionada aos ditames do destino, trágico e desabrido, oferece uma resolução que traz alívio; a certeza de que nem tudo está perdido, de que vale a pena viver. Porém, a sorte que ora nos cabe pode ser acompanhada de algum revés. Ou melhor, sempre é acompanhada de algum revés!
   Esperança, Esperança, já diz seu nome que é consolo de quem espera; voa como pássaro por sobre nós e traz, escondido entre as penas, o 'feitiço de sua asa espalmada'. Antes não ter o seu flerte, dar cada passo sem colocar-lhe o peso da expectativa; a ânsia da volta; a espera sem fim. Pois cada minuto é uma eternidade para quem espera - ainda mais quando nunca chega!
   Esperança estava na nova casa erguida pelo homem que, vendo-a destruída pela chuva, desejou ter sido levado junto com as águas. Esperança estava em um mísero frango assado, dividido por mendigos, quando uma pedra se soltou do barranco e esmagou um deles. Nunca se pode ter certeza da chuva que cairá ou da pedra que rolará - vem a sorte e leva embora todas as Esperanças. Então cabe a pergunta: é assim algo tão salutar, que nos move e adianta, que dá sentido a tudo o que fazemos, não obstante a constante ameaça de a tudo perder nos dados ou na roleta? Não alçamos maior desgosto a não ver nada correspondido, ao depositarmos confianças, porquanto o desejável é dar sem pensar no retorno? E nós poderíamos nos livrar desta tal Esperança? Quem sabe tudo não se resuma nisso: aproveitar da casa ou do frango enquanto eles não são tirados de nós?


sexta-feira, 13 de maio de 2011

Tchekhov e o Trabalho

E lá vem Tchekhov com parte de seu conto A Casa de Mezanino.
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Anton Pavlovich Tchekhov (1860-1904)

''-O importante não é que Anna haja morrido do parto, mas sim que todas essas Annas, Mavras e Pielaguiêias vergam a coluna de sol a sol, adoecem por causa do trabalho pesado, a vida inteira temem pelos filhos famintos e enfermos, a vida inteira temem a morte e as doenças, a vida inteira tratam-se, cedo definham, cedo envelhecem e morrem em meio à imundície e ao fedor; os filhos, crescendo um pouco, entram na mesma dança; assim se passam centenas de anos, bilhões de pessoas vivem pior que os bichos, e tudo apenas por um pedaço de pão, presas de um medo permanente. Todo o horror da situação dessas pessoas está em que não têm tempo para pensar nas coisas da alma nem para se lembrar de seus semelhantes; a fome, o frio, o medo animal e montoeira de trabalho, tal qual aludes, obstruíram-lhes todos os caminhos de acesso à atividade intelectual, precisamente aquilo que distingue o homem dos outros animais e constitui a única coisa pela qual vale a pena viver. Vós socorreis essas pessoas com hospitais e escolas, mas com isso não as libertais das peias; vós as tornais ainda mais escravas, pois, introduzindo novos preconceitos, aumentais o número de suas necessidades, para não dizer já que elas terão de pagar pelos emplastros e livros ao ziêmstvo, ou seja, vergar a coluna ainda mais.''  

   O pensamento ocidental, guiado pela filosofia de segmentos do Cristianismo, dignifica o homem através do trabalho. As questões que lhe envolvem trazem à tona dois momentos da História, que ora diviram o mesmo período, a que muitos aludem sem entender: a Escravidão Moderna e a Revolução Industrial. Ambos processos complexos, com diversos aspectos, e cuja compreensão demanda visualização específica de cada caso. Não cabendo aqui uma análise mais profunda, partamos de seus princípios mais amplos, o que talvez rememorem as consciências que lhes têm reconhecimento, ainda que rarefeitos: a Escravidão Moderna caracterizou-se pelo trabalho forçado, onde seu agente, privado de direitos, tratado como propriedade, estava perpetuamente sob ameaça de violência. A Revolução Industrial, por sua vez, modificou as relações de trabalho, condicionando, a períodos longos de serviço, adultos e crianças muito mal remunerados. Está claro que, posteriormente, houve transformações profundas em ambos os quadros, muito embora haja permanências até a atualidade. Há aí, portanto, uma contradição entre a dignidade apregoada e o próprio trabalho: será que é mesmo algo dignificante?
   Trabalho, ao menos no Brasil, é como salvo-conduto, quase uma identidade, herança provável do governo de Getúlio Vargas, quando a carteira de trabalho passou a valer como distintivo - existia uma lei contra a vadiagem que mandava prender quem estivesse 'à toa' e não a possuísse. Pois bem, sinônimo de honestidade hoje é dizer-se trabalhador; algo, aliás, usado se alguém quer se livrar da acusação de um crime, por exemplo. É um engano; trabalhadores podem ser desonestos e continuar trabalhadores. O que ora se pretende discutir, contudo, é a necessidade de se trabalhar. Trabalhamos porque precisamos; precisamos comer, quitar os compromissos pecuniários, e outros tantos objetivos. Mas, e se não precisássemos? Será que as pessoas acordariam cedo, tomariam a condução lotada, se submeteriam a um patrão e a ganhos ínfimos, perderiam tempo de vida realizando coisas que podem não ter validade alguma?
   Essa foi a via que a civilização optou: nós abrimos esse caminho e construímos uma estrada por ele. Nada mais trágico. É bonito dizer que se está 'enrolado', que não tem 'tempo', que está 'atolado' - se as pessoas reparassem no quão melancólico e triste é repetir isso. Afinal, o tempo que elas dispõem ao trabalho as rouba de todos os demais compromissos com a vida; as rouba de perseguir um ideal mais elevado - o que o texto supracitado chama de atividade intelectual. Mais: não as faz parar e questionar a que ou a quem aquele trabalho serve; em que lugar ele coloca; o que ele proporciona - se ele foi uma escolha ou imposição. Trabalhar não é digno, mas saber por que se trabalha e que bons resultados ele pode trazer; se ele degrada ou embota; se ele exige um conhecimento aplicado ou se ele permite ampliá-lo.
   Trabalho é uma necessidade, reitero; muitos estão privados dele. E como seria bom se pudéssemos dedicar boa parte do dia a fazer o que nos dá gosto, prazer. Tchekhov prossegue dizendo: ''Se todos nós, citadinos e camponeses, todos sem exceção, concordássemos em dividir o trabalho que a humanidade gasta para satisfazer as suas necessidades físicas, então a cada um caberiam duas ou três horas por dia, não mais.'' Uma utopia, talvez,  que, provavelmente, nos faria receber em minutos de existência.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Goethe e a Cruz

E temos mais um convidado: Goethe trazendo um trecho de Os Sofrimentos do Jovem Werther.

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Johann Wolfgang Von Goethe (1749-1832)

''Faz parte do destino humano cada um de nós carregar a sua cruz  e beber o fel de seu cálice até a última gota. Se mesmo o Filho de Deus considerou o cálice demasiadamente amargo para Seus lábios humanos, por que devo fingir, considerando-o agradável? E por que deveria envergonhar-me, no terrível momento em que todo meu ser oscila entre a vida e a morte, quando o passado ressurge como um relâmpago alumiando o abismo sombrio do futuro, e tudo desmorona em torno de mim, e o mundo inteiro parece se extinguir? Não é esta a voz de uma criatura angustiada, já sem forças, a quem uma atração irresistível arrasta para o precipício e, em um último esforço, grita: 'Meu Deus, meu Deus, por que me abandonou?' Deveria me envergonhar dessas palavras, se Ele próprio não receou em pronunciá-las, Ele, que reina sobre os céus?''

   Atualmente, talvez pela moda ou autopreservação, as pessoas têm comercializado as receitas de Felicidade ainda mais do que nunca. É forçoso observar que o gênero humano apresenta aspectos muito cruéis, algo infinitamente explorado pelos meios de comunicação, o que faz com que se busque um caminho que fabrique sonhos, que permita acreditar que a realidade pode ser diferente. Basta um olhar sobre a História, contudo, para perceber que esta mesma realidade, não obstante os laivos de esperança, que porventura ofereça uma época, sempre foi marcada por aquela referida crueldade: seja em guerras, perseguições, genocídios, intrigas, assassinatos, etc. É como se nós não pudéssemos nos libertar de características intrínsecas que lembram a todo momento que somos animais. E quando não parte da ação dos homens, é efeito da própria vida: misteriosa, incompreensível e, para muitos, injusta.
   A sociedade tenta afastar a infelicidade, a dor, a fatalidade e a morte. Mesmo que uma leva experimente a solidão e o vazio; que se veja vítima irremediável de doenças ou perdas; que deseje algo impossível; que se depare com a fragilidade do corpo diante do fim; há a necessidade de erguer painéis fantásticos, remendando a existência com imagens de alegria, de igualdade, de amor. O mal deve ser extirpado a qualquer custo; escondido, encarcerado, longe das vistas, em uma medida desesperada de cobrir o espelho e seu reflexo horrível. O que prevalece são as cândidas sensações que nos trazem os livros de mensagens boas, os filmes com final feliz, as terapias, a religião e tantos outros veículos que, assim unidos, vendem a Felicidade. Nada mais falso! E com isso, ela, a sociedade, adoece. Afinal, nem todos logram o destino desejado. Muitos são detidos no caminho e, tardiamente, descobrem que, ao contrário do que dizem, não temos compromisso algum com a Felicidade.
   Então, por que desprezar aqueles que verdadeiramente sofrem? Aqueles que não podem se superar? Aqueles que não podem se reerguer, que não vêem vantagem na miséria, no abandono, na agressão involuntária contra seu corpo e sua alma? Aqueles que jamais terão suas vontades realizadas? Pois há coisas que, nem o Estado e nem Deus, são capazes de remediar. ''Meu Deus, meu Deus, por que me abandonou?'' Por que somos tão ínfimos e tão suscetíveis?  Por que permanecemos nadando contra esta maré que rouba as nossas forças? Não seria mais fácil reconhecer a nossa incapacidade? Que não somos divinos, porém fracos? Apenas recordamos da ressurreição, todavia esquecemos da cruz!

terça-feira, 10 de maio de 2011

Schopenhauer e os Demagogos

   O segundo a chegar para a comemoração é Schopenhauer, com o trecho de A Arte de Escrever, retirado de seu livro Parerga e Paralipomena.
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Arthur Schopenhauer (1788-1860)

''Quando observamos a quantidade e a variedade dos estabelecimentos de ensino e de aprendizado, assim como o grande número de alunos e professores, é possível acreditar que a espécie humana dá muita importância à instrução e à verdade. Entretanto, nesse caso, as aparências também enganam. Os professores ensinam para ganhar dinheiro e não se esforçam pela sabedoria, mas pelo crédito que ganham dando a impressão de possuí-la. E os alunos não aprendem para ganhar conhecimento e se instruir, mas para poder tagarelar e para ganhar ares de importantes. A cada trinta anos, desponta no mundo uma nova geração, pessoas que não sabem nada e agora devoram os resultados do saber humano acumulado durante milênios, de modo sumário e apressado, depois querem ser mais espertas do que todo o passado.''

   Esse é o quadro que percebemos nas Universidades atualmente: alunos e professores pretensamente engajados na construção do saber. Lêem livros, debatem, fazem notas de rodapé, citam autores e a todos, diante da pompa do conhecimento, impressionam e angariam o respeito dos incautos. Porém, se olharmos bem de perto, com uma lupa que aumente sua proporção, veremos que não há efetivamente a construção do saber, mas simples imitação. O esquema, talvez, seja um tanto complexo para quem não teve oportunidade de observar pontualmente, porquanto há muitos aspectos que perfazem o dito quadro. O que se pode dizer é que se a Universidade fosse a ágora grega, haveria a predominância de demagogos.
   Evidentemente, contudo, que não se pode afirmar peremptoriamente que cada Universidade apresente tais características. Mas as temos visto muitas assim. Os professores adotam uma postura absoluta e distante, transmitem o conteúdo das aulas, recomendam textos e, de tal forma se embrenham naquela ciência, que só sabem falar dela. Não adianta que lhes peçam irem além: o conteúdo é limitado. E este mesmo conteúdo vai estampar capas de livros que enfeitam prateleiras, as quais poucos visitam - apenas os iniciados nesta arte e linguagem complexas e herméticas. Viviam gritando contra o sistema e o criticam quando podem, mas são incapazes de desfazê-lo. Ao contrário, se imiscuem e perpetuam aquilo que ora condenavam - se fazem algum trabalho que pareça mais próximo da sociedade, é pura falsidade; na realidade, são seres egoístas qua jamais abririam mão de seu quinhão. Morrerão em suas cátedras, jurando que sua ciência é maior do que as demais.
   No que tange aos alunos, a situação não é muito diferente. Adquirem o conhecimento sem questioná-lo, ou, se questionam, é para atacar o conhecimento do outro. Querem afetar a consciência e presam por valores torpes que divide a turma, a qual acharam por bem juntar-se, para não parecerem retrógrados e mesmo ignorantes. E são extremamente contraditórios: a igualdade e a liberdade se justificam no caso do próximo, quando pensam ser correto julgar; nunca no caso deles próprios, afinal, qualquer coisa que lhes embote a opinião é repressão desavisada. O falar pode ser rebuscado conforme a ocasião, podem tabém usar de expressões modernas e há quem se valha dos talentos da oratória para lograr alguma consideração entre os seus. Porém, nenhum deles parou para se perguntar a razão daquilo tudo, nem mesmo pensou na possibilidade de estar errado. No fundo, o pensamento que tanto divulgam não lhes é original; é uma cópia, uma imensa colcha de retalhos de frases de efeito tiradas de inúmeros filósofos. Culpa do ensino que obriga a tudo provar com referências - nada do que é seu pode servir, a menos que seja corroborado por algum grande pensador. Então, podemos concluir que não há produção, mas reprodução. E uma malta de fantoches que irá virar professora no futuro, mantendo o sistema como ele é. Ora, na Universidade também há padrões: seja no modo de se vestir ou na qualidade dos livros que se lê; o importante é não destoar. Claro que um aluno jamais dirá que segue padrões, pois o padrão é exatamente este!
   A Universidade é uma ilha; ela analisa a sociedade de longe; e se convém, faz seminários, colóquios, convenções para tentar saber o que há de errado extramuros. A ação, entretanto, passa longe de sua intenção. A Universidade é uma ilha, reitero; uma ilha de demagogos.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Victor Hugo e a Pólvora Desperdiçada

   Em Maio de 2011, o Mau Prosador faz um ano de existência. Para comemorar, durante o mês publicarei trechos de textos de autores consagrados, fazendo breves comentários em seguida. O primeiro a ser convidado para a pequena festa é o escritor francês Victor Hugo. Espero que apreciem.

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Victor-Marie Hugo (1802 - 1885)

''Calculou-se que, em salvas, cumprimentos reais e militares, trocas de disparos corteses, sinais de etiqueta, formalidades de cais e cidadelas, saudações ao nascer e ao pôr do sol, feitas diariamente por todas as fortalezas e navios de guerra, aberturas e fechamentos de portos, etc., etc. o mundo civilizado gastava com pólvora, por toda a terra, a cada vinte e quatro horas, cento e cinquenta mil tiros inúteis de canhão. A seis francos cada tiro, são novecentos mil francos por dia, trezentos milhões por ano, que se vão em fumaça. Mero detalhe. Enquanto isso, os pobres morrem de fome.''

   Esta pequena citação foi retirada do livro 'Os Miseráveis', obra monumental que se transforma em verdadeiro tratado durante sua leitura. O trecho é bem atual; não no que diz respeito aos tiros de canhão, mas aos gastos inúteis em um mundo onde milhares de pessoas vivem na miséria. Não é preciso ir muito longe, basta acompanhar o cotidiano das pessoas, suas vontades, suas ambições, seus valores, indissociáveis de um sistema desigual e controlador. O que dizer do consumo, por exemplo? Quase todos reconhecem as mazelas advindas do consumismo, não conseguindo libertar-se, contudo. Afirmam que o importante é o bem estar, é a saúde, e, contraditoriamente, adquirem bens de pouca serventia. Ou ainda: entram em prestações sob o risco de não poder pagar. Não há quem fique indiferente diante de uma grande soma de dinheiro - a questão é saber gastar. Entretanto, o mencionado sistema sobrevive disso, da Economia, tão festejada. E as mesmas pessoas tornam-se números e estatística em uma planilha. A política se preocupa mais com a indústria, o comércio, os faturamentos, os prejuízos e, se fala em serviços para a população, entram sempre em segundo lugar - acelerar o crescimento, esta é a chave da riqueza!
   O consumo está também, não obstante a camuflagem, nos padrões de beleza, na condenação da velhice, no novo estilo musical, na moda, no entretenimento e em tantos outros pontos onde as cifras de poucos chegam na casa dos milhões. E aí vale a questão: de que adianta tudo isto? Matar-se para ter o corpo perfeito, comprar os cremes mais caros que retardam a idade, ouvir a música em outra língua sem nem entender o que está sendo dito e aplaudir celebridades que recebem cachês altíssimos apenas por vestirem roupas de modo adequado, ou por serem belas, por protagonizarem escândalos. E com isso tudo vão os 'tiros de canhão' - supérfluos e dispendiosos!
   A pólvora desperdiçada é a alegoria desta sociedade de disparates absurdos, de polarizações, de extremos. Onde muitos tentam alcançar um objetivo, arrefecendo a competitividade e as teorias de sucesso e positividade, vinculadas ao termo de capacidade, da qual, relativamente, nem todos compartilham. E que valores elegemos? O do conhecimento aplicado, técnico e incompleto; do corpo belo; do trabalho sem escolha; do sucesso financeiro como o fim desejado; do respeito por uma profissão em detrimento de outra; de leis que somente oneram o Estado; e, sobretudo, da irreflexão - platéias e platéias consagram papéis canhestros de atores ruins, ainda que tenham dormido durante o ato.
   Os tiros são cada vez mais comuns e fazem mais barulho. Cada vez que desponta uma nova estrela, no céu da política ou da mídia, se vão mais tantos francos de pólvora. A cada nova negociação ou novo acordo assinado; a cada nova passarela e contrato; a cada novo filme, a cada novo sensacionalismo - tantas salvas de canhão e tantos gastos inúteis! O mundo civilizado talvez não devesse se orgulhar desta alcunha, posto que realmente não lhe faz juízo perante suas levas de miseráveis.