terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Personalidade do Mês de Dezembro

Horacio Quiroga (1879-1937) e Ambrose Bierce (1842-1913?)

   Pelo fato de não ter escrito sobre nenhuma personalidade no mês de Novembro, agora em Dezembro resolvi falar de dois contistas de terror, ambos pouco conhecidos no Brasil, a quem tive a felicidade de encontrar neste ano através de sua Literatura: Horacio Quiroga e Ambrose Bierce.
   Horacio Quiroga nasceu no Uruguai, mas viveu um bom tempo na Argentina; sua vida foi marcada por algumas fatalidades, dentre as quais o disparo acidental, feito por ele com uma arma, que acabou vitimando seu amigo. Seu mais famoso livro Contos de Amor, de Loucura e de Morte foi publicado em 1917; nele se verifica uma característica muito particular nas histórias de Quiroga: seu terror está presente na natureza e na própria vida, manifestando-se através de situações trágicas que selam o destino de seus personagens. Formigas carnívoras, picadas de cobra, insolação, a crueldade do homem para com seu próximo marcam seu estilo, tornando-o, a meu ver, mais verossímil. Horacio Quiroga se suicidou ingerindo cianureto em 1937.
   Já Ambrose Bierce, de origem estado-unidense, se aproxima mais do estilo clássico de terror, ao modo de Edgar Allan Poe: o sobrenatural permeando a ação da qual depende a própria história. Não que ele despreze a crua realidade da relação entre as pessoas: para tanto é capaz de opor pai e filho, condenar um homem que sonha em voltar ao lar e matar crianças para fazer um óleo medicinal; mas a fatalidade nele é demonstrada de forma bem mais sutil. Para seu rico imaginário contribuiu a sua experiência na Guerra Civil Americana (1861-1865), cenário no qual se passam alguns de seus contos. Bierce foi jornalista e publicou muitos textos satíricos, dentre eles O Dicionário do Diabo onde dá uma versão crítica do significado de certas palavras. Desapareceu por volta de 1913 ao atravessar a fronteira do México para, supostamente, se juntar aos homens de Pancho Villa. 

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Combray está Morrendo

   Tanto ouvimos falar sobre o Capitalismo, o sistema classificado como terrivelmente cruel e desigual; todavia, jamais, em todos os meus anos de Academia, pude compreender sua nefasta amplitude tal como agora. A ação predatória das construtoras está colocando abaixo muitas casas e pequenos prédios de minha cidade. O que para uns pode parecer progresso, para mim é um crescimento desordenado. Aos poucos o ar interiorano vai deixando de existir, o lugar acolhedor vai morrendo em detrimento do lucro avassalador de homens que em tempo algum pisarão o solo deste lugar - além dos empreiteiros, ganham o prefeito e os vereadores com seus alvarás e vistas grossas. Esta palavra pode parecer a de um conservador aguerrido que não quer ver morrer o cenário caro de sua infância, avesso à mudanças e crítico da modernidade. Talvez. A leitura recente de Proust me fez resgatar certos acontecimentos há muito perdidos, revolvidos assim, tirando do fundo do baú a memória invencível de uma época de inocência boa, descompromissada, não menos vívida e alegre do que a fase adulta. ''Toda Combray'' - diz o autor - ''e suas redondezas, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá''; uma simples bebida quente, na qual molhava-se um biscoito, reconstituiu-lhe aos olhos a cidade de Combray; minha Combray hoje desmorona - temo ter que buscar-lhe no fundo de uma xícara de chá.
   Outro texto interessante, carregado do ar nostálgico, foi escrito por Victor Hugo quando do exílio se referia a Paris: ''É, para ele, uma doce lembrança imaginar que ainda resta alguma coisa do que via quando estava em sua terra, e que nem tudo teria desaparecido. Enquanto podemos ir e vir em nossa terra natal, imaginamos que as ruas nos são indiferentes; que as janelas, os telhados e as portas não nos dizem nada; que as paredes nos são estranhas; que as árvores são como todas as outras, que as casas onde não entramos são inúteis, que as calçadas por onde caminhamos são simples pedras. Mais tarde, quando estamos longe, percebemos que aquelas ruas nos são caras; que aqueles telhados, aquelas janelas e aquelas portas nos fazem falta; que aquelas muralhas nos são necessárias; que aquelas árvores nos são queridas; que naquelas casas onde não entrávamos, todos os dias entrávamos; e que deixamos entranhas, sangue e coração naquelas calçadas''. Victor Hugo ainda alerta o leitor: era provável que casa e ruas que descrevia não mais existissem.
  Vejo casas e prédios sendo demolidos em função da rapina gananciosa de pessoas que nunca estiveram ligadas a eles; que ignoram que a inconsequência da construção indiscriminada de edifícios pode acarretar um ônus drástico à própria cidade - imagine cinco edifícios de doze andares, com seis apartamentos por andar, reunindo setenta e duas famílias, cada uma com um carro; aumento dos congestionamentos, precariedade nos serviços, falta de recursos suficientes para abrigar tanta gente em espaços não-planejados e mal-adaptados. E para isso tudo contribui a classe média que compra apartamentos na planta, a perder de vista, acreditando nas promessas que o empreendimento imobiliário oferece: espaço gourmet, cinema, brinquedoteca, piscina, academia etc. Mas e se as setenta e duas famílias resolverem utilizar os mesmos ambientes de uma vez só, vai ter fila de espera? Compensa pagar, na planta, por coisas das quais não se valerá? Enquanto uns se matam para pagar as prestações, o condomínio e o IPTU altos; outros, ou melhor, outro conta as notinhas angariadas a custo do consumo irrefletido. É este, para mim, o retrato do Capitalismo; era nisto que pensava quando li o trecho do Manifesto Comunista que diz que a burguesia tornou tudo mera transação monetária. Agora vejo que as casas do caminho, com as quais pouco me importava, desaparecidas repentinamente, me fazem falta - minha Combray está morrendo, e não há nada que se possa fazer.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Tomara que Morra!

   Luís era um rapaz comum. Não despertava qualquer interesse da parte de ninguém. Não era feio e nem bonito; possuía uma inteligência mediana e talentos razoáveis - tocava músicas no violão e escrevia poemas de qualidade duvidosa. Sua opinião era sempre conciliatória e as palavras, brandas. O rosto era de uma conformidade sorridente, com a boca pendente e pálpebras descaídas. Era difícil que alguém lembrasse dele nas conversas, pois não lhe admiravam ou tinham repulsa - era simplesmente esquecido. Compensava, contudo, a falta de personalidade com uma bondade extrema. Envolvido nas atividades religiosas, alimentava uma fé absoluta e explicava cada acontecimento da vida como sendo fruto da vontade suprema de Deus - o fracasso que carregava feito estigma nas costas servia de provação.
   Talvez fosse mesmo uma provação sua trajetória lamentável no colégio, agravada pela associação à uma pobre alma indolente que achou por bem nomear de 'namorada'. Eram felizes, apesar de tudo: compunham o corpo musical da igreja, faziam alguma caridade, pregavam em voz langorosa, pontuando com jargões de motivação; tinham sonhos pouco ambiciosos, viajavam para perto, viam novela juntos e dormiam cedo - ela queria ser pedagoga e educar criancinhas; ele arrumava empreitadas e economizava para enfim casarem e consumarem seu amor.  
   O andar mal-ajambrado, o acúmulo de gordura precipitando-se sobre a fivela do cinto, a transpiração excessiva e a gaforina davam-lhe um aspecto um tanto acabado. No fundo, Luís não pensava em sua própria condição; estava sempre agradecido, sempre resignado. Se lhe tinham alguma opinião adversa, ignorava, pois pensava que era, acima de tudo, obrigação disfarçar qualquer julgamento mau em relação a outrem. Esforçava-se por sopitar o sentimento ruim que fosse, crendo incorrer em pecado mortal, assistido de perto pela Providência vingativa. Amava ao próximo, sim, amava forçosamente! E cria sinceramente que todos lhe devotavam a mesma compaixão. As más línguas, pelo contrário, balbuciavam: fracassado! - E assim descia a rua, divagando numa filosofia inócua, alternando com uma lista mental de afazeres e preocupações, quando reparou na figura conhecida que vinha na direção oposta.
   -Luís, que surpresa revê-lo! Há quanto tempo, não? Acho que oito anos... - enquanto seu interlocutor falava, Luís pôde vislumbrar melhor, a partir da forma do rapaz adiante e de suas palavras, que o destino não lhe fora muito generoso: seu colega tinha se desenvolvido, ficado mais alto, adquirido um corpo esbelto combinado a uma beleza sutil - ah, eu me formei em Direito, estou trabalhando em um dos maiores escritórios da capital... Conheci uma moça lá e nos casamos - Luís percebeu algo estranho dentro de si; algo acompanhado de uma palpitação crescente que parecia tomar, pouco a pouco, os seus membros, provocando certa confusão interior: suas vistas adquiriram expressão, suas sobrancelhas arquearam, os dentes superiores roçaram nos inferiores, suas mãos tremeram por instantes, um rubor subiu-lhe à face. Nunca experimentara aquilo, não com tanta emoção; a ponta da lança rasgou-lhe a carne e o líquido, em franca ebulição, entornou, ganhando as veias, os órgãos e cada célula - a inveja genuína chegava ao paroxismo e um segundo bastou para incorporar o anátema do condenado pela tal Providência, talvez, representando, no interior, cada títere grotesco que fazia parte de sua história. Foi quando desejou a morte daquele homem, imaginando algo bem sórdido, bem cruel que fizesse esboroar todo aquele sucesso - E aí repetiu para si:
   -Tomara que morra! - Despediu-se do colega com uma falsa simpatia e a frase continuou a reverberar na cabeça: - tomara que morra! Tomara que morra! - Em seguida, penitenciou-se amargamente, mas era tarde: um estrondo ressoou; o rapaz jazia no chão - a inveja ali nasceu e deu seu último suspiro.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Porcos

  
   Os porcos são um problema na cidade. Está certo que é uma cidade de muitas permanências e, embora média, com população numerosa, às sombras de uma capital, mantém o ar bucólico de interior. E os porcos representam esta tal permanência. Por onde passam, reviram o lixo, espalham todo seu conteúdo pela calçada e deixam seus dejetos pelo caminho. São grandes, rubicundos e numerosos. Famílias inteiras passeiam para lá e para cá, imperturbáveis, como se a rua lhes pertencesse. É sabido que podem atrair doenças, além de dar um aspecto horrível ao bairro, porquanto carregam o estigma da imundície. O prefeito, contudo, que habita plagas estrangeiras, faz vistas grossas e ouvidos de mercador: só se interessa pelos problemas do município em época de eleição; aí faz alguma obra de maquiagem em um logradouro de classe média e é reeleito. E, em tempos de calmaria, torna-se um parente suíno na boca de algum eleitor indignado. 
   Os moradores, daqui e acolá, não sabem mais o que fazer. Algumas senhorinhas temem os malfadados animais. Há quem seja obrigado a desviar-se do caminho original - e com razão: tomam boa parte das vias. Questão de saúde pública? Talvez. Porém, quando resolveram fazer justiça com as próprias mãos - o problema parecia não ter solução - quando se decidiram por uma atitude mais enérgica, contundente, a voz da sabedoria ergueu-se em defesa daquelas humilíssimas criaturas:
- Alto lá - dizia - estes suínos não podem ser vítimas de uma visão predatória, contextualizada em seu bojo pela política capitalista que visa construir um projeto de conjuntura pseudo-classista de ordem pública, enfatizando o caráter complexo de uma desconstrução do conceito de porco, revisitado pela pós-modernidade, 'publicizado' em todas as cadeias midiáticas, reformado na propaganda burguesa viceral que atinge o caráter mediano do cidadão desinformado, privando dos direitos constituídos os seres invisíveis, porém concretos, sólidos e viventes de então; exonerando da parcela democrática o indivíduo, enquanto suíno, atentando contra sua psicologia e ostracizando o seu coletivo, entendido como vara! Quando o Estado ergue sua lâmina contra a carne, objetivando sanar um problema consentido pela anuência social unânime, comete um ataque fragmentário, cujos cacos vão cortar a moral emblemática daqueles que se sacrificaram pela liberdade de expressão, desrespeitada dentro de uma interpretação macroeconômica, tendo em vista os progressos de países periféricos e o ressurgimento de movimentos que englobam uma compreensão igualitária, dizendo que os porcos são nossos irmãos! Digam não ao churrasco, pois ele viola a capacidade de ir e vir destes seres!
   Voltaram-se aqueles que tinham pedaços de pau e facões nas mãos para ver o dono de palavras tão categóricas. Era alguém que se proclamava intelectual. No fundo, ninguém compreendeu nada - talvez nem o próprio. Mas ele valeu-se do repertório decorado para tentar conter a fúria daquela gente. Afinal, o diploma e o título conferiram-lhe as prerrogativas de recomendar como as pessoas deveriam agir - elas precisavam de quem lhes dissesse a razão de pensarem assim e prescrevesse o modo correto de atuar dentro da sociedade; escolhendo, claro, muito bem as palavras para não denunciar algum possível sentimento baixo que o igualasse aos demais. Terminou o discurso improvisado falando em 'hipocrisia das gerações subsequentes'. Baixaram-se os pedaços de pau, baixaram-se os facões; uma barbárie foi evitada - a missão do intelectual estava cumprida. Carregou os infelizes porcos para sua casa - eram cinco ao todo - e lá não sabia bem onde alojá-los. Ao cabo de uma semana, os animais disputavam o lugar no sofá, comiam o que viam pela frente, espalhavam excrementos pelos cômodos e deixavam um bodum tenebroso. O Intelectual não teve dúvidas; ligou para todos os seus correligionários e fez correr o aviso: CHURRASCO ANUAL DO PARTIDO - CARDÁPIO: CARNE DE PORCO.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O Fantasma Canibal

   A casa ficava em um bairro de subúrbio; dois pavimentos, sem qualquer rigor arquitetônico, de linhas simples e um aspecto de abandono. O muro alto, enegrecido pelo limo, guarnecido de um portão de ferro, escondia o quintal de ladrilhos vermelhos e as janelinhas gradeadas do interior. O motorista do carro preto confirmou o endereço e logo estava com seu companheiro na calçada, batendo palmas para chamar o morador. Um homem mediano, de cabelos esbranquiçados, calva avançada e trajes simples, atendeu e os fez entrar. 
   O motivo da visita foi um telefonema: alguém, de nome João, dizia sofrer com manifestações paranormais - barulhos estranhos, objetos que flutuavam, outros que se partiam, vozes, vultos iam madrugada adentro, interrompendo o sono e tornando o local praticamente impossível de se habitar. João não era religioso, não possuía qualquer credo, nem vícios ou histórico de distúrbios psiquiátricos - isso seu interlocutor tratou de averiguar e encerrou a conversa prometendo uma visita. Histórias como aquela eram comuns e sempre muito bem-vindas, afinal, aquele grupo, que se reunia constantemente, era vulgarmente denominado de ''caça-fantasmas''. Fernando era o líder e direcionava as ações dos demais. Para este caso, solicitou a um membro que fizesse uma espécie de levantamento da região onde morava o tal João; a outro pediu que preparasse os equipamentos e registrasse toda a ação, enquanto ele faria uma anamnese, como ora foi mencionado, para tentar descobrir se tudo aquilo não era fruto de uma mente fértil - trabalhos assim requeriam muito critério.
   Apenas o rapaz responsável pelos equipamentos pôde acompanhar Fernando. A casa era espaçosa, com um bom número de cômodos, muitos deles vazios e sem janelas - era possível ver o cimento usado para tapá-las; o cheiro não era agradável e os recintos onde havia móveis estavam bagunçados.
-Paulo, o que diz o relatório sobre esse lado da cidade?
-Esse bairro começou a ser ocupado na década de 1940, tendo suas primeiras construções próximas à linha férrea, e cresceu nas duas décadas seguintes, aumentando sua área até o córrego, totalizando uns cinco quilômetros de um limite a outro - e, voltando-se para o morador, perguntou: - o senhor sabe quando esta casa foi erguida?
-Não - o homem, de ar taciturno, respondia a tudo laconicamente.
-Bem, eu reparei que a casa fica em uma rua que termina no córrego. É provável que seja de fins da década de 1960 - concluiu Fernando - o senhor mora aqui desde quando?
-Há quinze anos.
-E quem morou aqui antes?
-Não sei.
   Fernando teve má impressão daquele lugar e daquele homem. Havia algo estranho que lhe provocou certa repulsa inexplicável, agravada pelos maus odores da atmosfera rançosa da casa. A noite caiu. As câmeras, gravadores e mesmo o aparelho de medição de energia eletro-magnética não haviam detectado qualquer indício das manifestações. Sequer ruídos foram ouvidos ou espectros, divisados. O homem limitou-se a observar sem nada dizer. Parecia perscrutá-los com olhos dissimulados e cobiçosos, de cenho franzido, por vezes sorrindo de soslaio. Fernando decidiu rastrear cada quarto novamente, e Paulo seguiu para a cozinha. Após isso, conforme combinado, encerrariam o trabalho.
   Fernando entrou em um recinto escuro, apontando a câmera para cada canto. Confiando na lente noturna, que emprestava a tudo tons esverdeados, percebeu um sem número de coisas largadas a esmo pelo chão e em cima da cama de casal: roupas, revistas, acessórios e, inclusive, garrafas de bebida e pontas de cigarro, além de seringas usadas - ''ele mentiu para mim!'' - Pensou. Ao mesmo tempo que crescia dentro de si o medo e a vontade inopinada de sair dali, ouviu um som gutural esganado. Correu para a cozinha e o horror irracional dominou seus braços e pernas, sufocando o grito na garganta -  a geladeira estava aberta e continha pedaços humanos decepados aleatoriamente; caído no chão, Paulo fora degolado e, naquele instante, o sangue tingia o piso de rubro. Foi a última visão de Fernando. Logo sentiu um líquido quente jorrar sobre seu corpo, provocado pelo corte agudo de uma navalha.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

15 de Novembro



      Lembro-me, como se fosse hoje, de um trabalho que fiz para a matéria de Brasil I - correspondente ao período colonial -  que tive na faculdade: era sobre o livro de Caio Prado Júnior. A apresentação foi lastimável. Eu ainda cismei de fazer uma afirmação categórica, interpretando livremente o autor, dizendo que ainda vivíamos em plena República Velha. A professora não entendeu e eu não soube explicar. Passados seis anos desta malfadada apresentação, sinto ter agora uma justificativa plausível, posto que minha opinião não mudou muito.
   Para os monarquistas, o dia 15 de Novembro é um dia de luto. Chamam golpe a articulação republicana e se reúnem para tomar chá e lamentar a deposição do Imperador. Talvez isso seja a manifestação do descontentamento com o atual regime - e eu não lhes tiro a razão! São constantes os casos de corrupção, desvios de verbas, improbidades, falta de decoro da parte de políticos. Voltando à minha afirmação categórica, vejo raízes nefastas, a herança maldita de um tempo em que se tratava o bem público como algo privado. Em verdade, uma ruptura efetiva nunca houve. Mesmo quando aparentemente agentes do povo chegam ao poder. O que existe de fato é uma adequação ao sistema e uma mimetização da própria elite que se ajusta aos processos históricos para continuar no comando - ou será que existiu no Brasil uma revolução popular de grande alcance e que tencionasse modificar a conformação do Estado? Acho que dormi nessa aula. O que há, o que sempre houve, é a política dos coronéis, dos personagens bonachões, que apadrinham, que mentem acintosamente, que trocam benfeitorias por votos, que representam o ranço, o vício de uma sociedade que não conhece a verdadeira cidadania. E que não recaia a culpa somente na República Velha! Os tais coronéis são bem mais antigos. Eles têm sobrenomes que remontam ao Império. Têm um passado construído a partir da nossa Independência, onde garantiram assento cativo no cenário nacional.
   Não acredito que a Democracia seja o sistema ideal, todavia ainda não foi superado por outro melhor. E, no caso do Brasil, é uma utopia crer em sua consolidação. Afinal, não entendo como se pode falar em Democracia consolidada com voto obrigatório! Mais: não entendo Democracia sem o conhecimento da cidadania. E a cidadania não está somente nos direitos adquiridos, mas nos deveres também! Parafraseando Stendhal, na Nau do Estado, todos querem uma posição de comando - maiorias e minorias -, todos querem uma 'fatia do bolo', uma autopromoção, reafirmando o pensamento que compreende apenas o bem privado e o direito individual. Assim, a República vai mal!
   É provável que o 15 de Novembro haja sido uma grande conquista, da qual, porém, não soubemos fazer bom proveito. Para que possamos viver em um regime igualitário é preciso que promovamos rupturas, que apostemos em alguma renovação, por menor que ela seja, e não mantenhamos as velhas figuras... Engraçado, não sei o motivo de escrever isso... Bem, parabéns para a República e a quem ainda tem esperança de comemorá-la! Acho que vou tomar chá com os monarquistas!

domingo, 7 de novembro de 2010

Banquete nas Trevas

-A que horas foi o óbito?
-Há cinco minutos.
-Ele está morto mesmo?
-Sim, acabei de verificar a pulsação.
-Passe-me a garrafa, quero mais vinho.
-Quanto tempo será que leva para o acharem?
-Não sei, mas deve demorar... Ninguém gostava dele. É provável que o deixem apodrecer no quintal.
-Tenho medo...
-Não se preocupe, vai parecer um ataque cardíaco...
-Sinto-me aliviada... Esse demônio nunca mais nos atormentará!
   Riscaram o fósforo e a luz tênue da chama iluminou três figuras. Ali, sentadas nas trevas, repartiam pão e vinho, mas somente duas dialogavam. A terceira permanecia em silêncio. 
-Está tão calado, o que houve? Arrependeu-se?
-Estou pensando... Não estou arrependido, mas me perguntando se ele realmente merecia.
-E como não? Ele nos humilhava, nos agredia todos os dias, não permitia que convivêssemos com nossa família, nos intrigava, insuflava rancores, nos tirava a esperança. Era um homem odioso! Agora está lá, caído, estendido na terra; as formigas começam a andar sobre suas carnes flácidas e a entrar pela boca pendente; os olhos ressecam-se, o sangue coagula, a pele perde a cor!
-Você sente alguma satisfação nisso, não? Vejo sua alegria nesta imagem tão aterradora!
-Valdemar era um velho asqueroso, não devemos ter pena dele! Ele nunca me despertou bons sentimentos em vida... Não despertará na morte! 
-Este pão que comemos é seu corpo e o vinho, seu sangue!
-Maldito! Este vinho é demasiado doce e o pão, demasiado tenro. Jamais seriam como o féu que corria em suas veias e a pedra que lhe servia de carapaça!
-Representaste muito bem, minha cara, durante todos esses meses! Fingir-se arrependida pelas brigas, manifestar afeto, chamá-lo de pai... 
-E eu ainda disse quando lhe servi o café: ''com muito amor''. Merecia um prêmio pela minha atuação. Agora só resta chorar no enterro. Queria mesmo cuspir-lhe e gritar: ''já vai tarde, infeliz''!
-Não consigo esquecer seus momentos finais: ele se queixou de ardência na garganta e falta de ar, caiu, debateu-se um pouco e ficou estático... Para sempre!
-Temos que pensar em um álibi!
-Álibi? Estávamos todos fora e quando chegamos, soubemos da morte do Valdemar por ataque fulminante! Aliás, lamentável... 
-Ouçam, acho que alguém chamou a polícia.
-Pensando melhor, acho que eu merecia um prêmio por ter dado um fim nesse homem, sabe?
-O que faremos?
-Vamos esperar... A garrafa de vinho ainda está cheia e restam quatro pães...
-Hum, onde está aquele que multiplica os pães e o vinho, hein? Poderíamos ficar nisso a vida inteira!
-Ele está morto agora.
-Só espero que não ressuscite no terceiro dia! Mandei fazer um vestido lindo para o velório...
-Entraram na casa... Estão andando sobre nós!
-Estão falando alguma coisa! Podem ouvir?
-Ei, eu estou ouvindo... Não! Não pode ser! É... É a voz do Valdemar! Mas ele estava morto!
-Vocês ministraram o veneno na quantidade certa?
-Acho que coloquei pouco!
-Ele sobreviveu! Como pôde levantar-se e chamar a polícia?
-Não sei, não sei, mas esse maldito tem que morrer!
    A moça ergueu-se e, pegando a faca do cesto de pães, correu imediatamente para o pavimento superior, saindo das trevas do porão. O rapaz, sentado à cabeceira da mesa, foi atrás, deixando o outro quieto na escuridão. Valdemar estava sendo socorrido por médicos na sala, observado por policiais. 
-Você ainda está vivo, maldito? - A moça tentou cravar-lhe a lâmina da faca, mas foi impedida.
-Foi ela - balbuciou Valdemar - foi ela! - Os policiais detiveram a moça e o rapaz pela suspeita de terem tentado matar aquele homem.
   Uma vez no hospital, depois de terem-lhe desintoxicado, Valdemar acordou de um longo sono, avistando, ainda com certa dificuldade, um rosto.
-Você? O que está fazendo aqui? A polícia não prendeu você junto com aqueles dois?
-Vim trazer uma lembrança de sua filha, papai, com muito amor!
   Valdemar foi encontrado pela enfermeira com a lâmina de uma faca dentro de sua boca.

domingo, 24 de outubro de 2010

Personalidade do Mês de Outubro

Howard Phillips Lovecraft (1890-1937)

   H. P. Lovecraft é um autor não muito conhecido no Brasil, pois ainda são poucas as traduções das suas obras aqui. Nascido nos Estados Unidos, em meio a uma família com histórico de problemas mentais, experimentou algum reconhecimento durante a vida e morreu precocemente aos 46 anos de idade. Sua Literatura de terror e ficção científica versava sempre sobre um mal ancestral, monstros abissais, pesadelos e neste imaginário estão incluídos os mitos de Cthulhu, o Necromonicon - livro escrito por um árabe louco de nome Abdul Alhazred; a cidade de Arkham - supostamente localizada no Condado de Essex, em Massachusetts; e sua Universidade de Miskatonic. É possível encontrar referências à obra de Lovecraft na história de Conan, cujo autor era seu amigo, e no popular desenho do Batman com seu Arkham Asylum.  Retirei apenas uma frase de 'A Sombra de Innsmouth', que é fundamental para entendê-lo e a qualquer outro autor:

'Onde acaba a loucura e onde começa a realidade?'

   Para mim, essa é uma pergunta fundamental. Eu diria mais: estrutural. Onde acaba a loucura? Onde começa a realidade? De que modo a loucura se faz necessária para um artista? É possível que a arte possa ser integralmente sã? Quando um autor escreve, quando um pintor pinta, quando um músico compõe, tudo que há em seu interior se faz representar em forma de sons, cores e palavras. Por isso o tema e a forma  precisam se combinar originalmente, de maneira a retratar o que o artista traz consigo. Cópias, arremedos, objetos desconhecidos, vias mercadológicas são tudo o que uma boa obra não precisa; é preciso, sim, que o criador se deixe levar por sua loucura, não permitindo que as exigências do meio interfiram e encarcerem a sua arte - ou então teremos o lixo cultural que vem sendo produzido apenas para comercialização, mas sem introduzir questionamentos caros à humanidade.  Lovecraft deu voz à sua loucura, escreveu sobre seus medos, seus pesadelos - suas imagens, por vezes, são aterradoras; e está aí o valor de sua Literatura. E esta loucura é tão somente um descanso da realidade, é o vôo da alma, dos pensamentos, é a vivência de outra verdade, uma verdade personalista onde tudo é possível - inclusive ser louco!

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Repúdio às Eleições

   Meu voto não irá para o Serra, tampouco para a Dilma. Acho trágico que só tenhamos duas opções e ter que escolher 'dos males, o menor'. Escolho votar nulo; não porque acredite em uma possível obrigatoriedade de convocação de novas eleições, mas por não querer compactuar com essa política canhestra que vem se constituindo. Para mim, é impossível não ver uma herança nefasta dos tempos do coronelismo, com novos trajes evidentemente, mantendo, entretanto, uma característica paternalista perniciosa que ajuda a erigir certos personagens, supostos baluartes da igualdade e da Democracia. Dizer de um governo, outrora chamado socialista, que se ajustou perfeitamente ao Sistema, que não promoveu rupturas, que incentiva o consumo, que transforma seus assistidos em estatística; dizer deste governo que é de esquerda? Um governo que se rendeu à governabilidade, que fez alianças com figuras obscuras, que distribuiu rendas e abriu postos de trabalho, sem que isso concorresse efetivamente para a igualdade social, porquanto igualdade social só exista na liberdade de escolha e oportunidades - e não é isso que vejo na vida de pessoas para as quais está destinada apenas uma frente de trabalho; que mais contribuiu aos bolsos do empresariado, que joga moedas no gazofiláceo com obras faraônicas, que explora a boa-fé do povo através de uma barganha imoral. E não me venham dizer que tais e tais coisas eram necessárias momentaneamente para resolver o problema. A política no Brasil é feita assim: o maquiavelismo do Estado faz o bem em conta-gotas para aparecer, para poder colocar em um painel bem grande e dizer que o país está mudando! O problema de fato é postergado infinitamente. Ora, há quanto tempo se fala em revolucionar a Educação e a Saúde? Será que nesses anos todos não foi possível? Ou será que revolucionar a Educação e a Saúde demora muito mais que um mandato? Melhores são as medidas imediatistas, não? Elas se convertem em voto facilmente!
   Eu voto nulo; voto nulo porque quero uma alternativa, quero um novo nome, um novo partido, uma nova cara! Não desejo um revesamento de apenas dois partidos no poder, mal comparando com a época da Arena e do MDB. Não desejo qualquer partido que reivindique para si o efeito da opinião pública e que censure; que trate a política e a sua própria posição como se assasse carnes em seu quintal, enchendo a boca para dizer que é um ato de cidadania que o povo roa os ossos que se lhe dê. Lamentável é ver tanta gente defender os avanços, as conquistas, as lutas... Continuo vendo violência, miséria, indigência, hospitais em ruínas, professores ganhando salários irrisórios... O Brasil vai continuar mudando na sua marcha progressiva que acabará em tempos de igualdade absoluta... Realmente, acho que é caso de embriaguez coletiva. Dilma e Serra são farinha do mesmo saco! Ao meu turno, prefiro sair de Alice no País da Democracia Consolidada - mas não voto na Rainha de Copas!

domingo, 17 de outubro de 2010

Conto Erótico

   Este conto tem a única função de demonstrar o quanto estamos presos à nossa condição animal. Para longe de ser puro ato de amor, o sexo, acima de tudo, é uma necessidade orgânica manifesta através do corpo. Ninguém pode sentir prazer físico com a alma - talvez os demagogos sintam -, ninguém busca o sexo simplesmente por amor. Ou não justificariam a sua precisão como sendo intrínseca a um relacionamento conjugal desejável. A nossa mente tenta racionalizar buscando uma explicação favorável aos sentimentos altruístas que comandariam o desejo sexual. Pois eu discordo veementemente: o amor até pode conduzi-lo, mas não guia a vontade primordial. Não somos tão animais como quando estamos copulando; não há meio mais legítimo e natural para se preservar a vida; não há energia maior na Natureza - a energia sexual é criadora! Não quero dizer com isso que abandonemos nossa razão em virtude da promiscuidade irrefreada, pois ainda somos seres racionais e sabemos o mal que advém dos excessos. Talvez o que ora diga não seja novidade. Então passemos ao conto. Caso queira, pule a história, que tem apenas função preliminar, e vá logo para a ação - mas não anseie em demasia para não terminar antes do tempo!
***
   Geisilane não era uma mulher muito bonita, mas possuía formas admiráveis que chamavam a atenção no bairro. Andava metida em roupas curtas e decotadas, justas em seu corpo e, no alto da plataforma, que muito mal disfarça sua baixa estatura, saía às compras na feira. Era dona de casa dedicada ao marido e ao filho pequeno. Lavava, passava, cozinhava, varria os cômodos e o quintal e só parava na hora da novela. Seu marido dormia durante quase todo o dia, pois pegava no seu táxi pela madrugada. Era quando a solidão devassava Geisilane. Recostada no sofá, assistindo algum filme ruim, pensava que pouco tempo havia para sua distração e, quando havia, passava por algo sem graça - ainda mais porque dormia sozinha e nunca saía com seu marido. Pior: ele a deixara de procurar. A diferença de idade entre os dois talvez fosse um agravante. Ela era bem jovem ainda e ele quase batia nos cinquenta. Quando não trabalhava ou dormia, ele bebia muito e ficava imprestável. Fatigada, questionou-se pelo fato de ter optado por aquela vida ingrata, posto que a envelhecera precocemente - muito cedo fora mãe, muito cedo teve responsabilidades, muito cedo pensou em divorciar-se. Não obstante, Geisilane mantinha a boa forma e a vaidade próprias da juventude: maquiava-se, perfumava-se, tingia os cabelos de castanho, pintava as unhas de vermelho e tentava seduzir o pobre marido indiferente. Noites e noites transcorreram assim.
   Certa vez, pouco passava das onze, seu marido havia acabado de sair, quando Geisilane ouviu a campainha - quem poderia ser àquela hora? Foi até o portão a saber da visita inesperada. Era o vizinho, o Jorge, quem batia e vinha pedir para encher um balde de água porque faltara em sua casa. Pediu mil desculpas e Geisilane o fez entrar. Enquanto esteve agachado diante da torneira do quintal, a moça reparou bem no rapaz e perguntou-se umas três vezes porque nunca houvera reparado nele antes: alto, de tez morena, braços bem torneados, cabelos e olhos negros, pêlos encrespados no peito. Sentiu algo diferente e o coração acelerou, deixando-a resfolegante.
   Ao terminar, Geisilane o convidou para um café e, após muita insistência da parte dela, Jorge aceitou. Jamais passara pela cabeça dela trair seu esposo. Mas ali, naquele momento, sucumbiu a um desejo que imediatamente a fez ver aquele homem, com quem vivia, de forma drástica e pouco indulgente. Certificou-se que o filho dormia, depois sentou-se perto do rapaz que sorvia a bebida quente, praticamente o obrigando a reparar nela: um vestido lilás e transparente denunciavam seus seios; seus cabelos úmidos e sua pele recendiam a leite de rosas; seus lábios carnudos clamavam por tocarem-lhes. E tal foi como tudo se deu:

   Ela puxou-lhe pela camisa e beijou-lhe com vontade escorregando suas mãos pelo tronco até a parte interior de suas pernas Jorge apertou os seios volumosos e Geisilane desabotoava-lhe os botões em seguida ele tirou-lhe o vestido pela cabeça e lambeu seus mamilos descendo pela barriga para arrancar sua calcinha com os dentes mordeu as nádegas chupou-lhe o grelo fazendo-a gemer alto depois foi a vez dela Geisilane passou a língua no peito trilhando o caminho formado pelos pêlos que terminavam no membro já rijo de Jorge engoliu o mais que pôde lambuzando de saliva Jorge a ergueu pelos braços virando-a de costas para penetrar fundo naquelas carnes ela primeiro apoiou as mãos na mesa sentando-se nela após quando enfim decidiram mudar de posição abriu as pernas e pôde encará-lo a expressão feroz o suor a força que  desprendiam o clamor tudo era prazer para ambos por fim Geisilane exclamou goza dentro foi quando sentiu um jorro quente na vulva dando o urro derradeiro
   Geisilane tornou-se uma mulher mais afável e compreensiva com o marido e se resignou com suas noites solitárias.  Entretanto, muito embora não passasse de um encontro, jamais esquecera Jorge.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Liberdade Ainda que Tardia

   Aquela era a saída, não havia outra. Uma noite na cadeia já é o suficiente para penitenciar-se de todo o mal. Um cubículo gradeado e imundo, o calor insuportável, o espaço dividido com tantos outros elementos e a privacidade suprimida. Uma noite é o curto tempo para o arrependimento ou para o ódio. Além dos muros altos estava a vida em seu esplendor de felicidade. Ali, porém, restavam as faces carcomidas, as pupilas mortiças e os sorrisos mordazes; restavam a desconfiança, o desmazelo e o terror da promessa de esquecimento aliado à raiva do abandono. Os ânimos jungidos feito massa, fermentando no exíguo espaço mofado, infestado de insetos e tresandando a esgoto e transpiração. Quem ainda possuía fé, rezava; outros reclamavam e cismavam com seus vizinhos. Os únicos alimentos eram incerteza e a inquietação sempiterna da inconformidade - a morte espreitava em cada sombra. Dormiam entrelaçados no chão duro, banhavam-se em água fria, comiam lavagem e satisfaziam as necessidades do corpo diante de todos. As baratas, como se dizia, tinham mais liberdade. 
   Arnaldo habitava uma cela não muito diferente. Sofria a distância dos filhos e amargava a culpa de um tiro desferido por ciúme. Perdera a conta de quantos dias haviam passado - um minuto valia pela eternidade. Tinha quarenta e poucos, mas a dor o fizera parecer bem mais. Seus cabelos grisalhos, o rosto cheio de vincos, as unhas escuras, as mãos grossas, a roupa rota, os pés descalços formavam uma triste figura, contraste absoluto do homem que dormia entre os lençóis de uma cama macia, logo após um banho morno, tendo anteriormente admirado sua vitalidade no espelho - ria da lembrança de outrora e furtivamente caía-lhe uma lágrima desabrida.
   Um tímido raio de sol, filtrado pelas grades da janela, acordou-lhe em certa manhã e com ele vieram as nesgas de esperança: um de seus companheiros era criminoso temido cujos comparsas se esforçaram por cavar um túnel que alcançasse a cela; tudo fora acertado: fugiriam ele e os demais durante a noite. Arnaldo experimentou alegria renovada e mal podia esperar para respirar ar puro, andar na rua, beber água limpa e abraçar seus rebentos. Permitiu-se sorrir um sorriso franco e acreditar novamente em Deus. Conforme o combinado, seria o último a passar pelo buraco, coisa com a qual pouco se importava, porquanto quisesse tão somente sair dali. Assim foi: quando a madrugada já ia alta, os presos começaram sua travessia - um por um desceu; os ossos de Arnaldo tornaram-se trêmulos, o coração acelerou, teve medo. Lembrou-se tardiamente da claustrofobia e se viu incapaz de prosseguir. ''É preciso ir, seus filhos estão esperando... Deus há de ajudar!'' - Tal pensamento lhe emprestou alguma força. Enfiou os braços, a cabeça e foi deslizando pelo túnel, falando alto, de si para si:
   -Meu Deus, eu vou conseguir... Meus filhos, estou chegando, me esperem, papai está chegando! Liberdade, ah! Nem acredito... Eu paguei tudo que devia, se Deus mandou isso é porque não tem mais nada... Estava aqui somente por causa da Lúcia, aquela safada! Nem lembro quantos anos peguei... Dez? Não sei, não importa... Agora estou livre, livre! - Tinha pressa, mas o túnel era bem pequeno; seu tronco, braços e pernas ficaram embebidos em sangue, arranhados pelas lascas de pedra que rasgavam sua roupa - estou quase lá, quase! - Inopinadamente, seu corpo entalou. Encontrava-se esticado e não podia mover-se adiante, tampouco baixar as mãos. Debateu-se no intuito de soltar-se, machucando mais a sua pele, tentando avançar ou retroceder debalde; gritou por ajuda - ninguém ouviu. Algum sopro de vento fresco veio do fim... Ironicamente, a saída estava bem próxima. Os outros presos ganharam a rua e desapareceram na noite. Arnaldo padeceu até que parte da passagem cedeu, sufocando-o com areia... Livre estava, enfim.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O Fantasma do Velho Casarão

   A Natureza não é mais a mesma. Onde se ouvia o canto dos pássaros nas tardes outonais, ou admirava-se o sol poente com suas franjas douradas; onde se podia ver o verde das copas, deitar-se ao relento e deleitar-se com a brisa noturna; hoje há um muro alto e cinza a tapar as vistas; há uma espiga retangular, sem cor, fazendo sombra, arranhando o céu; o ar não é mais puro e já não corre o riacho que secou. Mal se enxerga o firmamento...
   Minha casa ficava naquela esquina. Era grande; possuía uns janelões, uns beirais quase artesanais e uma roseira perto do portãozinho de ferro; nos fundos, árvores frondosas e uma coleção de insetos, pássaros e um sem número de animaizinhos multicores. Nasci em meio àquela aquarela de sons e cores vivazes; debaixo de um dossel finíssimo, sob os cuidados de uma parteira... Sim, digo da minha casa que tivesse sons e cores porque a vida vinha do jardim e misturava-se às teclas do piano, às louças e talheres prateados, ao romance das moçoilas e sisudez dos cavalheiros; aos quadros, enfim, de imaginação que compunham histórias, fazendo personagens reais interagirem com fictícios até cochilar na marquesa da sala...
   Ali cresci, tomei minhas primeiras lições, beijei os lábios incautos de minha adorada, dancei, sorri e li a obra de minha existência; ali chorei, me escondi, envolvi-me em lençóis de seda, senti o cheiro da madeira e vi a chama diáfana apargar-se segundos antes da escuridão; admirei-me das estrelas e da imensidão do Universo; Ali chamei por Deus...
   Quando morri, em um crepúsculo do início do século, não pude abandonar aquela casa, a casa em que vivi todas as minhas vidas. Assisti meus filhos tomarem rumo e meus netos tornarem-se homens. Os móveis mudaram de lugar; algumas toalhas ficaram rotas; o piso foi devorado por cupins. O tempo fez o seu trabalho de oxidar metais, amarelar papéis e esfriar emoções... Ainda assim não abandonei aquele lar; participei de todas as histórias alegres e tristes que ali se desenrolavam como em um teatro, ora me angustiando, ora gargalhando: as gerações que nasciam, um que se suicidava, outro que agonizava; a prosperidade de um primo, a desgraça de um tio; o riso solto e as lágrimas copiosas...  
   Um dia, porém, um tataraneto resolveu vender a casa. Não conseguia viver entre paredes cediças, entre vultos de um passado familiar. Tinha sede de novidade, de modernidade e de esquecimento. Abandonou seu pai, seu avô, seu bisavô e a mim, pois aquela casa não era mais feita somente de tijolos - era feita de sentimentos, de lembranças inesgotáveis, de memória imortal. Por fim, a própria casa tinha vontade e desta velha força alimentava-me. Era eu um fantasma solitário que nada tinha de assustador - somente um espírito saudosista mal acalentado pelas antigas cantilenas...
   Derrubaram o velho casarão - ao invés do jardim, uma portaria e uma garagem; ao invés dos beirais e dos janelões, milhares de pequenos olhinhos de vidro, a centenas de metros acima, dispostos em um imenso corpo de concreto; ao invés de uma família, o ruído de várias pessoas que jamais souberam o que é um jardim; ao invés de cores e sons, de insetos e pássaros, o barulho infernal de gritos e buzinas; ao invés de ar, poluição...
   Morri novamente com o velho casarão; hoje sobraram apenas meu entulho, meus cacos e meu pó; sou rastro de recordação...

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Personalidade do Mês de Setembro

Karl Marx (1818-1883)

   Karl Heinrich Marx foi um intelectual alemão, conhecido por influenciar, com suas idéias, os campos da História, Economia, Filosofia e Teoria Política. Lançou as bases do Comunismo quando, junto com Friedrich Engels, publicou um Manifesto no ano de  1848. É do Manifesto do Partido Comunista o trecho a seguir:

''A burguesia despojou de sua aura todas as atividades até então consideradas com respeito e temor religioso. Transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência, em assalariados por ela remunerados. A burguesia rasgou o véu de emoção e de sentimentalidade das relações familiares e reduziu-as a mera relação monetária.''

  Mesmo não sendo um entusiasta de Marx, acredito que este trecho observa um traço marcante da sociedade atual. Vivemos em um Sistema Capitalista profundamente competitivo e desigual, de sorte que, até mesmo as relações interpessoais, por obra do próprio interesse econômico, são corrompidas de alguma maneira. Bem, não há aí nenhuma novidade. O consumismo desenfreado fomentado pela mídia, incentivado pelo Estado, faz com que as pessoas busquem um ideal de felicidade completamente falso; faz crescer a competitividade e a desigualdade, tal como foi dito. A 'relação monetária' materializou-se na barganha entre pais e filhos; 'o véu de emoção' rasgou-se em função de bens materiais que uma boa educação não pode comprar. Profissões como a do médico e do professor, quando não são desvalorizadas, rendem-se ao favor do capital feito moeda de troca - escolhe-se esta ou aquela profissão em razão de seu retorno financeiro. Ou explora-se a boa fé alheia vendendo-se a cura, o ensinamento e o perdão. E por trás de tudo está o consumo, o consumo da tecnologia, da estética e do entretenimento, proporcionando uma cegueira absoluta diante do lucro absurdo de poucos. O mais desejável, a meu ver, é a instrução - não a que se recebe no colégio, mas cuja busca é individual - e instrução não se come e não se veste. Portanto, de tudo o mais que se pode extrair deste trecho, fica a compreensão de que, se a burguesia expolia o quanto pode é porque nós não tomamos a iniciativa de refrear todo o mal que se inicia no consumismo, seja ele em grande ou pequena escala; compactuamos com o bem-estar sugerido sem perceber que o Sistema está muito mais introjetado em nossas vidas do que imaginamos!

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Zazá Pinga-Fogo

   Lá vem Zazá, descendo a ladeira, para postar-se feito cão fiel na porta do bar e pedir, logo de manhã cedinho, um fiado da 'branquinha'. Começava assim: uma dose pequena de cachaça, alguns copinhos de cerveja, depois de novo a pinga, talvez um vinho e, em dias gordos, conhaque. Ninguém dizia daquela pobre velha que bebesse; e bebia, bebia muito! Tinha boca murcha e o rosto cheio de vincos; uma saia de pregas bem rota, um casaquinho puído de lã, gaforina grisalha, sandálias de couro rasteiras e um chapeuzinho encardido - parecia o diabo quando vinha lépida para tomar a cana. Seus olhinhos pequenos ganhavam algo de vivacidade quando afogueados e rubros de tanto álcool na fuça! Se passava dos sessenta, Zazá não lembrava; mal lembrava do nome e atendia somente pelo apelido - do Pinga-Fogo não gostava, ralhava com toda a gente má que lhe dera essa alcunha.
   Difícil enxotá-la do boteco. Ali ficava até fechar. Cantava, dançava, gritava e insistia em contar passagens de sua vida - falava sem parar. Cuspia de lado, dava uma quebrada e no fim do dia já estava toda urinada. A boca pequena vinha com a de que ''xixi de Zazá faz um carro andar'' e ainda: ''não risquem fósforo perto dela, vai tudo pelos ares!'' - o repertório não tinha fim. Zazá pouco se importava, caía na porta e dormia um sono profundo, esperando pelo dia seguinte para entornar mais.
   Da sua família pouco havia notícia, muito menos de seu passado e o motivo que a fizera entrar nessa vida. Era casada com um velho e não tinha filhos. De vez em quando iam juntos à missa. E quando o padre pedia que erguessem chaves da casa, carro ou carteiras de trabalho para receberem bençãos, Zazá levantava a garrafa: ''aguardente benta é bem melhor!'' - ria um riso podre. Se preparasse comida, colocava umas gotinhas da pinga, fosse no tempero do feijão ou na calda do doce. Cambaleava, cambaleava, tropeçava aqui, tombava ali, pedia mais um gole, fumava um cigarro e fazia um barulho com a boca que assustava toda a gente. O marido a chamava carinhosamente de ''ovelhinha'' porque acordava balindo, pedindo 'mé'!
  Certo dia, Zazá chegou no bar, como de costume, pediu a bebida de hábito, comeu pão com carne assada, fumou uns quatro maços, falou o mais que pôde, gargalhou, rodopiou no batuque improvisado, xingou a mãe de quem passasse e deitou-se na sarjeta por fim. Metade do corpo na calçada, a cabeça pendendo no asfalto - ficou ali por três dias até perceberem que Zazá não levantaria mais...

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Missiva

Caro Lord B***,


   Como estão os ares de Worcestershire? As cousas por aqui andam bem. Aproxima-se a hora de escolhermos a nossa liderança. Sim, ainda que não possamos apontar nosso regente, e que no Senado se ocupe uma nova cadeira quando da morte de algum de seus membros, há eleições indiretas, como bem o sabes, que elegem a representação parlamentar. Não sei que herança maldita nos legou a colônia a ponto de manter na política condição terrível para sua sustentação neste país. Sim, porque ora confunde-se o espaço público com o bem privado. Há um ranço secular que permite que as grandes fortunas prevaleçam, se não com sua própria voz, por via de terceiros. É muito comum ver um fazendeiro casar sua filha com um bacharel para ver-se representado na câmara. Está claro que o bacharel em questão receberá todas as benesses políticas para garantir a fatia do oligarca. A política, portanto, se orienta desta maneira: estabelece-se, com o povo, uma relação de clientelismo, se assim posso chamar, onde toma-se uma medida paliativa em troca do voto. Um chafariz ou uma ruela pavimentada pode comprar três ou quatro cadeiras na Câmara. E, no caso da recusa do voto, há outros tantos meios de persuadir o eleitor: o voto ou a vida. Cada fazenda tem sua pequena guarda. Ela é que é responsável pelo serviço menor: o de dar cabo da vida do infeliz que resolver descumprir uma ordem. Ficaste pasmado? Ora, teu país já viveu dias assim, não? Teus barões não pressionaram o rei para assinar a tal Magna Carta? Nós também temos cá nossos barões que pressionam nosso rei constantemente. Pensando bem, nosso mal não vem da colônia, vem é de tempos mais antigos, pois não? O que se vê aqui é a permanência de um passado que já há muito deveria estar morto. Porém, infelizmente não conseguimos superá-lo. Ou por pusilanimidade do povo ou pela mentalidade imortal que ultrapassa as instituições e prevalece na política, ressuscitando sempre no terceiro dia! Veio o Rei de Portugal, tomou D. Pedro a espada da Independência, virá ainda a República e o fantasma está aí a nos assombrar. E nem é aconselhável chamar um padre para exorcizá-lo. Até os religiosos se imiscuem na promiscuidade política. E eles têm métodos ainda mais persuasivos que os oligarcas. Isto porque a religião é uma instituição milenar e perene. Uma pobre alma não quer ver-se condenada às chamas do inferno. Para não padecer do espírito, acata ao que é dito no púlpito. Que aliança torpe se estabelece! O incauto vota pela força da alma e da arma. Até que ponto, pergunto eu, não temos responsabilidade sobre isso? Eles governam com o nosso consentimento, dentro de um pacto social. E será que o povo estaria preparado para um novo regime? E qual regime seria este? Pode-se substituir um tirano por outro, venha ele de baixo ou de cima. E aí volta tudo como era antes: oligarcas no lugar de oligarcas, bispos no lugar de bispos. Acho que o mal está no gênero humano, sabe? A política será política em qualquer tempo. Sempre haverá quem quer comer mais que os outros. Sempre haverá aquele que, por força da palavra e do estilo, prevalecerá sobre os gênios mais fracos. “O homem é o lobo do homem”, não é mesmo? Melhor seria que caísse fogo e enxofre do céu para exterminar a raça humana. Tão logo estivesse Sodoma destruída, voltaríamos ao estágio de inocência Natural.



Cordiais lembranças,



B. M.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Adalto

   Adalto tinha um boteco famoso na cidade; ficava de esquina com a avenida principal, dando para a praça. Era rotundo, socado e faltavam-lhe alguns dentes; passava dos quarenta e adquirira um papo, ao modo de um homem desleixado. Ficava atrás do balcão engordurado, cortando fatias de carne assada, trajado do mais roto pano, levando consigo a flanela ensebada ao ombro e uma caneta na orelha. Seus fregueses não faziam caso do chão bodoso, dos animais e insetos que circulavam por ali, do cheiro de morrinha. Queriam era beber da 'branquinha' e falar de futebol no mais baixo palavreado. Certa vez, o tal do Abdias, um que comprava batidinhas de amendoim, cismou: -Adalto, você tem que entrar para a política, rapaz! Todo mundo conhece o seu bar nessa cidade! Eu votaria em você! - e o velho franzino falava nisso com os demais que logo fizeram campanha para que ele se candidatasse. No pleito seguinte, Adalto saiu como vereador e ganhou uma cadeirinha na câmara. Passou a usar terno, a pentear o cabelo, a andar de sapatos e a fazer promessas; uma delas vingou: construiu um coreto na praça e mandou fazer um belo churrasco, regado a muita cerveja para comemorar a nova 'conquista do povo'.
   Um professor da cidade, também vereador, achou de criticar Adalto publicamente pelos gastos da obra: havia algo de ilícito, contas que não batiam, cifras muito altas. Misteriosamente, o pobre do rapaz apareceu crivado de balas no matagal perto do rio. Também um jornalista, que resolveu investigar o caso, foi morto no portão de casa. À essas alturas, Adalto reformara o boteco, comprara alguns outros estabelecimentos comerciais, variara os ternos e os sapatos, adquirira um carro novo e arranjara uma mulher. Não era muito bom com as palavras e se enrolava para dizer de onde vinha tanto dinheiro; e garantiu na igreja que temia a Deus. Só não distribuiu santinhos porque lá ninguém acreditava em santo.
   Arranjou emprego para meia dúzia, mandou apagar uma dezena, comprou centenas de lotes e se elegeu deputado na capital. Mudou-se para uma cobertura, contratou motorista, começou a frenquentar festas da alta sociedade e a fumar charutos cubanos; consertou os dentes, tirou um palmo da barriga, engravidou a esposa e negociou em dólar. Chamaram-lhe prevaricador, leviano, néscio e ele sorria pelos termos tão bonitos que a imprensa usava para elogiá-lo. E perto de cada eleição asfaltava uma ruela, encomendava três caixotes de gaze, distribuia dentadura e montava um espetáculo para falar de números. Os filhos estudavam em bons colégios, moravam em condomínio, bebiam somente refrigerante e batiam em prostitutas. Adalto se orgulhava do caráter dos rebentos e pagou para livrar a cara deles em processos de tráfico e estupro.
   Quando quis ser senador, repetia que estava ao lado da religião e do povo, pois democracia é assim: ''mais tem o diabo para dar do que Deus para tirar'' - ninguém entendia o porquê de Adalto inverter assim o ditado - talvez por ignorância - e demonstrando grande eloquência filosófica, concluía que a política era doce, pois dava ''sonho para o povo e bala para a oposição!''
   Uma artéria entupida matou Adalto deitado em berço esplêndido, feito passarinho. Diante do rico mausoléu de mármore, Abdias, o velho franzino, exclamou: -só ele sabia fazer aquela batidinha de amendoim! Descanse em paz, santo homem!

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Personalidade do Mês de Agosto

Henri-Marie Beyle (1783-1842)

   Henri-Marie Beyle passou para os grandes nomes da Literatura Universal como Stendhal. Em seu mais famoso livro, 'O vermelho e o Negro', faz uma análise da sociedade francesa por volta de 1830, contando a história do jovem Julien Sorel e sua amante Louise de Rênal. Os trechos a seguir traduzem parte da crítica feita à política de sua época pelo autor:

''Em meio a uma cidade de 20 mil habitantes, esses homens determinam a opinião pública, e a opinião pública  é terrível em um país que tem sua Constituição. Um homem dotado de uma alma nobre, generosa e que teria sido seu amigo, mas que mora a cem léguas, julga-o de acordo com a opinião pública de sua cidade, a qual é determinada pelos tolos  que o acaso fez nascerem nobres, ricos e comedidos. Ai de quem se distingue!''

''- (...) Eis toda a minha política: amo a música, a pintura; um bom livro é um acontecimento para mim; vou fazer 44 anos. O que me resta na vida? Quinze, vinte, trinta anos, no máximo? Pois bem! Imagino que daqui a trinta anos os ministros  serão um pouco mais hábeis, mas ainda tão honestos quanto os de hoje. A história da Inglaterra me serve de espelho para nosso futuro. Sempre haverá um rei querendo aumentar suas prerrogativas; sempre a ambição de tornar-se deputado; a glória e as centenas de milhares de francos ganhos por Mirabeau impedirão os ricos da província de dormirem: eles chamarão isso de ser liberal e amar o povo. Sempre a cobiça de tornar-se par do reino ou da câmara conduzirá os monarquistas. Dentro da nau do Estado, todo mundo vai querer o comando, que é bem remunerado. Será que nunca vai haver um lugarzinho para o simples passageiro?''

   Caso houvesse escrito seu livro atualmente, as impressões de Stendhal não mudariam muito - a política é a mesma. Os interesses pessoais superam os do bem comum, e para tanto, manipula-se a opinião pública de forma conveniente. Não há mais critério e seriedade; há avacalhação, escárnio, mofa. O político nem termina um mandato e logo o abandona com vistas em outro melhor e mais bem remunerado. Ali tem a chance de valer-se de artifícios, aparentemente benéficos, para ludibriar a população e mantê-la devidamente em seu lugar. O Estado não se compromete em mudar objetivamente a vida das pessoas; distribui esmolas, lava os pés e manda de volta à rua - hoje talvez se adquira uma geladeira com facilidade, mas a que preço? O de manter a malta rapace em seu lugar de sempre; o mesmo que ocupa desde 1808, 1822, 1889, 1930, 1964, 1985? O cidadão passa por todas as instâncias, empurrado pelas supostas leis de igualdade, ocupa cargos subalternos e jamais se pergunta o porquê de dançar este réquiem sinistro que o entretém, enquanto roubam seus pares; o importante é que ele não deixe de votar, obrigado que seja, na Democracia prostituta. 




domingo, 1 de agosto de 2010

Confins

   O capitão John padecia havia dias; o frio e a falta de comida  fizeram mais uma vítima da expedição malfadada. Singrar aqueles mares nunca fora tarefa fácil, ainda mais por serem desconhecidos os horizontes e os perigos que reservavam. O azul mortiço das águas, o branco acinzentado dos céus, as calotas alvejantes; elementos lúgubres da paisagem gélida, mesmo estando em pleno verão. John debatia-se e gritava no torvelinho de estertores ilusórios. Dizia-se vítima do assédio de seres imaginários, de homens que não estavam ali - de pessoas mortas. E o imediato, que resistia às penas desabridas do Polo, teve em seu íntimo a certeza que aproximava-se o momento derradeiro.
   John era um homem de origem pobre e que lograra reconhecimento na marinha inglesa. Não tinha uma compleição muito forte, mas era esguio, de olhos firmes e largas entradas nos dois lados da cabeça. Sua expressão rude e a voz firme o faziam temido. As viagens à costa africana, Índia e Austrália deram-no experiência suficiente e posição tal que permitiram que, em 1847, fosse escolhido para liderar uma expedição aos mares do Norte, objetivando chegar-se ao Pacífico por uma rota pouco convencional: o navio sairia da Inglaterra e percorreira toda a costa russa até alcançar o estreito de Bering. A embarcação partiu no mês de Abril na direção do desconhecido...
   A fraca luz do lampião bruxuleava no camarote do capitão; John não entendia o que poderia ter dado errado. Faltava pouco para o inverno e eles precisavam voltar ou a escuridão profunda os envolveria. A comida e a água ameaçavam escassear; camadas de gelo haviam se desprendido, interpondo-se no caminho, formando obstáculo considerável - estavam presos.
   -Ora, para que preciso deste lume? - Dizia de si para si - está claro e desperdiço azeite inutilmente! É só abrir um pouco mais a escotilha e... - um ar gélido soprou dentro do recinto; a temperatura do lado de fora estava bem abaixo de zero e o capitão de pronto fechou novamente a pequena janela - meu Deus, será que vamos morrer aqui? - perguntava-se tentando moderar seu desespero - sim, em breve todos morreremos! - Lamentou por fim. E não tardou para que sua suspeita se confirmasse: a hipotermia fez sucumbir o drumete, depois outro marinheiro e outro... Até que sobrassem apenas John, o imediato e mais dois homens. Os corpos eram lançados ao mar. Ali boiavam por uns instantes e mergulhavam para a eternidade abissal.
   De pé no convés, mirando as ondas agitadas pelo vento e imaginando como estaria a costa russa mais além naquela neblina, sentiu que não aguentaria por muito tempo. Os ossos estremeciam, sua percepção comprometera-se, suas funções assemelhavam-se a engrenagens de uma máquina que ameaçava encerrar sua atividade langorosa.
   -Capitão! - Gritou o imediato - volte para dentro! Aqui o frio acaba por lhe matar! - John juntou-se aos demais em uma repartição da embarcação. Deram-lhe do rum que restava e ele mordiscou as últimas lascas de peixe seco. Foi quando seus olhos lobrigaram riscos no madeirame: traços apareciam lentamente entre nós e fendas, desenhando figuras estranhas. O terror tomou John de socapa. Levantou subitamente e se pôs a correr pelo barco. Os outros homens foram atrás e o contiveram, levando-no para seu camarote. 
   A febre abateu o capitão e, na dolorosa agonia, só sabia repetir que todos eles o observavam, que não o deixavam, que os rostos nas paredes eram dos tripulantes e que eles estavam ali para testemunhar a sua morte. Ao cabo de uma semana, a escuridão se fez naqueles confins...

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Personalidade do Mês de Julho

Victor-Marie Hugo (1802-1885)

   Victor Hugo foi um escritor francês de influências românticas e realistas, criador do personagem Quasímodo de O Corcunda de Notre-Dame. Uma de suas obras mais famosas é a monumental Os Miseráveis, publicada em 1862, que narra os acontecimentos em torno da Revolução de 1830, constituindo-se em verdadeiro tratado político e sociológico. É dela o trecho a seguir:

   ''Tenhamos compaixão dos castigados. Ai! Quem somos nós mesmo? Quem sou eu, eu que falo a vocês?Quem são vocês, vocês que me escutam? De onde viemos? Há mesmo a certeza de que nada fizemos antes de nascer? A Terra não deixa de ter semelhanças com uma prisão. Quem sabe se o homem não é um castigado pela Justiça Divina?
   Olhem a vida de perto. Ela é feita de tal forma que por toda parte se vê punição.
   Você é daqueles a quem se chama de feliz? Pois bem, você fica triste todos os dias. Cada dia tem sua grande amargura ou sua pequena preocupação. Ontem você temia pela saúde de alguém querido, hoje receia pela própria saúde; amanhã haverá uma preocupação de dinheiro, depois a crítica de um caluniador, a infelicidade de um amigo, mais tarde o tempo que está fazendo, e depois alguma coisa que se quebrou ou se perdeu; e ainda um prazer que a consciência e a coluna vertebral reprovam; e outra vez a marcha dos negócios públicos. Sem contar as penas do coração. E assim sucessivamente. Uma nuvem se dissipa, outra logo se forma. Apenas um dia em cem de plena felicidade e pleno sol. E você faz parte desse pequeno número que é feliz! Quanto aos outros homens, a noite estagnante paira sobre eles.
   Os espíritos reflexivos servem-se pouco destas palavras: os felizes e os infelizes. Neste mundo, vestíbulo de um outro, evidentemente não há felizes.
   A verdadeira divisão humana é esta: os que vivem na luz e os que vivem nas trevas. Diminuir o número dos que vivem nas trevas, aumentar o número dos que vivem na luz, eis o objetivo. É por isso que gritamos: ensino! Ciência! Aprender a ler é iluminar com fogo; cada sílaba soletrada cintila.
   De resto, quem diz luz não diz necessariamente alegria. Também se sofre com a luz; em demasia, queima. A chama é inimiga da asa. Queimar-se sem parar de voar, é esse o prodígio do gênio.
   Mesmo com conhecimento e amor, ainda se sofre. O dia nasce em lágrimas. Os iluminados choram, mesmo que seja apenas sobre os que vivem nas trevas.'' 

   As palavras de Victor Hugo, características de sua época, talvez tenham antecipado questões existencialistas dentro de uma visão global em relação à condição humana. A compreensão da Terra como prisão faz com que o homem seja eterno condenado, submetido a penas e privações, presa de um torvelinho de infelicidade, onde a ignorância é o maior dos castigos. Contudo, ele admite que nem mesmo o conhecimento é sinônimo de alegria - a luz também queima! Ou seja, ter ciência da própria situação é causa de grande sofrimento; ainda assim estágio necessário.  A pergunta primordial sobre o significado da vida fica subentendida, resposta para a qual jamais viremos a ter. Amofinações diárias e preocupações sempiternas não permitem que a felicidade seja plena; alguns experimentarão um momento ao sol, quando muitos nunca lhe divisarão os raios; não há distinção entre felizes e infelizes: a infelicidade é cláusula sine qua non da existência neste planeta.

Perversão

   Quando o inspetor Morin adentrou o recinto daquele pardieiro, em uma noite do ano de 1888, ficou aturdido com a imagem. Nunca em seus anos trabalhando na polícia de Paris  vira algo parecido. Sentiu uma repulsa tamanha e uma ânsia tal que mal pôde se convencer que diante de si havia um ser humano. Levou o lenço à boca, depois secou a fronte e, afastando a impressão inicial, averiguou que quem quer que tenha sido o causador daquilo, fugira pela janela.
   Havia uma certa suspeita acerca dos hábitos de monsieur Jacques; homem alto, belo e proveniente de boa família. Sua postura altiva e austera era salvaguarda para que frequentasse os salões da alta burguesia francesa. Possuía gostos refinados, apreciava bom vinho e dedilhava alguma melodia no piano, além de valsar a gosto de todas as donzelas casadoiras. Contudo, mantinha-se reservado a qualquer proposta ou invasão a seu inviolável reduto. Monsieur Jacques havia herdado ações de um banco e a renda gerada deste lucrativo espólio ia dissipar em mesas de jogo. Ao cair da noite, saía em sua sege até determinado ponto da cidade, e de lá perdia-se a pé nas ruelas de Montmartre. A desconfiança sobre sua prodigalidade surgiu quando um dos sócios percebeu um desfalque. Somado a isso, um misterioso assassinato fez o inspetor Morin ficar no seu encalço.
   Um velho, antigo funcionário de Napoleão III, perdera o pouco que tinha no carteado e fora morto com requintes de crueldade: seu corpo amarrado encontrava-se com diversos talhos feitos à navalha, dos quais o mais extenso e profundo localizava-se no pescoço, quase a dar uma volta completa. O inspetor, chamado a investigar o crime, concluiu que quem matara o velho, o fizera sangrar por um bom tempo até decidir-se por rasgar-lhe a garganta e pôr termo à tortura. Disseram-lhe que um homem alto e bem vestido era o provável autor: - é um tal que aparece quase toda noite, de casaco com gola de pele e luvas de couro. Fuma charutos da melhor qualidade e sempre pede água de Seltz antes do vinho. O velho Ultime devia a ele, deve ter sido ele quem matou! - disse o taverneiro inquirido por Morin. 
-Não duvido que tenha sido ele - afirmou uma prostituta de nome Amalie - esse homem me procurou algumas vezes, pagava bem, mas gostava de coisas estranhas e chegou a me bater quando me neguei a fazer...
-Coisas estranhas? - Perguntou Morin - que coisas estranhas?
-É, pedia que lhe amarrasse e desse tapas, que o fizesse sangrar e... - fez uma pausa - certa vez quis que eu urinasse nele. Quando me neguei a deixar que fizesse tudo aquilo comigo, ele me bateu com a bengala e me ameaçou!
-Meu Deus, isso é abominável!
-Agora ele anda com Pauline. Já avisei a ela, mas, como disse, ele paga bem e Pauline deu de ombros.
-E onde está Pauline agora?
-No quarto que aluga aqui próximo.
-Poderia me levar até lá? - Morin não tinha dúvidas: as descrições davam conta de um homem em tudo igual a monsieur Jacques. Talvez a fortuna o fizesse dar um flagrante e pôr a ferros este tal - era o que esperava ao subir os dois lances de escada do pardieiro onde habitava Pauline.
   Deu dois ligeiros toques na porta e chamou pelo nome da jovem. Silêncio. ''Talvez não esteja em casa'' - pensou. Chamou novamente e o barulho vindo do interior denunciou a presença de alguém. Morin forçou a maçaneta. Um som gutural, um gemido aterrador e um pedido de socorro saído de uma voz sôfrega enregelaram as vértebras do inspetor. Esmurrou a porta a fim de arrombá-la, logrando escancará-la no terceiro golpe. A cena que ora se divisava quase fizera os olhos do inspetor saltarem das órbitas junto ao coração acelerado - um corpo de mulher, banhado em sangue, tendo seus membros arrancados, arrastava-se a muito custo no soalho. Adiante um machado e a janela aberta...
   Monsieur Jacques embarcou para Londres horas depois e nunca mais retornou à Paris.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Quatro Questionamentos Acerca da Sociedade

   Outro dia um amigo falou que em salas especiais do aeroporto, pessoas com grande poder aquisitivo podem ser tratadas distintamente dos que ocupam lugares comuns no avião. Ali recebem total atenção dos funcionários, os quais cuidam para que nada lhes falte. O que espanta verdadeiramente é o fato do reconhecimento de que as malas destas pessoas não podem ser extraviadas de modo algum - de modo algum! Ou seja, compreende-se que os demais passageiros tenham suas malas extraviadas. Quanto a isso a empresa de aviação encontra um meio de contornar. Mas qual explicação daria a uma pessoa muito importante? Qual explicação dar a alguém que tem muito dinheiro e paga por um serviço realmente caro? As malas dos passageiros comuns até se perdem; jamais as de pessoas muito importantes! Daí percebemos que a luta pelos direitos iguais, a luta pela liberdade, a luta pela fraternidade fazem cair antigos tiranos para erigir novos que, em se reorganizando, criam outros métodos de sobreposição e destaque: se antes eram nobres, hoje são empresários?
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   Em Papua Nova Guiné existe uma tribo seminômade aborígene que vive no meio da mata, em casas construídas em cima de árvores. Ali, homens e mulheres andam seminus e tiram seu sustento da floresta e, através de instrumentos bem rústicos, conseguem cortar árvores, fazer fogo, caçar, fabricar farinha - tal como no período Neolítico. A reportagem sobre esta tribo utilizava termos como 'primitivo' e 'civilização', contrapondo culturas evidentemente díspares, repetindo certos vícios do senso comum que não admite, em pleno século XXI, que algo assim ainda exista. Nós, que temos as prerrogativas da civilização, perdemos irremediavelmente essa relação com a Natureza, e portanto somos incapazes de obter fogo e comida se acaso viermos nos perder na mata. Aí eu pergunto: quem é realmente primitivo?  
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   Uma médica me disse que, segundo uma constatação científica, mais da metade das pessoas acima de quarenta anos teria alguma doença crônica e seria dependente de remédios futuramente. O mundo moderno apresenta facilidades e tecnologias que visam melhorar a vida do indivíduo. Por outro lado o escraviza ao ponto de não saber mais se as grandes empresas de fármacos querem realmente que ele se cure... Ou permaneça doente para consumir mais e mais remédios. Será que as constatações científicas estão mesmo com a razão?
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   A histeria da população, sempre irrefletida, consente que o Poder Judiciário cometa excessos, arbitrariedades e, em uníssono com a sociedade, se arvore na condenação prematura e sem cautela. É preciso arranjar um culpado, é preciso dar uma satisfação, contar uma história, calar a todos e saciar a sede por sangue. E com isso velhos conceitos estão ressurgindo: agora se fala que as pessoas nascem criminosas. Um Estado que se diz democrático nunca deveria permitir uma acusação sem elementos concretos: todos são inocentes até que provem o contrário - não é o que diz a Constituição? E se o juiz tiver nascido criminoso também, quem irá julgá-lo?

domingo, 4 de julho de 2010

Impressões Paisagísticas I

Cemitério de Paquetá ao Pôr-do-Sol


   Quando a tarde já ia alta, a barca singrava a passagem entre os pilares da Ponte que, ao modo de garças, com pernas finas e fortes, enfileirados assim, pareciam poder saltar no menor soar de palmas. O vão extenso, no ângulo certo, assemelhava-se a um espaço de várias agulhas, postas umas diante das outras, permitindo ao fio correr folgado e livremente por entre elas. Mal se sabia as águas turvas, douradas pelo Sol daquela hora e agitadas à força do vento. A luz fulgia em raios que desciam pela margem acidentada do Oeste, realçando os pequenos morros de perto e azulando silhuetas de outros mais distantes; e quase encobertos por nuvens diáfanas, furavam-nas e seus braços resplandeciam sobre os montes. Ao fundo, a Serra, quase oculta, porém majestosa em seu contorno gigantesco. E a embarcação, na lentidão de uma tartaruga marinha, balançava por entre navios ancorados e igualmente indolentes - aqui e acolá, cargueiros e petroleiros com suas carcaças robustas de metal. A ilha enfim, verdejando a meio mar, assomou-se à paisagem  após algum tempo de viagem.
   A ilha, mal lembrando um número oito - de extremidades largas e curta no meio - pode-se percorrer em apenas um dia. Ali, visitantes têm o costume de passear em bicicletas e quadriciclos. O porto estava tumultuado de passageiros que chegavam, outros que aguardavam para embarcar, charreteiros, vendedores ambulantes e transeuntes em geral. O cemitério não fica longe dali - atravessando-se algumas ruas de terra batida, ei-lo deitado sobre uma pequena encosta, de muros baixos e entrada franqueada. As inúmeras sepulturas, dispostas nos declives do terreno, em degraus ascendentes, espalhavam-se entre árvores de copas altas, pintadas de branco na raíz. Uma casinha - possivelmente a do zelador - separava a ala destinada aos pássaros; e a capela rústica, no lado oposto, composta de pequeno altar e bancos de pedra para se pôr o esquife, achava-se aberta. A partir do terceiro lance, um caminho de paralelepípedos serpenteava para levar ainda mais alto no terreno, onde havia mais sepulturas e o mato crescido de limite. Poucos túmulos mantinham-se cuidados - azulejos e pastilhas frescos, flores e velas. A maioria estava coberta de limo; uns tinham a tampa quebrada e outros estavam vazios, tomados de terra e vegetação daninha. Apesar da melancolia das cores - verde e marrom acinzentados, bem foscos - o Sol se punha no horizonte, emprestando ao lugar certa vida. Era como se chamasse as almas perdidas para irem com ele - as lápides reluziam o vermelho esmaecido e solene do crepúsculo. O vento fresco ressoava nas folhas e nos galhos em atrito. No mais, era tudo silêncio.
   Fora dali, descendo até a praia, uma via cimentada conduzia ao farol que adentrava a noite fria, o mar bravio e a escuridão. Ouvia-se o marulhar inquieto nas pedras e nos barquinhos sacudidos. Na ponta, um verde luzia do alto de uma torre branca, indicando a entrada na enseada da ilha. Ao sul divisava-se a capital que, junto à outra cidade ao leste, imitavam as estrelas, vistas em maior quantidade dali. A ilha ficava a oeste e, ao norte, apenas um negrume no horizonte. E mais uma vez o vento a soprar tenazmente, interrompendo o sono da Natureza. Na volta, o mesmo quadro, porém, subtraindo-se o Sol, incontáveis lumes, nos barcos e nas margens, afestoavam a paisagem.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Deu Holanda!

   Edmílson era um valdevinos, o maior da paróquia! Um sorrisinho de esguelha e a face cínica, trazia sempre depois de assistir o jogo no bar. E vinha cambaleando, se escorando nas paredes para almoçar em casa. A mulher trabalhava fora; saía bem cedo e só voltava à noite, cansada, a tempo de comer e ir dormir. Edmílson, desempregado, enrolava a pobre dizendo que nada lograva nas extensas caminhadas que fazia a ver se achava trabalho. Em verdade, ficava metade do tempo na galhofa e outra a encoxar a diarista. Neste particular, tinha uma queda pelas mulheres, fosse de que estirpe, origem ou enlevo - rezava em todas as cartilhas, mas defendia um só time! E nem era bonito não; confiava na sua quebrada meio pelintra para enredar as graças de alguma menina, pois era das novinhas que gostava! Daí o fato de não deixar a moça da faxina em paz e ai dela se agachasse para escovar um rodapé. Longe, claro, dos olhos da esposa que pensava ser o marido um homem de bem.
   O entrave era a sogra, velha sabida, que sentia o cheiro de safadeza desde que Ana Maria anunciou o noivado. E implicava o mais que podia com o caráter leviano do genro. Porém, a vida tem desses desencontros e deu à velha mal disso, mal daquilo e a fez cair de langorosa enfermidade em cima do leito. Emagreceu, empalideceu - quase morreu! Quase! Mesmo com a dificuldade para andar, mesmo com as necessidades de um ente convalescido, ela manteve-se firme, de olhos bem abertos para as escapadelas de Edmílson. Vendo assim a mãe doente, Ana Maria instou para que ele aproveitasse o tempo livre e cuidasse da mãe, fazendo mil recomendações para poder trabalhar sossegada.
   As novas atribuições deixaram Edmílson com a gota: dava comida, remédio, levava ao banheiro e limpava: - ''bem que a empregada podia fazer isso'' - pensava. Mas Ana Maria não queria correr riscos de ver sua mãe maltratada: - cuide dela você que é genro! - dizia. Ele tinha razões particulares para sopear seus resmungos: a mulher era dona da casa e o sustentava. Ademais, todo dia cinco, levava a sogra para retirar a pensão no banco - e só por isso o esforço já valia! Se ela acaso engasgasse, dava uns tapinhas de leve no rosto dela: - dona Leonice, não morre, não! O que será de nós? O que será de sua filha sem a senhora? - querendo dizer: - ''o que será da pensão?'' - Sempre sobrava um trocado para a cervejinha ou para o Bicho, além de ser uma ajuda e tanto no orçamento: ela patrocinava o ócio dele.
   Por essa época, vizinhos novos se mudaram para a casa ao lado: um casal jovem e a mãe de meia-idade da moça. Travaram logo amizade e ficaram muito íntimos, a ponto de passarem juntos os feriados religiosos. De vistas compridas naquela moça, Edmílson fez algum malabarismo para impressioná-la. Ela, afetando fidelidade, não deixou que passasse de alguns abraços mais apertados, beijinhos no pescoço e mão atrevida. Entretanto, sua mãe, aquela de meia-idade, viúva e sacudida, assanhou-se e desfazia-se em sorrisinhos e piscadelas ao chegar o Edmílson. E como Ana Maria dispensara a diarista fresca e trocara por uma gorducha cheia de varizes, seu  passatempo era ir encontrar-se na alcova com a tal jovem senhora, quando o casal e sua mulher saíam para o trabalho. Recebia-o aquela com uma lingerie vermelha e o rosto afogueado pelos copinhos de batidinha mentolada - Edmílson se refestelava em suas carnes.
   A sogra percebia tudo e tentava denunciá-lo com voz pastosa e mole. Edmílson afirmava que eram delírios da senilidade e, na companhia da amante, chegou por fim a desejar que a velha morresse: - aquele estafermo está durando! Se vem uma tosse mais funda, penso que é a hora! Nada! Está carcomida, mas resiste! Bem que se ela empacotasse, eu voltaria à minha vidinha mansa; mas sob a patrulha da velha, eu não dou um passo em falso! Ah, eu renunciaria até à pensão e me empregaria! Meu Deus, o que digo? Não vou prometer o que não cumpro! - e riam ele e a outra. 
   Vieram então os jogos da Copa do Mundo e os vizinhos combinaram de ver juntos cada partida do Brasil. E para a festa preparavam comida da boa, tudo regado à muita bebida. Torciam e quando vinha o gol, Edmílson abraçava a vizinha e dava um beliscão disfarçado na mãe. E a sogra, deixada assim para trás, cuidava o Edmílson que não tardava fazer a passagem: - ''mas que não fosse em dia de jogo do Brasil! Tem é graça parar no cemitério na final da Copa!'' - Só que o destino tem aqueles tais desencontros: quando a seleção brasileira foi enfrentar a holandesa, Edmílson, apostando na vitória, empanturrou-se de feijoada, tomou muita cachaça e cerveja; teve um mal súbito e caiu duro. 
   No velório, dona Leonice, apoiada na filha, chegou vagarosamente e abaixando a cabeça, falou perto do ouvido do defundo: - deu Holanda!  

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Intolerância às Avessas

   A sociedade brasileira enveredou por um caminho perigoso; um caminho, talvez, que traga a censura legitimada pela população que inventou de, novamente, eleger o Estado e seus Três Poderes como um Leviatã que realiza a Vingança em nome da Justiça. O senso comum não sabe discernir discriminação de preconceito, crendo serem palavras sinônimas, quando, em verdade, uma depende da outra sem necessariamente ter o mesmo significado. Está certo que uma palavra, de tanto ser repetida com um sentido, acaba por assumi-lo. Todavia, dizer-se livre de preconceitos é mentira! Todos têm preconceitos porque todos fazem pré-julgamentos, seja em situações simples do cotidiano, seja nas mais complexas que envolvem questões étnicas ou mesmo sexuais. Discriminação, apesar de partir de uma atitude preconceituosa, está associada à separação, afastamento, classificação. Quer dizer, é possível ter preconceitos, mas é inadmissível discriminar.
   Porém, considerando novamente o senso comum, interpreta-se qualquer crítica à uma postura ou modo de vida como preconceito sob a prerrogativa da liberdade de expressão. Não importam as vozes dissonantes, não importam as opiniões contrárias! A aceitação é obrigatória em nome da igualdade! E este tal discurso torna-se conveniente à medida que as pessoas passam a valer-se do preconceito como justificativa. Então, é neste momento que o aparelho público entra para punir aqueles que não concordam, aqueles que criticam - a liberdade de um é silenciada em detrimento da do outro. E cria-se uma intolerância às avessas.
   O preconceito jamais deve servir de bandeira e meio de esquivar-se da própria incapacidade. Não há quem não haja sofrido preconceitos, manifestos das mais variadas formas, pelos mais diversos motivos; e não há quem não tenha agido de maneira preconceituosa com alguém. Apesar de ser uma característica lamentável da espécie humana, nunca poderão arrancar da sociedade o juiz que dorme em cada um - isto é ilusão! Devemos combater, sim, a supressão dos direitos legítimos dos cidadãos, através de leis mais abrangentes, cuidando para que se não valham destes mesmos direitos passando por cima dos de seu próximo! Reconhecer as mazelas interiores, saber-se falho seria uma via interessante para melhorar o convívio social. Mas as leis, por vezes, concorrem para que certas máscaras de hipocrisia se sustenham, aumentando a leviandade dos que querem punição, condenação a qualquer preço, sem atentar para a lei em si que, supostamente defendendo o bem-estar social, pode discriminar com a anuência geral. Este é o grande monstro, o grande Leviatã que a sociedade está alimentando!
   Para concluir, antes que alguma mente irrefletida interprete erroneamente estas palavras, este texto não está atirando ao solo combates necessários à garantia de direitos. Ao contrário, observando aqueles que vulgarizam o termo, que o confundem e utilizam de forma egoísta e desmedida, é que o objetivo principal e real do mencionado combate não se perderá. Senão, a liberdade, a verdadeira liberdade vai mal...

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Era Só Um Cachorro!

   Passando um homem na rua, distraído com qualquer coisa, filosofia, cisma ou mesmo bobagem, foi atacado por um cachorro feroz que escapara de uma casa próxima. Sentiu a mandíbula tenaz fechar-se em seu braço direito e os afiados dentes espetarem-lhe a carne. Deu um berro de susto e de dor e quase foi ao chão. Malogradas as tentativas de fazê-lo afastar-se, conseguiu alcançar um pedaço de madeira firme e deu golpes no bicho até partir-lhe o crânio e cair com a boca ensanguentada. Mal se lobrigava a pele rasgada coberta pela massa vermelha, agora misturando-se o seu com o sangue do cachorro. Gemeu, mas ninguém acudiu-o. Ao contrário, ouviu-se apenas uma voz gritando:
-Polícia! Polícia! Alguém chame a polícia! - Uma mulher de meia-idade, dando mostras de nervosismo, sacudia-se para chamar a atenção de um guardinha do outro lado da rua: - polícia! Polícia! - O guardinha correu e, em lá chegando, perguntou o que acontecia: -seu policial, este homem cometeu um assassinato! - os olhos do pobre rapaz se arregalaram jungidos aos do guarda - este homem acaba de matar um cachorro, veja! Eis aí o flagrante!
-Mas minha senhora, ele me mordia, por pouco não arranca meu braço!
-Ora, ora, agora quer fazer-se de vítima? Pois eu vi muito bem que o senhor descia o lenho no infeliz e indefeso animal!
-Sim, porque ele me atacava! Precisava me defender!
-Senhor policial - disse a mulher voltando-se para o guarda - essa criatura que jaz aí morta não tinha compreensão, não entendia a gravidade da situação, mordeu por instinto ou porque foi provocado talvez; este senhor entendia e sabendo-se mais forte, abusou de seu poder, privando o animal da vida! Ele não poderia ter feito isso! Não tem esse direito! Prenda este assassino!
-Assasssino? E se esse cachorro houvesse pulado na minha garganta e perfurado a minha carótida? Eu poderia ter morrido!
-Mas essa é boa! Tentando se justificar com a legítima defesa! Deveria ter pedido ajuda e não tomado tal atitude, meu senhor! E o que dirá a família desse bicho, hein? Sabe-se lá se tinha uma fêmea, se tinha filhotes? E o dono? Vai ficar desconsolado! - A mulher consternava-se.
-Minha senhora - o guarda enfim falou - o que temos aqui não se trata de um homicídio e, afinal, era só um cachorro!
-Como é que é? Bicho também é gente, seu guarda! Bicho também é gente! É por isso que esse país não vai para frente: por causa da impunidade! Esse homem tinha que apodrecer na cadeia! - A mulher estava transtornada - quantos cãezinhos não morrem todo dia atropelados, abandonados, com fome, a mercê de doenças, do frio? Todo dia eu rezo e peço a Deus pelos bichinhos indigentes, dou comida àqueles que encontro pelo caminho e já levei até alguns para minha casa. Mas os homens nunca entendem o sentido da verdadeira caridade...
-Minha senhora, este homem está sangrando e precisa de cuidados... - disse o guarda.
-Pois que morra! Deus que me perdoe, mas será menos um bandido no mundo! - E, abaixando, tomou no colo o cadáver do cão, apertou-o contra o corpo e, choramingando, sussurrou: -oh, coitadinho, não se preocupe, eu vou te dar um enterro digno, acender uma velinha e mandar rezar uma missa para você, viu? E no dia de Finados, colocarei flores no seu túmulo... Coitadinho... - levantando assim, foi embora, falando baixinho como se o animal a pudesse ouvir.