quinta-feira, 10 de junho de 2010

É Possível Morrer - parte I

   Penetrou a noite densa como quem recebesse um convite para fundir-se ao medo das almas. Os olhos ainda se habituavam à ausência de luz e logo seus ouvidos aguçaram-se na espera de um inimigo. O som das folhas secas e dos galhos se partindo, ficava cada vez mais alto, traindo-lhe, eventualmente, quando pensava estar sendo seguida. Sentia uma presença forte como se alguém a vigiasse. Caminhou por meia hora até soerguer-se a silhueta sinistra diante de si: o imenso casarão perdido na floresta de Scardale. Já o havia visto durante o dia; um prédio de dois pavimentos, em arquitetura georgiana, construído em 1911 para abrigar um hospício. A vegetação cobria os muros altos e a ferrugem carcomia o portão de acesso. A despeito de tantos anos fechada, a construção mantinha-se em bom estado. Tábuas tapavam-lhe as janelas - quatorze ao todo - e parte do telhado desabara; a madeira podre da porta de entrada permitia que se lograsse penetrar com facilidade o interior a quem assim desejasse. Daisy, conhecida sensitiva - não sem certa desconfiança dos moradores da cidade - nada via além da velha pilha de tijolos vermelhos. Contudo, o terrível peso da carga energética parecia comprimir-lhe as têmporas. A intuição a levara ali como um chamado de alguém que precisava lhe falar urgentemente. Seus pés não queriam mais obedecer... Tremendo, porém, prosseguiu.
   Daisy nascera na Louisiana e passava dos cinquenta. Sua pele negra mantinha os traços lisos de mulher jovial. A figura corpulenta, de membros fortes, socada, parecia caricata quando vestia imitações de peles, turbante e cordões de dentes pontiagudos. A indumentária era apenas um chamariz, algo para impressionar, elemento da apresentação anunciada pelo letreiro ''Daisy Sensitiva: tarô, quiromancia e vodu''. O ritual mesmo dispensava roupas, ela bem o sabia. Sofreu todo tipo de perseguições, capitaneadas pelo presbítero da igreja local, da qual muitos habitantes faziam parte. E, naquela noite, uma voz a despertara novamente para seus dons.
- Venha! - ouviu nitidamente. Não podia saber de quem era a voz e, muito embora acostumada com essas manifestações, aquela a amendrontava sobremaneira. Ao passar pelo pórtico de entrada, um vento gélido, como saído de uma garganta morta, devassou-lhe os ossos - treva total. Estacou, mas a voz convocava-lhe novamente: ''venha!'' Não obstante a madrugada nebulosa, um brilho estranho pairava sobre as nuvens e a iluminação tênue penetrava o saguão. Uma fumaça surgiu vagarosamente do chão, densificando-se, compondo uma massa espectral amorfa - ''venha!'' - O ente seguiu para o interior e desapareceu na escuridão. Daisy, aturdida, desmaiou.

Continua...

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