sábado, 12 de junho de 2010

A Múmia!

   Andar por aquela rua durante a noite era uma temeridade. Não havia ninguém e o perigo de assalto era grande. Todavia, ele andava mesmo assim. Gostava do silêncio e abandono da madrugada, do vazio e da penumbra, do frio e da imensa abóboda celeste serenada. Sua companhia eram seus passos e o barulho distante de carros no viaduto afastado. Os pensamentos ficavam mais altos, mais claros, mais livres. E a solidão lhe aprazia. Uma brisa agitou as folhas das árvores, formando sombras em toda a extensão do muro caiado. Atrás dele, acreditava, apenas um terreno baldio. Mas as histórias que lhe contaram sobre o local, horas antes, eram demasiado assustadoras.
   Na festa da repartição, depois de se desforrarem com a bebida e a comida, alguém começou a falar em assombrações. Cada um, então, contou um caso que conhecia de ouvir falar. O Alexandre, alterado pelo álcool, fez um comentário relativo a um incêndio:
-Ih, rapaz, você anda por ali, é? Se eu fosse você, não andava por ali, não! Atrás daquele muro tinha um circo que pegou fogo e matou muita gente! Dizem que até hoje ouvem gritos por lá, e um amigo viu o fantasma de um homem todo queimado! - outras pessoas, a seu turno, relataram o que sabiam, corroborando o que Alexandre dizia. Nunca se questionara acerca do tal muro e o que havia atrás dele. Sempre caminhou tranquilo por aquelas plagas e jamais vira ou ouvira qualquer coisa. Tudo pareceu uma lenda fantasiosa saída da boca de bêbados irrefletidos. E agora, ao recordar as palavras de seus colegas, sentiu um calafrio subir-lhe pelas vértebras. Poderia ser verdade? De fato houve um circo na cidade que pegou fogo, muitos anos antes, e a tragédia deixou um sem número de vítimas fatais. Contudo, ninguém mais se recordava e os nomes dos mortos foram esquecidos. Então fora ali, atrás daquele alto muro branco? Apressou-se. A parede terminava em um portão de ferro cinza  que, estranhamente, se encontrava aberto. Não conteve a curiosidade e olhou para dentro.
   O conhecimento é movido pela curiosidade e interesse, mesmo se tratando de assuntos frívolos, mesmo causando arrependimento depois. Há certas coisas que nunca devem ser mexidas, desenterradas, divisadas por olhos levianos e mentes frágeis - o homem as procura ainda assim. Sendo a morte o mote principal, são insuficientes os apelos da consciência pela vida; todos a querem conhecer, seja admirando-se com um cadáver estirado ou exumado, seja imaginando  o próprio enterro ou fazendo obscuros preparativos; a mente repele no momento de lucidez subsequente: precisamos viver! Ah, antes suas vistas não a alcançassem naquele instante, antes não fossem tão desejosas de encontrá-la, antes não procurassem respostas para o que não deve ser respondido! Os outros órgãos instavam, e suas vistas insistiam. O bodum podre, de ferida mal-curada e secreção chegou às suas narinas inopinadamente - cheiro de pele queimada. Teve ânsias e quase regurgitou a comida da festa. Tonto e meio cambaleante, escutou sons abafados e guturais como de alguém amordaçado que tentasse desesperadamente falar. A visão embassada girou e uma figura branca lhe apareceu adiante. Aos poucos foi ficando nítida e tomando formas definidas - o coração acelerou, prestes a subir pela garganta; os ossos tremeram feito estruturas de um prédio em ruínas... Fugiu. 
   Ninguém sabe dizer a razão de seu estado, de seu medo e desconfiança; ninguém pode afirmar ao certo a origem de seus males dos nervos e de sua profunda tristeza... Permanece em constante vigília e se enfim dorme, tem pesadelos... É quando se debate violentamente e grita: - a múmia! A múmia!

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