terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Personalidade do Mês de Dezembro

Horacio Quiroga (1879-1937) e Ambrose Bierce (1842-1913?)

   Pelo fato de não ter escrito sobre nenhuma personalidade no mês de Novembro, agora em Dezembro resolvi falar de dois contistas de terror, ambos pouco conhecidos no Brasil, a quem tive a felicidade de encontrar neste ano através de sua Literatura: Horacio Quiroga e Ambrose Bierce.
   Horacio Quiroga nasceu no Uruguai, mas viveu um bom tempo na Argentina; sua vida foi marcada por algumas fatalidades, dentre as quais o disparo acidental, feito por ele com uma arma, que acabou vitimando seu amigo. Seu mais famoso livro Contos de Amor, de Loucura e de Morte foi publicado em 1917; nele se verifica uma característica muito particular nas histórias de Quiroga: seu terror está presente na natureza e na própria vida, manifestando-se através de situações trágicas que selam o destino de seus personagens. Formigas carnívoras, picadas de cobra, insolação, a crueldade do homem para com seu próximo marcam seu estilo, tornando-o, a meu ver, mais verossímil. Horacio Quiroga se suicidou ingerindo cianureto em 1937.
   Já Ambrose Bierce, de origem estado-unidense, se aproxima mais do estilo clássico de terror, ao modo de Edgar Allan Poe: o sobrenatural permeando a ação da qual depende a própria história. Não que ele despreze a crua realidade da relação entre as pessoas: para tanto é capaz de opor pai e filho, condenar um homem que sonha em voltar ao lar e matar crianças para fazer um óleo medicinal; mas a fatalidade nele é demonstrada de forma bem mais sutil. Para seu rico imaginário contribuiu a sua experiência na Guerra Civil Americana (1861-1865), cenário no qual se passam alguns de seus contos. Bierce foi jornalista e publicou muitos textos satíricos, dentre eles O Dicionário do Diabo onde dá uma versão crítica do significado de certas palavras. Desapareceu por volta de 1913 ao atravessar a fronteira do México para, supostamente, se juntar aos homens de Pancho Villa. 

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Combray está Morrendo

   Tanto ouvimos falar sobre o Capitalismo, o sistema classificado como terrivelmente cruel e desigual; todavia, jamais, em todos os meus anos de Academia, pude compreender sua nefasta amplitude tal como agora. A ação predatória das construtoras está colocando abaixo muitas casas e pequenos prédios de minha cidade. O que para uns pode parecer progresso, para mim é um crescimento desordenado. Aos poucos o ar interiorano vai deixando de existir, o lugar acolhedor vai morrendo em detrimento do lucro avassalador de homens que em tempo algum pisarão o solo deste lugar - além dos empreiteiros, ganham o prefeito e os vereadores com seus alvarás e vistas grossas. Esta palavra pode parecer a de um conservador aguerrido que não quer ver morrer o cenário caro de sua infância, avesso à mudanças e crítico da modernidade. Talvez. A leitura recente de Proust me fez resgatar certos acontecimentos há muito perdidos, revolvidos assim, tirando do fundo do baú a memória invencível de uma época de inocência boa, descompromissada, não menos vívida e alegre do que a fase adulta. ''Toda Combray'' - diz o autor - ''e suas redondezas, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá''; uma simples bebida quente, na qual molhava-se um biscoito, reconstituiu-lhe aos olhos a cidade de Combray; minha Combray hoje desmorona - temo ter que buscar-lhe no fundo de uma xícara de chá.
   Outro texto interessante, carregado do ar nostálgico, foi escrito por Victor Hugo quando do exílio se referia a Paris: ''É, para ele, uma doce lembrança imaginar que ainda resta alguma coisa do que via quando estava em sua terra, e que nem tudo teria desaparecido. Enquanto podemos ir e vir em nossa terra natal, imaginamos que as ruas nos são indiferentes; que as janelas, os telhados e as portas não nos dizem nada; que as paredes nos são estranhas; que as árvores são como todas as outras, que as casas onde não entramos são inúteis, que as calçadas por onde caminhamos são simples pedras. Mais tarde, quando estamos longe, percebemos que aquelas ruas nos são caras; que aqueles telhados, aquelas janelas e aquelas portas nos fazem falta; que aquelas muralhas nos são necessárias; que aquelas árvores nos são queridas; que naquelas casas onde não entrávamos, todos os dias entrávamos; e que deixamos entranhas, sangue e coração naquelas calçadas''. Victor Hugo ainda alerta o leitor: era provável que casa e ruas que descrevia não mais existissem.
  Vejo casas e prédios sendo demolidos em função da rapina gananciosa de pessoas que nunca estiveram ligadas a eles; que ignoram que a inconsequência da construção indiscriminada de edifícios pode acarretar um ônus drástico à própria cidade - imagine cinco edifícios de doze andares, com seis apartamentos por andar, reunindo setenta e duas famílias, cada uma com um carro; aumento dos congestionamentos, precariedade nos serviços, falta de recursos suficientes para abrigar tanta gente em espaços não-planejados e mal-adaptados. E para isso tudo contribui a classe média que compra apartamentos na planta, a perder de vista, acreditando nas promessas que o empreendimento imobiliário oferece: espaço gourmet, cinema, brinquedoteca, piscina, academia etc. Mas e se as setenta e duas famílias resolverem utilizar os mesmos ambientes de uma vez só, vai ter fila de espera? Compensa pagar, na planta, por coisas das quais não se valerá? Enquanto uns se matam para pagar as prestações, o condomínio e o IPTU altos; outros, ou melhor, outro conta as notinhas angariadas a custo do consumo irrefletido. É este, para mim, o retrato do Capitalismo; era nisto que pensava quando li o trecho do Manifesto Comunista que diz que a burguesia tornou tudo mera transação monetária. Agora vejo que as casas do caminho, com as quais pouco me importava, desaparecidas repentinamente, me fazem falta - minha Combray está morrendo, e não há nada que se possa fazer.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Tomara que Morra!

   Luís era um rapaz comum. Não despertava qualquer interesse da parte de ninguém. Não era feio e nem bonito; possuía uma inteligência mediana e talentos razoáveis - tocava músicas no violão e escrevia poemas de qualidade duvidosa. Sua opinião era sempre conciliatória e as palavras, brandas. O rosto era de uma conformidade sorridente, com a boca pendente e pálpebras descaídas. Era difícil que alguém lembrasse dele nas conversas, pois não lhe admiravam ou tinham repulsa - era simplesmente esquecido. Compensava, contudo, a falta de personalidade com uma bondade extrema. Envolvido nas atividades religiosas, alimentava uma fé absoluta e explicava cada acontecimento da vida como sendo fruto da vontade suprema de Deus - o fracasso que carregava feito estigma nas costas servia de provação.
   Talvez fosse mesmo uma provação sua trajetória lamentável no colégio, agravada pela associação à uma pobre alma indolente que achou por bem nomear de 'namorada'. Eram felizes, apesar de tudo: compunham o corpo musical da igreja, faziam alguma caridade, pregavam em voz langorosa, pontuando com jargões de motivação; tinham sonhos pouco ambiciosos, viajavam para perto, viam novela juntos e dormiam cedo - ela queria ser pedagoga e educar criancinhas; ele arrumava empreitadas e economizava para enfim casarem e consumarem seu amor.  
   O andar mal-ajambrado, o acúmulo de gordura precipitando-se sobre a fivela do cinto, a transpiração excessiva e a gaforina davam-lhe um aspecto um tanto acabado. No fundo, Luís não pensava em sua própria condição; estava sempre agradecido, sempre resignado. Se lhe tinham alguma opinião adversa, ignorava, pois pensava que era, acima de tudo, obrigação disfarçar qualquer julgamento mau em relação a outrem. Esforçava-se por sopitar o sentimento ruim que fosse, crendo incorrer em pecado mortal, assistido de perto pela Providência vingativa. Amava ao próximo, sim, amava forçosamente! E cria sinceramente que todos lhe devotavam a mesma compaixão. As más línguas, pelo contrário, balbuciavam: fracassado! - E assim descia a rua, divagando numa filosofia inócua, alternando com uma lista mental de afazeres e preocupações, quando reparou na figura conhecida que vinha na direção oposta.
   -Luís, que surpresa revê-lo! Há quanto tempo, não? Acho que oito anos... - enquanto seu interlocutor falava, Luís pôde vislumbrar melhor, a partir da forma do rapaz adiante e de suas palavras, que o destino não lhe fora muito generoso: seu colega tinha se desenvolvido, ficado mais alto, adquirido um corpo esbelto combinado a uma beleza sutil - ah, eu me formei em Direito, estou trabalhando em um dos maiores escritórios da capital... Conheci uma moça lá e nos casamos - Luís percebeu algo estranho dentro de si; algo acompanhado de uma palpitação crescente que parecia tomar, pouco a pouco, os seus membros, provocando certa confusão interior: suas vistas adquiriram expressão, suas sobrancelhas arquearam, os dentes superiores roçaram nos inferiores, suas mãos tremeram por instantes, um rubor subiu-lhe à face. Nunca experimentara aquilo, não com tanta emoção; a ponta da lança rasgou-lhe a carne e o líquido, em franca ebulição, entornou, ganhando as veias, os órgãos e cada célula - a inveja genuína chegava ao paroxismo e um segundo bastou para incorporar o anátema do condenado pela tal Providência, talvez, representando, no interior, cada títere grotesco que fazia parte de sua história. Foi quando desejou a morte daquele homem, imaginando algo bem sórdido, bem cruel que fizesse esboroar todo aquele sucesso - E aí repetiu para si:
   -Tomara que morra! - Despediu-se do colega com uma falsa simpatia e a frase continuou a reverberar na cabeça: - tomara que morra! Tomara que morra! - Em seguida, penitenciou-se amargamente, mas era tarde: um estrondo ressoou; o rapaz jazia no chão - a inveja ali nasceu e deu seu último suspiro.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Porcos

  
   Os porcos são um problema na cidade. Está certo que é uma cidade de muitas permanências e, embora média, com população numerosa, às sombras de uma capital, mantém o ar bucólico de interior. E os porcos representam esta tal permanência. Por onde passam, reviram o lixo, espalham todo seu conteúdo pela calçada e deixam seus dejetos pelo caminho. São grandes, rubicundos e numerosos. Famílias inteiras passeiam para lá e para cá, imperturbáveis, como se a rua lhes pertencesse. É sabido que podem atrair doenças, além de dar um aspecto horrível ao bairro, porquanto carregam o estigma da imundície. O prefeito, contudo, que habita plagas estrangeiras, faz vistas grossas e ouvidos de mercador: só se interessa pelos problemas do município em época de eleição; aí faz alguma obra de maquiagem em um logradouro de classe média e é reeleito. E, em tempos de calmaria, torna-se um parente suíno na boca de algum eleitor indignado. 
   Os moradores, daqui e acolá, não sabem mais o que fazer. Algumas senhorinhas temem os malfadados animais. Há quem seja obrigado a desviar-se do caminho original - e com razão: tomam boa parte das vias. Questão de saúde pública? Talvez. Porém, quando resolveram fazer justiça com as próprias mãos - o problema parecia não ter solução - quando se decidiram por uma atitude mais enérgica, contundente, a voz da sabedoria ergueu-se em defesa daquelas humilíssimas criaturas:
- Alto lá - dizia - estes suínos não podem ser vítimas de uma visão predatória, contextualizada em seu bojo pela política capitalista que visa construir um projeto de conjuntura pseudo-classista de ordem pública, enfatizando o caráter complexo de uma desconstrução do conceito de porco, revisitado pela pós-modernidade, 'publicizado' em todas as cadeias midiáticas, reformado na propaganda burguesa viceral que atinge o caráter mediano do cidadão desinformado, privando dos direitos constituídos os seres invisíveis, porém concretos, sólidos e viventes de então; exonerando da parcela democrática o indivíduo, enquanto suíno, atentando contra sua psicologia e ostracizando o seu coletivo, entendido como vara! Quando o Estado ergue sua lâmina contra a carne, objetivando sanar um problema consentido pela anuência social unânime, comete um ataque fragmentário, cujos cacos vão cortar a moral emblemática daqueles que se sacrificaram pela liberdade de expressão, desrespeitada dentro de uma interpretação macroeconômica, tendo em vista os progressos de países periféricos e o ressurgimento de movimentos que englobam uma compreensão igualitária, dizendo que os porcos são nossos irmãos! Digam não ao churrasco, pois ele viola a capacidade de ir e vir destes seres!
   Voltaram-se aqueles que tinham pedaços de pau e facões nas mãos para ver o dono de palavras tão categóricas. Era alguém que se proclamava intelectual. No fundo, ninguém compreendeu nada - talvez nem o próprio. Mas ele valeu-se do repertório decorado para tentar conter a fúria daquela gente. Afinal, o diploma e o título conferiram-lhe as prerrogativas de recomendar como as pessoas deveriam agir - elas precisavam de quem lhes dissesse a razão de pensarem assim e prescrevesse o modo correto de atuar dentro da sociedade; escolhendo, claro, muito bem as palavras para não denunciar algum possível sentimento baixo que o igualasse aos demais. Terminou o discurso improvisado falando em 'hipocrisia das gerações subsequentes'. Baixaram-se os pedaços de pau, baixaram-se os facões; uma barbárie foi evitada - a missão do intelectual estava cumprida. Carregou os infelizes porcos para sua casa - eram cinco ao todo - e lá não sabia bem onde alojá-los. Ao cabo de uma semana, os animais disputavam o lugar no sofá, comiam o que viam pela frente, espalhavam excrementos pelos cômodos e deixavam um bodum tenebroso. O Intelectual não teve dúvidas; ligou para todos os seus correligionários e fez correr o aviso: CHURRASCO ANUAL DO PARTIDO - CARDÁPIO: CARNE DE PORCO.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O Fantasma Canibal

   A casa ficava em um bairro de subúrbio; dois pavimentos, sem qualquer rigor arquitetônico, de linhas simples e um aspecto de abandono. O muro alto, enegrecido pelo limo, guarnecido de um portão de ferro, escondia o quintal de ladrilhos vermelhos e as janelinhas gradeadas do interior. O motorista do carro preto confirmou o endereço e logo estava com seu companheiro na calçada, batendo palmas para chamar o morador. Um homem mediano, de cabelos esbranquiçados, calva avançada e trajes simples, atendeu e os fez entrar. 
   O motivo da visita foi um telefonema: alguém, de nome João, dizia sofrer com manifestações paranormais - barulhos estranhos, objetos que flutuavam, outros que se partiam, vozes, vultos iam madrugada adentro, interrompendo o sono e tornando o local praticamente impossível de se habitar. João não era religioso, não possuía qualquer credo, nem vícios ou histórico de distúrbios psiquiátricos - isso seu interlocutor tratou de averiguar e encerrou a conversa prometendo uma visita. Histórias como aquela eram comuns e sempre muito bem-vindas, afinal, aquele grupo, que se reunia constantemente, era vulgarmente denominado de ''caça-fantasmas''. Fernando era o líder e direcionava as ações dos demais. Para este caso, solicitou a um membro que fizesse uma espécie de levantamento da região onde morava o tal João; a outro pediu que preparasse os equipamentos e registrasse toda a ação, enquanto ele faria uma anamnese, como ora foi mencionado, para tentar descobrir se tudo aquilo não era fruto de uma mente fértil - trabalhos assim requeriam muito critério.
   Apenas o rapaz responsável pelos equipamentos pôde acompanhar Fernando. A casa era espaçosa, com um bom número de cômodos, muitos deles vazios e sem janelas - era possível ver o cimento usado para tapá-las; o cheiro não era agradável e os recintos onde havia móveis estavam bagunçados.
-Paulo, o que diz o relatório sobre esse lado da cidade?
-Esse bairro começou a ser ocupado na década de 1940, tendo suas primeiras construções próximas à linha férrea, e cresceu nas duas décadas seguintes, aumentando sua área até o córrego, totalizando uns cinco quilômetros de um limite a outro - e, voltando-se para o morador, perguntou: - o senhor sabe quando esta casa foi erguida?
-Não - o homem, de ar taciturno, respondia a tudo laconicamente.
-Bem, eu reparei que a casa fica em uma rua que termina no córrego. É provável que seja de fins da década de 1960 - concluiu Fernando - o senhor mora aqui desde quando?
-Há quinze anos.
-E quem morou aqui antes?
-Não sei.
   Fernando teve má impressão daquele lugar e daquele homem. Havia algo estranho que lhe provocou certa repulsa inexplicável, agravada pelos maus odores da atmosfera rançosa da casa. A noite caiu. As câmeras, gravadores e mesmo o aparelho de medição de energia eletro-magnética não haviam detectado qualquer indício das manifestações. Sequer ruídos foram ouvidos ou espectros, divisados. O homem limitou-se a observar sem nada dizer. Parecia perscrutá-los com olhos dissimulados e cobiçosos, de cenho franzido, por vezes sorrindo de soslaio. Fernando decidiu rastrear cada quarto novamente, e Paulo seguiu para a cozinha. Após isso, conforme combinado, encerrariam o trabalho.
   Fernando entrou em um recinto escuro, apontando a câmera para cada canto. Confiando na lente noturna, que emprestava a tudo tons esverdeados, percebeu um sem número de coisas largadas a esmo pelo chão e em cima da cama de casal: roupas, revistas, acessórios e, inclusive, garrafas de bebida e pontas de cigarro, além de seringas usadas - ''ele mentiu para mim!'' - Pensou. Ao mesmo tempo que crescia dentro de si o medo e a vontade inopinada de sair dali, ouviu um som gutural esganado. Correu para a cozinha e o horror irracional dominou seus braços e pernas, sufocando o grito na garganta -  a geladeira estava aberta e continha pedaços humanos decepados aleatoriamente; caído no chão, Paulo fora degolado e, naquele instante, o sangue tingia o piso de rubro. Foi a última visão de Fernando. Logo sentiu um líquido quente jorrar sobre seu corpo, provocado pelo corte agudo de uma navalha.