domingo, 6 de junho de 2010

Acidente

   Bernardo teve um pesadelo horrível: o ônibus saía da estrada, despencando na ribanceira. Os solavancos, os gritos e os corpos se misturando aos objetos projetados pareciam muito reais, e a sensação foi tal que acelerou os batimentos cardíacos, causando falta de ar e fazendo-o despertar. Custou até entender que estava fora de perigo, sentado no banco, na penumbra, ouvindo seu colega ressonando ao lado - todos dormiam. Respirou fundo. Para se certificar que tudo não passara mesmo de um simples pesadelo, puxou a cortina e limpou o vidro embaçado. A noite espessa mal deixava entrever as árvores do caminho. E como que o ônibus subisse a serra, fazendo uma curva que permitia ver o asfalto serpenteando morro abaixo, não encontrou os dois faróis do outro ônibus que deveria vir logo atrás. Convencido de que o que vira fora uma premonição, um aviso, desesperou-se. Levantou aturdido pela compreensão dos fatos e, em passos largos, foi aos primeiros bancos onde descansavam alguns professores responsáveis pela excursão:
-Professor! Professor! Acorda! - sacudia o pobre homem que abriu os olhos assustado - acho que o outro ônibus caiu na ribanceira!
-Como é?
-Eu sonhei e... Eu vi... Eu olhei e o ônibus não estava mais lá! - O professor fez com que se acalmasse e tentasse explicar direito. Toda aquela agitação acabou por acordar outros passageiros.
-Isso é absurdo! Foi só um sonho! Não seja irresponsável, uma brincadeira dessas pode causar grandes problemas! Vá dormir e me deixe dormir também!
-Não foi só um sonho, eu juro! Tente ligar para alguém do outro ônibus! Isso! Aí veremos se é verdade ou não! - Tamanha era a insistência que o professor, para se ver logo livre, discou um número em seu telefone... Ninguém atendia.
-Devem estar dormindo, claro, como nós estávamos até você vir fazer esse estardalhaço!
-Vamos voltar! - o rapaz estava realmente impressionado, parecia ter perdido a razão - vamos voltar e procurar o outro ônibus!
-Ficou louco? - Bernardo se pôs a falar ainda mais alto, a andar e gesticular como alguém fora de si. Em seguida, gritou para que o motorista parasse: - pare, motorista, pare! O outro ônibus sumiu! Precisamos procurá-lo! - um rumor crescente estabeleceu-se entre as pessoas despertas pelo barulho. Alguém tentou contê-lo. Por fim, o condutor encostou o imenso transporte. Não bastaram os apelos, as observações, Bernardo quis descer.
   Em meio à grave discussão, uma menina obtemperou que já era tempo do outro ônibus tê-los alcançado, e o motorista completou dizendo que havia quase uma hora que não via os faróis pelo retrovisor. ''Mas isso é impossível'' - falava o professor - ''eles nos seguiam bem de perto!'' A apreensão invadiu a atmosfera estreita do corredor. Olhares convulsos, choro e confusão. Bernardo contagiara a todos.  
   Ao cabo de alguns minutos, decidiram sair, munidos somente de uma lanterna, para, na madrugada gélida, tentar ver o que acontecera com os demais. Três homens, incluindo Bernardo, fizeram o caminho de volta pelo asfalto envolto em brumas -''muito cuidado, vamos andar pelo canteiro para nenhum veículo nos atropelar'' - recomendava um. Outro continuava ligando a ver se alguém atendia o telefone debalde. O restante permaneceu na espera por notícias.
   Passado um quarto de hora, Bernardo reparou nas luzes que vinham do fundo do vale, justamente em um ponto da estrada mais abaixo. Assustou-se constatando que algumas luzes eram vermelhas e piscavam - ''olhem lá! Devem ser ambulâncias! Vamos!'' Desceram correndo. Estranhamente não sentiam o frio da serra e nem o calor do movimento, cada vez mais rápido, para chegarem sem demora no local do que acreditavam agora ser um acidente. 
  À medida que se aproximavam, viam a intensa movimentação: bombeiros, ambulâncias, carros de polícia, gente falando, andando de lá para cá - um rombo enorme na mureta da estrada  e a marca de grossos pneus no chão terminando no abismo. O medo fulminou-lhes emprestando um terror jamais sentido. E esta sensação beirou o paroxismo quando Bernardo, de olhos vidrados, fitos na imagem inacreditável que se lhe abria, berrou para seus companheiros com palavras entrecortadas e certa dificuldade:
-Olhem! O ônibus está intacto! Ele não caiu na ribanceira! Somos nós... Nós é que estamos no fundo do vale agora! Foi o nosso ônibus que caiu! Nós estamos mortos!

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