quarta-feira, 30 de junho de 2010

Intolerância às Avessas

   A sociedade brasileira enveredou por um caminho perigoso; um caminho, talvez, que traga a censura legitimada pela população que inventou de, novamente, eleger o Estado e seus Três Poderes como um Leviatã que realiza a Vingança em nome da Justiça. O senso comum não sabe discernir discriminação de preconceito, crendo serem palavras sinônimas, quando, em verdade, uma depende da outra sem necessariamente ter o mesmo significado. Está certo que uma palavra, de tanto ser repetida com um sentido, acaba por assumi-lo. Todavia, dizer-se livre de preconceitos é mentira! Todos têm preconceitos porque todos fazem pré-julgamentos, seja em situações simples do cotidiano, seja nas mais complexas que envolvem questões étnicas ou mesmo sexuais. Discriminação, apesar de partir de uma atitude preconceituosa, está associada à separação, afastamento, classificação. Quer dizer, é possível ter preconceitos, mas é inadmissível discriminar.
   Porém, considerando novamente o senso comum, interpreta-se qualquer crítica à uma postura ou modo de vida como preconceito sob a prerrogativa da liberdade de expressão. Não importam as vozes dissonantes, não importam as opiniões contrárias! A aceitação é obrigatória em nome da igualdade! E este tal discurso torna-se conveniente à medida que as pessoas passam a valer-se do preconceito como justificativa. Então, é neste momento que o aparelho público entra para punir aqueles que não concordam, aqueles que criticam - a liberdade de um é silenciada em detrimento da do outro. E cria-se uma intolerância às avessas.
   O preconceito jamais deve servir de bandeira e meio de esquivar-se da própria incapacidade. Não há quem não haja sofrido preconceitos, manifestos das mais variadas formas, pelos mais diversos motivos; e não há quem não tenha agido de maneira preconceituosa com alguém. Apesar de ser uma característica lamentável da espécie humana, nunca poderão arrancar da sociedade o juiz que dorme em cada um - isto é ilusão! Devemos combater, sim, a supressão dos direitos legítimos dos cidadãos, através de leis mais abrangentes, cuidando para que se não valham destes mesmos direitos passando por cima dos de seu próximo! Reconhecer as mazelas interiores, saber-se falho seria uma via interessante para melhorar o convívio social. Mas as leis, por vezes, concorrem para que certas máscaras de hipocrisia se sustenham, aumentando a leviandade dos que querem punição, condenação a qualquer preço, sem atentar para a lei em si que, supostamente defendendo o bem-estar social, pode discriminar com a anuência geral. Este é o grande monstro, o grande Leviatã que a sociedade está alimentando!
   Para concluir, antes que alguma mente irrefletida interprete erroneamente estas palavras, este texto não está atirando ao solo combates necessários à garantia de direitos. Ao contrário, observando aqueles que vulgarizam o termo, que o confundem e utilizam de forma egoísta e desmedida, é que o objetivo principal e real do mencionado combate não se perderá. Senão, a liberdade, a verdadeira liberdade vai mal...

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Era Só Um Cachorro!

   Passando um homem na rua, distraído com qualquer coisa, filosofia, cisma ou mesmo bobagem, foi atacado por um cachorro feroz que escapara de uma casa próxima. Sentiu a mandíbula tenaz fechar-se em seu braço direito e os afiados dentes espetarem-lhe a carne. Deu um berro de susto e de dor e quase foi ao chão. Malogradas as tentativas de fazê-lo afastar-se, conseguiu alcançar um pedaço de madeira firme e deu golpes no bicho até partir-lhe o crânio e cair com a boca ensanguentada. Mal se lobrigava a pele rasgada coberta pela massa vermelha, agora misturando-se o seu com o sangue do cachorro. Gemeu, mas ninguém acudiu-o. Ao contrário, ouviu-se apenas uma voz gritando:
-Polícia! Polícia! Alguém chame a polícia! - Uma mulher de meia-idade, dando mostras de nervosismo, sacudia-se para chamar a atenção de um guardinha do outro lado da rua: - polícia! Polícia! - O guardinha correu e, em lá chegando, perguntou o que acontecia: -seu policial, este homem cometeu um assassinato! - os olhos do pobre rapaz se arregalaram jungidos aos do guarda - este homem acaba de matar um cachorro, veja! Eis aí o flagrante!
-Mas minha senhora, ele me mordia, por pouco não arranca meu braço!
-Ora, ora, agora quer fazer-se de vítima? Pois eu vi muito bem que o senhor descia o lenho no infeliz e indefeso animal!
-Sim, porque ele me atacava! Precisava me defender!
-Senhor policial - disse a mulher voltando-se para o guarda - essa criatura que jaz aí morta não tinha compreensão, não entendia a gravidade da situação, mordeu por instinto ou porque foi provocado talvez; este senhor entendia e sabendo-se mais forte, abusou de seu poder, privando o animal da vida! Ele não poderia ter feito isso! Não tem esse direito! Prenda este assassino!
-Assasssino? E se esse cachorro houvesse pulado na minha garganta e perfurado a minha carótida? Eu poderia ter morrido!
-Mas essa é boa! Tentando se justificar com a legítima defesa! Deveria ter pedido ajuda e não tomado tal atitude, meu senhor! E o que dirá a família desse bicho, hein? Sabe-se lá se tinha uma fêmea, se tinha filhotes? E o dono? Vai ficar desconsolado! - A mulher consternava-se.
-Minha senhora - o guarda enfim falou - o que temos aqui não se trata de um homicídio e, afinal, era só um cachorro!
-Como é que é? Bicho também é gente, seu guarda! Bicho também é gente! É por isso que esse país não vai para frente: por causa da impunidade! Esse homem tinha que apodrecer na cadeia! - A mulher estava transtornada - quantos cãezinhos não morrem todo dia atropelados, abandonados, com fome, a mercê de doenças, do frio? Todo dia eu rezo e peço a Deus pelos bichinhos indigentes, dou comida àqueles que encontro pelo caminho e já levei até alguns para minha casa. Mas os homens nunca entendem o sentido da verdadeira caridade...
-Minha senhora, este homem está sangrando e precisa de cuidados... - disse o guarda.
-Pois que morra! Deus que me perdoe, mas será menos um bandido no mundo! - E, abaixando, tomou no colo o cadáver do cão, apertou-o contra o corpo e, choramingando, sussurrou: -oh, coitadinho, não se preocupe, eu vou te dar um enterro digno, acender uma velinha e mandar rezar uma missa para você, viu? E no dia de Finados, colocarei flores no seu túmulo... Coitadinho... - levantando assim, foi embora, falando baixinho como se o animal a pudesse ouvir.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Evidência

   Enquanto dirigia o Opala na direção da Zona Norte, o investigador Moraes era interrogado pelo Freitas, um de seus homens: -mas isso é o quê? - Moraes dava mostras de amofinação.
-Eu só quero saber mais detalhes sobre o caso - respondia o Freitas.
-E qual parte você não entendeu ainda?
-Bem, ela saiu do centro comercial acompanhada do namorado naquela noite...
-Ex-namorado, ex...
-Certo, ex-namorado. Se era ex, o que eles estavam fazendo juntos?
-Ele disse que queria conversar com ela para tentar reatar. Jurou arrependimento pelas grosserias e ameaças...
-Aí ela saiu no carro dele...
-No dela, eles saíram no carro dela. Eles se encontraram em um centro comercial, conversaram em uma lanchonete e depois foram até o estacionamento e entraram no carro dela...
-Entendi. E depois disso ela não foi mais vista?
-Não até que acharam o carro e o corpo no fundo de um rio a trinta quilômetros da cidade.
-Então, se ele fazia ameaças a ela, inconformado com a separação, deve ter fingido arrependimento como pretexto para matá-la.
-É o que todos dizem por ele ser o principal suspeito. As únicas filmagens analisadas foram as do centro comercial que os mostra na lanchonete e no estacionamento. Mas não conseguiram levantar outras provas além destas. Eles se encontraram na noite do crime e só!
-Há ligações feitas do celular dele para o dela?
-Há sim! Só conseguimos esta evidência com a apreensão do celular dele. O dela desapareceu. Nem os mergulhadores da polícia encontraram. Ele ligou antes, talvez para marcar o encontro.
-Mas há uma outra coisa bem estranha: como ele conseguiu convencê-la a ir àquele local, próximo ao rio, afastado da capital?
-Difícil de responder, e eu acredito que da parte dele jamais saberemos. E os fatos estranhos não param por aí: como foi que ele saiu de lá já que o carro dele estava na oficina como alegado? Naquele ponto não passa ônibus ou qualquer tipo de transporte. Ele teria que andar bastante para chegar em uma rodovia e aí sim tentar voltar - Moraes parecia estar perto de alguma nova evidência - em breve confirmarei minhas suspeitas.
-Suspeitas? Quais?
-Acalme-se. Bem, estamos chegando, olhe o endereço, é aqui, não é?
-É sim, é aquela casa rosa ali.
   O Opala parou em frente a uma casa térrea, de muro alto e portão de madeira. A rua residencial parecia tranquila. Ao longe se via os prédios da região central. Moraes tocou a campainha e um cachorro começou a latir. Após alguns minutos, uma bonita moça veio atender. Ela olhou para Moraes, homem corpulento, aparentando já ter passado dos quarenta; e para Freitas, baixo e franzino, mal chegado aos trinta - fez expressão de surpresa, seguida de desdém.
-Bom dia... Quer dizer, boa tarde porque já é mais de meio-dia! Eu sou o investigador Moraes e esse é o Freitas. Viemos aqui dar uma palavrinha com a senhora - disse enxugando a testa com um lenço.
-Ah, pois não. Pensei que fossem da imprensa. Aqueles abutres não deixam a gente em paz! Entrem por favor! - a moça, de cabelos negros e compridos, lábios finos, olhos grandes, magra e mediana, os conduziu ao interior - os senhores aceitam uma água, um café?
-Um cafezinho ia bem! - respondeu o Freitas.
-Antes, porém, queríamos fazer algumas perguntas sobre a morte de sua irmã - cortou Moraes - a senhora saberia me dizer o porquê dela atender ao chamado do ex-namorado para encontrá-la na lanchonete...
-Como o senhor sabe que ela era minha irmã? - Interrompeu assustada.
-Minha senhora, eu sou investigador. Ademais, seu rosto apareceu em vários jornais pelas entrevistas que deu...
-Ah sim, é verdade. O senhor deve entender, minha cabeça... Enfim. O ex-namorado da minha irmã era um homem violento. No início do namoro, ele parecia um cavalheiro, mas depois teve crises de ciúmes... Ele era grosseiro com ela... Chegou a bater em minha irmã. Foi por isso que ela quis terminar tudo... Mas ela ainda o amava. Acho que teve esperança que ele mudasse, sei lá! Eu disse a ela que não fosse encontrá-lo... Eu disse!
-A senhora sabia que os dois haviam voltado a se encontrar bem antes? Que eles haviam reatado, mas que ela escondeu esse fato da família?
-Como é?
-É isso mesmo. Foram encontradas ligações feitas do celular de sua irmã para o dele, além de mensagens que os dois trocaram poucos dias antes do assassinato.
-Impossível! Ela dizia que... Eles estavam separados bem uns três meses! - A moça pareceu aturdida - Desgraçado! Então ele a ludibriou para atrai-la e matá-la! Meu Deus!
-Eles estavam apaixonados. Ao menos era o que diziam as mensagens.
-Não é possível! Não é possível! - Repetia - já deveriam ter prendido esse homem! Ele é um demônio!
-Onde estão seus pais?
-Foram para a casa de uns parentes no interior do estado. Estão muito abalados! Lá, ao menos, ficam longe do assédio dos jornalistas...
-Foram de carro?
-Por que o senhor quer saber disso? O que isso tem a ver com o caso?
-Nada não, me perdoe. E o café?
-Ah sim, eu vou fazer... Já volto. Fiquem à vontade! - Os dois permaneceram sentados na sala. Dali a instantes, um toque no celular fez a moça ressurgir, meio afoita, para atendê-lo - ah, caiu! - disse decepcionada - o café está pronto! - Moraes e Freitas tomaram o café, agradeceram e saíram. Novamente no Opala, retomaram a conversa.
-Moraes, eu não entendi uma coisa: você não disse que o celular da vítima havia desaparecido? Como foi que você pôde afirmar que as mensagens provinham do celular dela?
-Freitas, todos os números foram investigados e eu descobri que muitas das ligações e mensagens provinham de um celular registrado no nome da vítima. Isso é óbvio! A última ligação foi feita minutos antes dos dois se encontrarem e uma mensagem foi gerada do celular dele após os dois terem se separado naquela noite...
-E?
-Ela respondeu à mensagem!
-Isso pode ter sido forjado facilmente. Ele pegou o celular e respondeu a própria mensagem.
-Não. A vítima recebeu uma ligação cinco minutos depois de um número de orelhão. Digo, cinco minutos após ter deixado o suspeito no local indicado, segundo seu depoimento.
-Ah é? E onde fica esse orelhão?
-Próximo de onde trabalha a irmã. A ligação durou três minutos. A vítima atendeu e conversou com a pessoa que ligou...
-Mas então você suspeita que a irmã tenha ligado e conversado com ela? A vítima pode muito bem ter atendido minutos antes de morrer sem saber que...
-Não, você não está entendendo. Quando o celular da irmã tocou, era eu quem ligava. E eu ligava para o número registrado como sendo o da vítima. Ou seja, a irmã ficou com o celular. Mas não era para o celular estar com a vítima no carro? Como foi que o celular parou nas mãos da irmã? A irmã acaso mergulhou, achou o celular e ficou com ele antes mesmo que a polícia o fizesse? Soma-se a isto o meu blefe bem-sucedido acerca do envolvimento velado de ambos, coisa esta a que ela reagiu de modo estranho, não?
-Então você acredita que...
-Veja: depois que a vítima deixou o suspeito, ela recebeu o telefonema da irmã, que trabalha em um local no caminho do rio onde o corpo foi achado. A casa dos tais parentes fica a uns quarenta quilômetros depois. Suponhamos que a irmã, sabendo do encontro dos dois, ligou do orelhão, para não deixar rastro, sugerindo ou combinando com a vítima que fossem até a casa dos parentes, cada uma em seu carro. Na altura do rio, a irmã pára no acostamento e acende o alerta indicando que está com problemas mecânicos. A vítima pára também. Suponhamos que a irmã arranje um meio de fazer a outra desacordar, talvez com éter, prende-a no cinto, fecha o carro e o empurra no rio para que ela se afogue... Foi o que de fato se constatou. Fica com o celular da vítima para não descobrirem a ligação feita por ela e foge em seu carro...
-Foi por isso que você perguntou do carro?
-Sim! Que melhor maneira de esconder uma prova do que a mandando para longe? Aqui, junto com os pais para a casa dos parentes.
-Nossa!
-Essa moça foi muito imprudente. Decerto não pensou que pudessem rastrear o número do orelhão através da operadora. Imaginando não ter deixado pistas, deixou-as mais do que pode imaginar. Ela jamais deveria ter ficado com o celular. O tal rapaz pode ser um homem grosseiro e violento, mas deliberadamente diz a verdade. Quem matou, segundo as minhas deduções, foi a irmã! As circunstâncias deram a ela o álibi perfeito... Quer dizer, não tão perfeito. Mas, jogando a culpa no suspeito mais evidente, esqueceriam-se de investigá-la, pois que era a própria irmã, muito próxima à vítima e, esperava-se, incapaz de cometer um assassinato de alguém da família!
-E por que ela mataria?
-Não sei, mas temo que, se não conseguirmos provas suficientes para incriminá-la, jamais venhamos a saber...

terça-feira, 22 de junho de 2010

Cálice de Sangue

   Em Paris, nos idos de 1794, o medo se materializava no cheiro de sangue coagulado do ar viciado pelas sucessivas mortes do período do Terror. Os rumos da nova República Francesa eram observados com acuidade pelos olhos temerosos dos habitantes, mergulhados na treva de incerteza do rumo que tomaria a política de perseguições do cidadão Robespierre. A diversão mórbida da leviandade alheia era fixar-se na lâmina momentos antes de despencar sobre o pescoço de algum condenado; o rufo dos tambores anunciava o espetáculo grotesco, o qual era assistido bem de perto pela Morte. Eugène estava presente quando a cabeça de Luís XVI foi erguida pelos cabelos para que toda a turba o contemplasse, pela última vez, e o rechaçasse como o Judas da Nação. Insuflado pela curiosidade e excitado pela vil escumalha, que urrava diante da laboriosa guilhotina, aparecia com ar debochado na taverna dizendo: -mais tantas decapitações! Arre! Creio que tinha até gente conhecida! - E dava uma risadinha de soslaio.
   É certo que Eugène tinha prazer; não possuía qualquer credo ou moral, nem freios que lhe calassem no fundo da consciência este tal prazer. Não que desejasse a morte de outrem. Seria incapaz de pegar em garrucha ou navalha para tirar uma vida. Porém, vindo a condenação pelas mãos de terceiros, achava realização sombria, advinda do canto mais escuro de seu ser. No início até cerrava as pálpebras para livrar-se da aterradora imagem da guilhotina. Passou a olhar de esguelha e depois a fitar todo o quadro - as execuções despertavam a pior face do gênero humano: o que chamaram posteriormente de sadismo. Acompanhava o resultado no mesmo interesse que os demais e estremecia no torvelinho de pranto, agonia, de grito e vibração - réquiem de Morte.
   Era um época de histeria, de desconfiança e de medo, sobretudo medo. Qualquer consideração acintosa do que se passava poderia valer uma subida ao patíbulo. Foi naquele ano de 1794, mais ou menos no Germinal, que um tal Lafitte veio arrumar contenda com Eugène. Parece, dizem, que eram amigos havia muitos anos e brigavam por causa de uma jovem donzela de nome Charlotte, peixeira do mercado, feiosa e coxa. Os dois beberrões de má fama saíram a socar-se, derrubando mesas e cadeiras e, uma vez separados pelos outros homens que ali estavam, Lafitte jurou vingança: - ainda hei de beber seu sangue, miserável! - vociferou empunhando um cálice de estanho - hei de beber neste cálice! - Eugène limitou-se a rir. Na manhã seguinte, Eugène, que dormia em um catre nos fundos de uma pensão sórdida, foi acordado pelo som alto de porta batendo: três soldados entraram pelo quarto e, ainda sob efeito do àlcool, Eugène foi levado ao cárcere. Acusaram-no de traição, porquanto afirmavam ouvirem-no bradar que torcia para que a Áustria derrotasse o exército revolucionário e acabasse com a infâmia de Robespierre. Não adiantaram os apelos e as negativas; julgaram-no sumariamente - seria executado!
   No dia em que subiu ao cadafalso, seus olhos embaciados divisaram o imenso anjo a sorrir-lhe um sorriso metálico e afiado; algumas lágrimas escaparam-lhe e, por fim rendido, deixou que a música sinistra dos tambores o elevassem a um estado de conformidade, arrastando-o à solução derradeira das dores do homem - morria e era inocente. Seus cabelos cortados deixavam o pescoço nu para receber o golpe final - escuridão e silêncio perpétuos. Entre a pilhéria da bulha e o cadáver decapitado, uma figura obscura estendeu a mão e com um cálice de estanho, recolheu algumas gotas do sangue, pingado do alto do estrado de madeira, sorvendo o líquido vermelho como se fora vinho.

domingo, 20 de junho de 2010

Onde Está Deus?

   Retornou após padecer três dias na enfermaria; seu andar encimesmado, curvado e trôpego estacou diante da porta do casebre: paredes sujas de terra, teto de telhas frágeis e uma pequena janela de onde saía um som patético de dor - gritos e choro de alguém em franco aturdimento. Colocou a mão e empurrou a tábua de madeira que ocultava o interior. A figura esquálida, de pele acinzentada e olhos tristes fez sua entrada muda; a força e tenacidade perdera havia três dias; transformara-se em fiapo roto e ensebado, arremedo de gente, frangalho disperso pela escarninha fatalidade. E ela, feito torrente, arrasta consigo tudo o que lhe vem pelo caminho: levou sua mão esquerda e o filho que a esposa ora pranteava.
   José era um cortador de cana que mal ganhava para sustentar os cinco filhos. Levantava antes do sol e, subindo na caçamba do caminhão, ia com seus companheiros à lavoura. Mantinham-se em silêncio pelo trajeto, absortos em pensamentos de esperança ou fracasso talvez; de provável resignação e abandono. Um sorriso furtivo escapava, uma melodia e uma lágrima - o trabalho não lhes trazia dignidade. Recebiam uma quantia irrisória pelos dias inteiros passados no labor árduo. Rendiam-se, porém, como condenados arremetidos contra a vaga do destino. Aquela terra fértil revolvia-se pelo bem de outrem; pela grandeza e prosperidade de indivíduos alheios, de bolsos ávidos e alegres. Os braços levantavam-se, empunhando no ar o facão, e desciam... Outra vez e mais outra, até que o expediente acabasse e lhes sobrasse tempo exíguo para respirar e viver. E no lar, desabavam feito a cana morta em seus leitos, dormindo um sono profundo e sem sonhos porque não lhes era permitido sonhar. A vida se repetia na manhã seguinte esperando que os sucessivos dias se consumissem enfim. Foi em uma dessas manhãs rutilantes que a lâmina decepou inopinadamente a mão de José: uma catadupa sanguinolenta jorrou; um urro de dor aguda e o desmaio. Levaram-no para um posto precário onde padeceu três dias.
   Ressuscitado, tornou à casa para recuperar-se do trauma; era já metade do homem que fora e a outra metade restante acabaria por desabar: o filho, de apenas dois anos, perecera picado por uma cobra. Maria, sua esposa, somente conseguia proferir, de voz esganada, a frase vinda do âmago do coração dilacerado: -Jesus morreu! Jesus Morreu! - e voltando-se para José, perguntou: -José, onde estava? Nosso filho, José, nosso filho morreu! - Ele limitou-se a mostrar-lhe o antebraço enfaixado pela ausência da mão. Os dois assim se abrançando, derramaram lágrimas que podiam encher um açude inteiro. Jesus foi enterrado no quintal árido e com ele a luz daquela casa. E, enquanto o corpinho magrelo sumia na terra embalado em um caixote, José repetia de si para si: -onde está Deus? Onde está Deus? Onde está Deus?
   José jamais obteve resposta. A vida continuava a despeito da mão, a despeito do filho, a despeito da carestia sempiterna de algo inexplicável dentro de si. Ao longe, para além do campo, havia uma felicidade indiferente; havia pessoas que riam e desejavam; havia abastança e regozijo; havia fé. Não obstante, para José, a vida continuava...

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Personalidade do Mês de Junho

Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908)

Escolhi Machado de Assis como personalidade de Junho justamente por ser o mês de seu aniversário - coincidentemente no mesmo dia que o meu - e, para homenageá-lo, transcreverei um pequeno trecho da obra 'Quincas Borba' ao qual seguirá breve comentário:

''O dono da sege estava no adro, e tinha fome, muita fome, porque era tarde, e almoçara cedo e pouco. Dali pôde fazer sinal ao cocheiro; este fustigou as mulas para ir buscar o patrão. A sege no meio do caminho achou um obstáculo e derribou-o; esse obstáculo era minha avó. O primeiro ato dessa série de atos foi um movimento de conservação: Humanitas tinha fome. Se em vez de minha avó, fosse um rato ou um cão, é certo que minha avó não morreria, mas o fato era o mesmo; Humanitas precisa comer. Se em vez de um rato ou de um cão, fosse um poeta, Byron ou Gonçalves Dias, diferia o caso no sentido de dar matéria a muitos necrológicos; mas o fundo subsistia. O Universo ainda não parou por lhe faltarem alguns poemas mortos em flor na cabeça de um varão ilustre ou obscuro; mas Humanitas (e isso importa, antes de tudo) Humanitas precisa comer.''¹

Humanitas é um princípio a cujo condicionamento todos o seres estão ligados irremediavelmente. É o reconhecimento tácito de que a Natureza é regida por leis, das quais pouco se lhe dá acharem-nas boas ou más - neste caso, juízo de valor são apenas nomenclaturas. Se o que está em risco é a conservação da vida, valem os meios que estão ao alcance da própria Natureza para mantê-la. Este pequeno trecho encerra uma profunda Filosofia a qual não se visita sem incorrer em superficialidades - está além da compreensão da moral e da ética. Antes de acordarmos a lei da civilização, existia a lei da sobrevivência. Os seres humanos caçaram, se reproduziram através da cópula, fizeram guerra... Desde o ínicio dos tempos até agora. E este invólucro carnal, tão suscetível a fraquezas, submetido a variações orgânicas e intempéries, tão frágil, não pode simplesmente ser subjugado a um pensamento que tenta disfarçar-lhe a situação primordial. Os seres humanos são animais antes de tudo! Está certo que a razão nos difere dos demais seres. Mas pensemos o quanto estamos a mercê desses 'instintos'. E o quanto esta mesma Natureza, materna e sóbria, pode-nos parecer cruel quando nos mostra que a sobrevida de um é a necessária morte de outro. O homem precisava comer. O obstáculo à sua necessidade era a avó. O obstáculo foi removido para que a vida continuasse. E aí interpretemos não como uma morte inócua; observemos que aí há uma transformação, um ciclo. A esta passagem se segue outra célebre que diz 'ao vencedor as batatas' que nada mais é do que o aprofundamento desta imagem tão bem colocada da lei de conservação.

¹Quincas Borba, capítulo VI. 








terça-feira, 15 de junho de 2010

A Maluca do Parque

   Fosse dia ou noite, inverno ou verão, ela estava lá. Com suas vestes cediças, a face marcada, os cabelos prateados e as bijouterias escurecidas. Vinha cantarolando cantigas de amor ou recitando poesias ao vento, as quais sabia de cor por terem se repetido exaustivamente em sua história de vida. Contudo, quem olhasse aquela figura maltrapilha, suja da fuligem, magra e curvada ao peso da idade, diria não passar de uma velha mendiga. O chapéu de palha rota e flores esmaecidas, o véu rasgado, o vestido amarelado e puído, os sapatos furados compunham o quadro melancólico e solitário daquela triste mulher - seus trajes eram seu único bem material. Não tinha família. Seus amigos eram as árvores, os pássaros e as violetas do parque. Para eles dedicava sonetos, a eles ninava, a eles contava toda sua amargura - uma lágrima furtiva sempre desabava de seus olhos.
   Não sabiam de onde vinha. Dormia em um banco, esmolava e sofria algum achincalhe da leviandade alheia que cismava em perturbar-lhe com ofensas e agressões. Em geral, as pessoas se afastavam dela por causa de seu odor e de sua suposta insanidade. Portanto ficou conhecida como a 'Maluca do Parque'. E para esquentar as noites frias e livrar-se das lembranças, bebia aguardente, deixando solto seu espírito que evolava em tantas fantasias, fazendo crer, por um instante, que a realidade era outra. Embriagada, vislumbrava o céu, via-se jovem novamente e encarava o rosto luminoso de seu finado amor. 
   Havia cinquenta anos que se encontraram pela primeira vez naquele banco. Era a época das mulheres que usavam finos toucados, chapéus elegantes e portavam leques; e de homens distintos que passeavam com suas damas, nas tardes de outono, ofertando-lhes rosas que iam pelo caminho. Foi naquele banco que suas mãos se entrelaçaram e os lábios se tocaram. Foi naquele banco que ele disse que a amava e a pediu em casamento - o mesmo banco que passara a ser sua casa. Viveram juntos a felicidade, a paixão e a quimera - um sentimento que enternece e vivifica. Ainda podia ouvir 'eu te amo' dito pela voz suave de seu amado, para quem sonhando respondia alto. 
   Chegando um dia, grave e circunspecto, arrebatado pelas vagas do destino cruel e indiferente, de olhos marejados, ele resolveu que seria aquele o último encontro: - querida, bem sabes que nem tudo depende de nossa vontade e que a ironia da vida nos surpreende, demonstrando a fragilidade dos homens. O nosso amor, para ser eterno, deve morrer. Apenas ficará sua bela recordação. Não esperemos que ele se desfaça em entreveros e discordâncias, em ciúmes e mentiras; não maculemos o sentimento puro que existe. O futuro do verdadeiro amor é a saudade e para não ter que vê-la nos braços de outrem, magoada e desgostosa, escolhi a morte. Guarde esses doces momentos feito tesouro e eu te virei buscar no derradeiro instante para aí sim realizar o amor, limpo da miséria humana - concluindo estas palavras, retirou um frasco do bolso e derramou seu conteúdo nas papilas. A garganta ardeu; o frasco, escorregando-lhe, espatifou; o mundo embassou e apagou por fim. Ela desesperou-se, pois não houve tempo sequer de impedir - seu espanto a imobilizou. Jamais pensara em perder assim o seu amado. 
   Acordou e, ignorando a beleza da manhã, de brisa fresca e cores que se confundiam para formar particular aquarela; correu as mãos pela madeira do banco e repetiu para si: ''hoje faz cinquenta anos''. A frase saía de sua boca mais frequentemente e mais alta - ''hoje faz cinquenta anos''. Andava, circunscrevia, socava levemente as têmporas e dizia: ''hoje faz cinquenta anos''.  Ao voltar-se na direção do lago, viu seu amado postado sobre as águas, sorrindo e abrindo os braços - o coração acelerou, teve um arroubo de juventude e esperança, seus olhos brilharam e, gargalhando, correu para alcançá-lo. Foi, então, envolvida pelo lago, sumindo nas águas turvas. Quando encontraram seu corpo, exibia um leve sorriso - seu espírito enfim serenara.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Beleza Perecível

   Sua mãe parecia adivinhar-lhe o destino quando o batizou: Adônis era modelo de beleza. Os olhos reluziam como duas safiras, daquelas que refletem o fundo dos oceanos; os cabelos, em leves ondas, se agitavam ao vento, caindo por sobre a face alva e de traços perfeitos; esguio, rijo, bem torneado, de dentes certos, tinha a graça e o charme que levava as mulheres à suspirarem - um deus! A expressão forte, as sobrancelhas arqueadas, a firmeza das feições, os gestos contundentes lhe deram ares de homem feito em tenra idade. Possuía algum espírito e personalidade; em verdade, a falta de opinião não maculava-lhe o conjunto. Era belo e nada mais.
   Enquanto crescia, notou a admiração alheia e assimilou os recorrentes comentários acerca de sua beleza. Assumiu, assim, uma postura dissimulada e hedonista, desejoso dos mais aguerridos elogios que o enaltecessem. Fora as paixonites da puberdade, Adônis não amou ninguém. Acima de tudo estava o prazer de atrair os olhares femininos - e masculinos - como meio de concretizar a imagem que construíra para si. Foi amado, derramou lágrimas, conquistou os mais severos corações e atirou ao esquecimento as esperanças dos amantes. Provou do pão e do vinho; comeu da carne; inebriou-se do próprio reflexo enquanto dominava algum  corpo frágil; cuspiu no prato. Desprezava o que era feio, torto, mal-ajambrado... Escarnecia voluptuosamente dos homens normais - ninguém jamais seria como ele!
   Certa feita, Adônis deparou-se com o anúncio de um escultor que procurava por rara beleza para compor uma obra de arte. Pensou em oferecer-se prontamente ao trabalho, acreditando ser o mais indicado. A perspectiva de ver seu corpo apreciado, através de uma composição artística, elevava seu ego. Escutaria, decerto, outras tantas vezes o que escutara por toda a vida: perfeição! Ele mesmo se converteria na obra e sua beleza se tornaria plena e imortal!
   Tocou a campainha e um velho veio atender. Adônis teve nojo da pele flácida desabada no rosto, dos olhos pusilânimes, da larga calva pintalgada, das mãos secas, da protuberância mole que lhe tapava o ventre e da gengiva encrustrada de parcos dentes acinzentados - a roupa encardida fedia. Encarou o velho por algum tempo até conseguir falar:
-O senhor é o escultor que pôs esse anúncio no...
-Sou eu sim! - Interrompeu e, antes que o rapaz completasse, prosseguiu: -vejo que você é mesmo o que procuro. Bonito... - dizendo isso, correu as tais mãos secas pela face de Adônis - perfeito! -  Esta palavra era tudo o que Adônis precisava ouvir e, repelindo o engulho que sentiu ao ser tocado pelo velho, adentrou o ateliê - um cubículo revirado e sujo - movido pela vaidade.
-Tire sua roupa, vamos começar já! - Adônis expôs sua nudez. Mostrar assim suas coxas grossas e seu tronco definido; seu tecido jovem e sem marcas ao pobre ser andrajoso e encarquilhado, estabelecia um ruidoso contraste, embriagando-o de poder.
-E como se chamará essa obra?
-Estes dois olhos aqui - disse apontando para as órbitas - já não vêem mais o mundo como antes; minhas vistas estão cansadas, vejo tudo distorcido, de cores mortas, sem vida. Por não poder mais ter o que tinha antes - abriu uma gaveta - por ter o mundo assim transformado, o feio tornou-se belo para mim - os dedos esqueléticos agarraram um cutelo - a beleza se esvai com o tempo, mas a feiúra não... A feiúra é eterna! E para atingir a eternidade, minha arte deve ser repugnante. Por isso chamá-la-ei 'Beleza Perecível' - dizendo isso, cravou a lâmina do cutelo na face de Adônis, desferindo sucessivos golpes na cabeça e em todo o resto, mutilando irremediavelmente sua beleza.

sábado, 12 de junho de 2010

A Múmia!

   Andar por aquela rua durante a noite era uma temeridade. Não havia ninguém e o perigo de assalto era grande. Todavia, ele andava mesmo assim. Gostava do silêncio e abandono da madrugada, do vazio e da penumbra, do frio e da imensa abóboda celeste serenada. Sua companhia eram seus passos e o barulho distante de carros no viaduto afastado. Os pensamentos ficavam mais altos, mais claros, mais livres. E a solidão lhe aprazia. Uma brisa agitou as folhas das árvores, formando sombras em toda a extensão do muro caiado. Atrás dele, acreditava, apenas um terreno baldio. Mas as histórias que lhe contaram sobre o local, horas antes, eram demasiado assustadoras.
   Na festa da repartição, depois de se desforrarem com a bebida e a comida, alguém começou a falar em assombrações. Cada um, então, contou um caso que conhecia de ouvir falar. O Alexandre, alterado pelo álcool, fez um comentário relativo a um incêndio:
-Ih, rapaz, você anda por ali, é? Se eu fosse você, não andava por ali, não! Atrás daquele muro tinha um circo que pegou fogo e matou muita gente! Dizem que até hoje ouvem gritos por lá, e um amigo viu o fantasma de um homem todo queimado! - outras pessoas, a seu turno, relataram o que sabiam, corroborando o que Alexandre dizia. Nunca se questionara acerca do tal muro e o que havia atrás dele. Sempre caminhou tranquilo por aquelas plagas e jamais vira ou ouvira qualquer coisa. Tudo pareceu uma lenda fantasiosa saída da boca de bêbados irrefletidos. E agora, ao recordar as palavras de seus colegas, sentiu um calafrio subir-lhe pelas vértebras. Poderia ser verdade? De fato houve um circo na cidade que pegou fogo, muitos anos antes, e a tragédia deixou um sem número de vítimas fatais. Contudo, ninguém mais se recordava e os nomes dos mortos foram esquecidos. Então fora ali, atrás daquele alto muro branco? Apressou-se. A parede terminava em um portão de ferro cinza  que, estranhamente, se encontrava aberto. Não conteve a curiosidade e olhou para dentro.
   O conhecimento é movido pela curiosidade e interesse, mesmo se tratando de assuntos frívolos, mesmo causando arrependimento depois. Há certas coisas que nunca devem ser mexidas, desenterradas, divisadas por olhos levianos e mentes frágeis - o homem as procura ainda assim. Sendo a morte o mote principal, são insuficientes os apelos da consciência pela vida; todos a querem conhecer, seja admirando-se com um cadáver estirado ou exumado, seja imaginando  o próprio enterro ou fazendo obscuros preparativos; a mente repele no momento de lucidez subsequente: precisamos viver! Ah, antes suas vistas não a alcançassem naquele instante, antes não fossem tão desejosas de encontrá-la, antes não procurassem respostas para o que não deve ser respondido! Os outros órgãos instavam, e suas vistas insistiam. O bodum podre, de ferida mal-curada e secreção chegou às suas narinas inopinadamente - cheiro de pele queimada. Teve ânsias e quase regurgitou a comida da festa. Tonto e meio cambaleante, escutou sons abafados e guturais como de alguém amordaçado que tentasse desesperadamente falar. A visão embassada girou e uma figura branca lhe apareceu adiante. Aos poucos foi ficando nítida e tomando formas definidas - o coração acelerou, prestes a subir pela garganta; os ossos tremeram feito estruturas de um prédio em ruínas... Fugiu. 
   Ninguém sabe dizer a razão de seu estado, de seu medo e desconfiança; ninguém pode afirmar ao certo a origem de seus males dos nervos e de sua profunda tristeza... Permanece em constante vigília e se enfim dorme, tem pesadelos... É quando se debate violentamente e grita: - a múmia! A múmia!

quinta-feira, 10 de junho de 2010

É Possível Morrer - parte II

   Voltando a si, nada pôde ver: seus olhos estavam cegos, apagados, imersos na escuridão. Uma pressão esmagava-lhe o esterno e algo invisível agrilhoava-lhe o pescoço - sufocava. Tentou gritar, sem conseguir articular palavra contudo; seus braços e pernas se debatiam, incapazes de retirar seu corpo da frigidez do chão. Parecia que alguém a estrangulava... Repentinamente, mergulhou na semiconsciência entorpecente, sopitando os movimentos gradualmente - entregava-se. Diminuto ponto apareceu, aumentando em seguida, clareando todos os cômodos como se a alvorada houvesse chegado. Seu espírito pairava dando-lhe onisciência, alargando sua visão, diluída no ar, liberta da matéria. Não entendia o significado daquilo: saíra do corpo? Morrera enfim? Nada podia sentir. O intenso clarão diminuiu, mostrando uma sala de janelas grandes, muitas estantes repletas de livros e a mesa de cedro. Uma luminária jogava seu brilho mortiço sobre um jornal que trazia, logo abaixo do nome, a data de Junho de 1947. Os detalhes lhe vinham sem que precisassem dizer, como se realmente conhecesse tudo - era a sala do diretor do hospício.  Um distinto senhor, sentado na poltrona de couro, fumava charuto e fazia anotações em pequeno caderno - ele não a via. A fumaça evolava languidamente. O relógio cortou o silêncio com o soar das onze horas no carrilhão. Um burburinho, transformado assim em bulha, fez-se em algum outro recinto. O senhor levantou-se apressadamente e correu. Daisy, conduzida involuntariamente, foi atrás. Passou pelos corredores e escada até o refeitório. Lá, um homem alto e louro era contido por outros três, vestidos de branco.
- O que está acontecendo aqui? - Perguntou o diretor.
- Doutor, John teve mais um de seus surtos e atacou Gonzales - respondeu um negro também vestido de branco, ajoelhado ao lado do enfermeiro ensanguentado - pegou a faca e cortou-lhe a carótida. Precisamos chamar um médico porque não temos...
- Não! Não vamos chamar ninguém! Não podemos atrair a atenção sobre esse fato! Esse homem tem que ser atendido aqui mesmo. Se a imprensa descobre, transforma em mais um escândalo e... - nesse ínterim, Gonzales expirou.
-Agora não adianta mais.
-Dêem um sedativo a este louco e o amarrem dentro da cela dele. Quanto ao corpo, enterrem no bosque. Não joguem no rio, ele não pode ser encontrado de maneira nenhuma! A família de Gonzales mora no México, ninguém nem vai dar pela falta dele. Qualquer coisa, inventamos uma desculpa... Dizemos que ele pediu as contas, que mudou de estado...
-Mas senhor...
-Enfermeiro Grant, limite-se a fazer o que lhe peço! Já não basta o alarde que alguns jornalistas de Boston fizeram com as denúncias de maus-tratos? Vamos ter que fechar as portas se souberem que um paciente degolou um enfermeiro aqui!
   Quando pronunciado o nome 'Grant', Daisy deteve-se na imagem do negro: mediano, aparentando uns trinta anos - Grant! - ela reconheceu imediatamente - era seu pai! Emocionou-se e copiosas lágrimas cairam de seus olhos etéreos. Finalmente percebeu que não estava completamente anestesiada. Outra informação assomava-lhe: John, o paciente, enlouquecera após a experiência de batalha durante a Segunda Grande Guerra e fora internado pela família no hospital de renome na região. Apesar de jovem, tinha profundos ataques, acreditando estar ainda nas trincheiras testemunhando os horrores da guerra.  Trancaram-no, naquela noite, em sua cela, vencido pelo sedativo e imobilizado por duras tiras de couro na cama. Inumaram Gonzales por determinação do diretor, embaixo de uma árvore e sem qualquer indício de que ali havia um cadáver. Daisy assistia o filme editado por sua mente em cenas que transcorriam os acontecimentos principais. O passado se abria a uma lembrança fragmentada que não possuía - mas quem a fazia ver? Seu pai? E por quê? Não havia respostas. Havia somente convulsões de dor psicológica e comiseração, misturadas a uma felicidade por ver novamente o pai, morto quando ela era criança.
   Mais uma vez foi levada à revelia a outros fatos, decorridos dias depois: durante o almoço, quinze pacientes do hospital estavam reunidos no refeitório, junto aos enfermeiros quando, escapando da vigília, John entrou na sala do diretor, em sua ausência, abriu um armário com portas de vidro e retirou a submetralhadora carregada - recordação da participação do diretor na Primeira Guerra - voltou ao refeitório e atirou a esmo. ''Morram, alemães malditos!'' - repetia pensando estar sendo mantido preso pelo exército do Eixo. Um a um tombava com as balas. O refeitório ficou lavado de sangue. Logo após, John suicidou-se. O ''massacre'' virou notícia em toda a Costa Leste. O hospício foi fechado e o sobrevivente Grant mudou-se para Louisiana, onde conheceu a mãe de Daisy.
   Sua cabeça latejava uma dor aguda e Daisy foi atraída de súbito de volta ao corpo. Despertou como um afogado salvo da maré assassina, arfando, sorvendo o ar em cada milímetro, liberta da compressão no peito e na garganta. Deu um salto, inimaginável em suas condições normais e fugiu dali - as teorias estavam certas: é possível energias bodosas impregnarem um lugar; é possível que almas percam-se de seu destino último - pensava enquanto corria - é possível morrer!

É Possível Morrer - parte I

   Penetrou a noite densa como quem recebesse um convite para fundir-se ao medo das almas. Os olhos ainda se habituavam à ausência de luz e logo seus ouvidos aguçaram-se na espera de um inimigo. O som das folhas secas e dos galhos se partindo, ficava cada vez mais alto, traindo-lhe, eventualmente, quando pensava estar sendo seguida. Sentia uma presença forte como se alguém a vigiasse. Caminhou por meia hora até soerguer-se a silhueta sinistra diante de si: o imenso casarão perdido na floresta de Scardale. Já o havia visto durante o dia; um prédio de dois pavimentos, em arquitetura georgiana, construído em 1911 para abrigar um hospício. A vegetação cobria os muros altos e a ferrugem carcomia o portão de acesso. A despeito de tantos anos fechada, a construção mantinha-se em bom estado. Tábuas tapavam-lhe as janelas - quatorze ao todo - e parte do telhado desabara; a madeira podre da porta de entrada permitia que se lograsse penetrar com facilidade o interior a quem assim desejasse. Daisy, conhecida sensitiva - não sem certa desconfiança dos moradores da cidade - nada via além da velha pilha de tijolos vermelhos. Contudo, o terrível peso da carga energética parecia comprimir-lhe as têmporas. A intuição a levara ali como um chamado de alguém que precisava lhe falar urgentemente. Seus pés não queriam mais obedecer... Tremendo, porém, prosseguiu.
   Daisy nascera na Louisiana e passava dos cinquenta. Sua pele negra mantinha os traços lisos de mulher jovial. A figura corpulenta, de membros fortes, socada, parecia caricata quando vestia imitações de peles, turbante e cordões de dentes pontiagudos. A indumentária era apenas um chamariz, algo para impressionar, elemento da apresentação anunciada pelo letreiro ''Daisy Sensitiva: tarô, quiromancia e vodu''. O ritual mesmo dispensava roupas, ela bem o sabia. Sofreu todo tipo de perseguições, capitaneadas pelo presbítero da igreja local, da qual muitos habitantes faziam parte. E, naquela noite, uma voz a despertara novamente para seus dons.
- Venha! - ouviu nitidamente. Não podia saber de quem era a voz e, muito embora acostumada com essas manifestações, aquela a amendrontava sobremaneira. Ao passar pelo pórtico de entrada, um vento gélido, como saído de uma garganta morta, devassou-lhe os ossos - treva total. Estacou, mas a voz convocava-lhe novamente: ''venha!'' Não obstante a madrugada nebulosa, um brilho estranho pairava sobre as nuvens e a iluminação tênue penetrava o saguão. Uma fumaça surgiu vagarosamente do chão, densificando-se, compondo uma massa espectral amorfa - ''venha!'' - O ente seguiu para o interior e desapareceu na escuridão. Daisy, aturdida, desmaiou.

Continua...

domingo, 6 de junho de 2010

Acidente

   Bernardo teve um pesadelo horrível: o ônibus saía da estrada, despencando na ribanceira. Os solavancos, os gritos e os corpos se misturando aos objetos projetados pareciam muito reais, e a sensação foi tal que acelerou os batimentos cardíacos, causando falta de ar e fazendo-o despertar. Custou até entender que estava fora de perigo, sentado no banco, na penumbra, ouvindo seu colega ressonando ao lado - todos dormiam. Respirou fundo. Para se certificar que tudo não passara mesmo de um simples pesadelo, puxou a cortina e limpou o vidro embaçado. A noite espessa mal deixava entrever as árvores do caminho. E como que o ônibus subisse a serra, fazendo uma curva que permitia ver o asfalto serpenteando morro abaixo, não encontrou os dois faróis do outro ônibus que deveria vir logo atrás. Convencido de que o que vira fora uma premonição, um aviso, desesperou-se. Levantou aturdido pela compreensão dos fatos e, em passos largos, foi aos primeiros bancos onde descansavam alguns professores responsáveis pela excursão:
-Professor! Professor! Acorda! - sacudia o pobre homem que abriu os olhos assustado - acho que o outro ônibus caiu na ribanceira!
-Como é?
-Eu sonhei e... Eu vi... Eu olhei e o ônibus não estava mais lá! - O professor fez com que se acalmasse e tentasse explicar direito. Toda aquela agitação acabou por acordar outros passageiros.
-Isso é absurdo! Foi só um sonho! Não seja irresponsável, uma brincadeira dessas pode causar grandes problemas! Vá dormir e me deixe dormir também!
-Não foi só um sonho, eu juro! Tente ligar para alguém do outro ônibus! Isso! Aí veremos se é verdade ou não! - Tamanha era a insistência que o professor, para se ver logo livre, discou um número em seu telefone... Ninguém atendia.
-Devem estar dormindo, claro, como nós estávamos até você vir fazer esse estardalhaço!
-Vamos voltar! - o rapaz estava realmente impressionado, parecia ter perdido a razão - vamos voltar e procurar o outro ônibus!
-Ficou louco? - Bernardo se pôs a falar ainda mais alto, a andar e gesticular como alguém fora de si. Em seguida, gritou para que o motorista parasse: - pare, motorista, pare! O outro ônibus sumiu! Precisamos procurá-lo! - um rumor crescente estabeleceu-se entre as pessoas despertas pelo barulho. Alguém tentou contê-lo. Por fim, o condutor encostou o imenso transporte. Não bastaram os apelos, as observações, Bernardo quis descer.
   Em meio à grave discussão, uma menina obtemperou que já era tempo do outro ônibus tê-los alcançado, e o motorista completou dizendo que havia quase uma hora que não via os faróis pelo retrovisor. ''Mas isso é impossível'' - falava o professor - ''eles nos seguiam bem de perto!'' A apreensão invadiu a atmosfera estreita do corredor. Olhares convulsos, choro e confusão. Bernardo contagiara a todos.  
   Ao cabo de alguns minutos, decidiram sair, munidos somente de uma lanterna, para, na madrugada gélida, tentar ver o que acontecera com os demais. Três homens, incluindo Bernardo, fizeram o caminho de volta pelo asfalto envolto em brumas -''muito cuidado, vamos andar pelo canteiro para nenhum veículo nos atropelar'' - recomendava um. Outro continuava ligando a ver se alguém atendia o telefone debalde. O restante permaneceu na espera por notícias.
   Passado um quarto de hora, Bernardo reparou nas luzes que vinham do fundo do vale, justamente em um ponto da estrada mais abaixo. Assustou-se constatando que algumas luzes eram vermelhas e piscavam - ''olhem lá! Devem ser ambulâncias! Vamos!'' Desceram correndo. Estranhamente não sentiam o frio da serra e nem o calor do movimento, cada vez mais rápido, para chegarem sem demora no local do que acreditavam agora ser um acidente. 
  À medida que se aproximavam, viam a intensa movimentação: bombeiros, ambulâncias, carros de polícia, gente falando, andando de lá para cá - um rombo enorme na mureta da estrada  e a marca de grossos pneus no chão terminando no abismo. O medo fulminou-lhes emprestando um terror jamais sentido. E esta sensação beirou o paroxismo quando Bernardo, de olhos vidrados, fitos na imagem inacreditável que se lhe abria, berrou para seus companheiros com palavras entrecortadas e certa dificuldade:
-Olhem! O ônibus está intacto! Ele não caiu na ribanceira! Somos nós... Nós é que estamos no fundo do vale agora! Foi o nosso ônibus que caiu! Nós estamos mortos!

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Classe Média

   Beatriz era classe média, dessas que, para morar um pouco melhor, compram um apartamento minúsculo a perder de vista. O prédio ficava em uma rua recuada, quase sem movimento, mas valia por estar em um bairro nobre - o mais nobre da cidade. E enchia a boca para dizê-lo - mesmo que a piscina do prédio ficasse cheia aos domingos, e a vizinhança não fosse lá tão fina; mesmo que só se divisasse o mar ao longe. Ganhava um salário razoável e sustentava a casa junto com seu marido. Ambos faziam mil contas, ficavam com nome sujo, deviam condomínio e prometiam economizar. Mas Beatriz gastava o dinheiro, assim que o recebia em mãos, naquelas promoções boas de lojas bem baratinhas da região central - a blusa larga de zebra, os sapatos de bico fino, os argolões, a bolsa... E aparecia na porta do colégio das duas filhas afirmando para as outras mães que aquela roupa havia sido comprada na Zona Sul:
-menina, meu marido até brigou comigo... Eu estava passeando em Ipanema e aí vi uma liquidação boa, você não sabe! Paguei quinhentos nessa blusinha aqui! Não estava barato? E era tanta coisinha que acabei estourando o cartão! - E saía puxando as duas meninas pelas mãos. Em outra ocasião, demonstrou ser uma mulher moderna e ocupada:
-Nossa, essa vida anda tão corrida! É tanta coisa que a gente faz: academia, meditação, sessão de depilação, massagem, hidroginástica que parece que a semana não vai dar. Ah, e dou aquela passadinha no cabelereiro porque ninguém é de ferro, né? Preciso me cuidar! - Arranjou um meio de emendar o 'salão' com 'depressão' - talvez porque rimasse - pois também era bonito falar que sofria e que precisava de terapia. A verdade é que não fazia nada daquilo. O dinheiro mal bastava para pagar o colégio - o melhor da cidade. Além disso, Beatriz pouco se importava com a real educação das crianças, tentando preencher sua ausência com biscoitos e brinquedos. Talvez fosse melhor assim: Beatriz era irrefletida e nada ajuizada. Lia revistas de fofoca, falava mal do vestido das amigas, nunca permitia que as raízes dos cabelos ficassem pretas e as unhas descascadas. Fora que olhava para os lados quando entrava em seu prédio - ''vai que algum conhecido fica sabendo que moro aqui''. Tinha até uma desculpa pronta: - ''vim apanhar uma encomenda com a minha costureira''.
   O marido era um boçal. Falava baixo e não tinha força para conter a esposa. Acabava por concordar com tudo. E como Beatriz se recusasse a cozinhar, preparava uma comida ruim: macarrão instantâneo, ovo frito e farinha - e uma garrafa enorme de refrigerante. ''Eu fico na água, não quero engordar!'' - Dizia. Chegou ao ponto de falar que a mãe era uma ''bondosa senhora que trabalha lá em casa, a quem minhas filhas acostumaram chamar de avó''; e sustentar um 'casinho' extra-conjugal com um rapaz bem mais novo. Tudo para manter as aparências.
   Beatriz não era rica, não era tão bonita e nem inteligente. Beatriz era falsa nos modos e nas convicções. Sua vida era frustrante e, para sua felicidade, não tinha consciência de tamanha estupidez.  Beatriz era uma pessoa de triste figura, uma máscara tragicômica de mau-gosto. Alguém nulo, em cuja existência não havia razão. Beatriz e sua família foram despejadas. Saíram com as malas e os móveis do edifício. Uma conhecida, lá da porta do colégio, passou e viu a movimentação:
-Ué, está de mudança, querida?
-Ah, estou sim - e baixando o tom de voz - vou morar em frente à praia... Cobertura, minha filha, coisa chique!