segunda-feira, 31 de maio de 2010

O Bom Cristão

   Pedro Paulo era um bom cristão. Exemplo de homem, nunca foi suscetível aos comentários corruptos e libidinosos que teciam sobre sua pessoa. Amigos lhe ironizavam; mulheres o desejavam. E isso porque mantinha a polidez e a meticulosidade em cada ato. Tudo era pensado de forma a não incorrer em erro - o verdadeiro cristão busca copiar a retidão de caráter! Na sua crença, a índole se formava, não só por sentimentos de amor ao próximo, mas de dever cumprido também. Funcionário exemplar, chegava pontualmente e saía depois do horário; ia direto para casa sem nem mesmo olhar para os lados. Sua mulher o esperava para jantar. Tratava-a com a devida deferência, presenteando-a sempre com um mimo. Suas demonstrações de afeto eram poucas, porém sinceras. Procurava não demonstrar cólera, se irritado, optando pela diplomacia. Sua fala era branda e a compreensão mal lhe cabia. Orava sempre e jamais deixava de ir à igreja cumprir suas obrigações de bom cristão.
   A moeda de César tem duas faces, contudo, e é claro que Pedro Paulo possuía uma dose de exagero. Vestia-se em tons escuros e sóbrios; de terno ou paletó, camisa fechada no pescoço e nos punhos, pernas escondidas nas calças. Obrigava a esposa a se comportar como queria, não permitindo ousadias nos trajes e no vocabulário. Nunca estavam em lugares profanos e em companhia de gente vulgar; evitavam festas e convenções ruidosas. Recolhiam-se cedo após as ladainhas. Não tinham vícios, não liam livros e revistas que não fossem de cunho religioso. Pedro Paulo fazia questão de dar esmolas e envolver-se em eventos caritativos. De maneira que não havia o que se falar dele: nunca o viram em bares e prostíbulos; não o viram jogar ou emprestar a juros; em calças curtas ou mangas de camisa; utilizar palavras de baixo calão ou valer-se de atitudes condenáveis em qualquer situação. Daí o motivo de chacota e inveja, talvez. Pedro Paulo era um santo! Algumas mulheres maldosas tentaram difamar-lhe espalhando que era efeminado por ter-lhes recusado encontros mais íntimos. Pedro Paulo era fiel!
   Soma-se a isso seu gesto estudado: cada palavra, cada movimento. Temia a vigilância do Senhor e as chamas do Inferno. E se havia oportunidade, falava da obra de Deus. Só não podia se valer de um passado inglório de onde a conversão o viesse tirar. Não havia mácula em sua história de vida. E disso se orgulhava intimamente. Antes que perguntem, porque é natural a curiosidade sobre isso, Pedro Paulo não tocava a esposa. Salvo duas vezes, justamente ocasião de nascerem-lhe os filhos, posto que cumpria a finalidade última de procriar. Suas amizades verdadeiras estavam na igreja; os demais colegas e conhecidos o achavam enfadonho - como era possível existir ainda um homem tão casto? Castrado, quem sabe? Riam-se aqueles que dividiam essa opinião. Portanto, apenas os membros da igreja podiam-no entender. E Pedro Paulo evitava assuntos polêmicos, não desejava se aborrecer. Controlava seus instintos primitivos ao paroxismo da beatitude. E se visse um irmão em falta grave, não julgava - perdoava sempre!
    Um dia Pedro Paulo morreu. Estava tomando sopa ao sentir um desconforto, uma dorzinha na cabeça e cair de cara no prato. A mulher desesperou-se; um aneurisma vitimara Pedro Paulo. E quando acordou do outro lado, aturdiu-se sobremaneira: estava no Inferno.
-Mas como pode isso? Eu fui um bom cristão: orava, ia à igreja, cumpria meus deveres, era pontual, fiel, casto, comedido... Como pode? Senhor, por que me abandonaste? - Dizia indignado. No que uma voz cavernosa respondeu:
-Ah, Pedro Paulo, isso aí não valeu de nada! Fizeste tanta coisa e vieste parar no Inferno, e por quê? Porque pecaste em pensamento! É como dizem lá na Terra: por fora bela viola, por dentro pão bolorento! - E o Diabo gargalhou.

domingo, 30 de maio de 2010

Dezessete Facadas

Nota Policial: uma mulher, identificada como Rosimeire Silva, matou seu marido com dezessete facadas enquanto ele preparava um churrasco no quintal. Joílson dos Santos morreu na hora. A polícia prendeu Rosimeire em flagrante.

***

Acusação: - senhora Rosimeire Silva, a senhora matou o senhor Joílson dos Santos?
Ré: - sim!
Acusação: - a senhora sabe quais implicações terá o seu ato?
Ré: - sempre soube, desde o momento que decidi matar Joílson.
Acusação: - a senhora desferiu dezessete facadas em seu marido, matando-o friamente, por quê?
Ré: - Joílson era um homem odioso, merecia morrer!
Acusação: - merecia morrer?
Ré: - sim, merecia! Desde que me juntei com ele, me fazia sofrer muito!
Acusação: - a senhora pode nos relatar o que a fez tomar essa atitude?
Ré: -Joílson era um homem grosseiro, não respeitava ninguém! Bebia muito e ficava violento. Batia em mim e nas minhas filhas... Desde que vim da Bahia passei muita necessidade. Tive três meninas de um primeiro casamento, mas o pai foi embora. Sustentei minhas filhas sozinha. Fazia faxina, cozinhava para fora e só assim quitei o barraco em que a gente mora até hoje. Aí apareceu o Joílson. Motorista de ônibus, ganhava mais ou menos, prometeu ajudar. Coloquei dentro de casa e começou o inferno...
Acusação: -o que a senhora chama de 'inferno'?
Ré: -o senhor sabe o que é trabalhar o dia inteiro para dar dignidade às suas filhas? Tinha que colocar comida na mesa. Sempre disse a elas que não se podia roubar, matar, que a gente não precisa disso! Levava as crianças no culto, elas até faziam a escolinha dominical. O Joílson não respeitava nada. Chegava bêbado, reclamava da comida, me xingava, me batia, batia nas meninas e... Chegou a abusar da mais velha...
Acusação: -a senhora diz que ensina às suas filhas a não roubar, a não matar... Mas a senhora matou!
Ré: - matei, matei e não me arrependo! Meu Deus há de me perdoar. Eu fiz isso no desespero porque não aguentava mais!
Acusação: -e por que não procurou os meios legais?
Ré: -e adianta? A gente procura a Justiça e nada! Cansei de ver gente morrer e ninguém tomar providência! A Justiça não chega para a gente, seu doutor! Passamos fome, sofremos violência e tudo que a gente ganha é discurso bonito dizendo que as coisas vão melhorar. Não melhoram nunca! Então resolvi fazer Justiça eu mesma... Pelas minha filhas!
Acusação: -a senhora não confia na Justiça?
Ré: -não. 
Acusação: -então a senhora não acredita neste Tribunal?
Ré: -não, nenhum homem tem direito de julgar os outros só porque tem mais estudo...
Acusação: -mas o juiz e eu estudamos a lei para poder julgar.
Ré: -só quem pode julgar é Deus! A gente vê aí juiz aos montes recebendo dinheiro para livrar a cara dos outros, e aí quer julgar alguém? E quem deu esse poder a ele? Quem disse que ele pode julgar alguém?
Acusação: -minha senhora, a senhora está ofendendo a lei e este Tribunal. A sociedade foi quem permitiu, é em nome dela que estamos aqui hoje!
Ré: -sociedade? Mas a vida toda ela me olhou torto e disse que eu era nada e agora vem me julgar, seu doutor?
Acusação: -a senhora deu dezessete facadas no seu marido!
Ré: -Joílson falava mal da casa, da comida, me xingava, batia em mim, tinha outras mulheres e maltratava as minhas filhas. Roubava o pouco dinheiro que eu tinha... O senhor queria que eu fizesse o quê? Naquele dia ele preparava um churrasco para os amigos. Bebeu mais uma vez e disse ''você cortou essas carnes errado, sua ordinária! Nunca faz nada direito!Nem se lavar para se deitar comigo, se lava! Assim, nem na zona vão te querer!'' Fiquei com muita raiva, raiva acumulada; fui na cozinha, peguei a faca e enfiei na barriga dele. Aí ele se curvou por causa do ferimento e eu enfiei a faca nas costas dele por mais dezesseis vezes. Pedi muito perdão a Deus, muito! Foi por isso que telefonei para a polícia e me entreguei. Quem foge tem culpa, e eu não tenho culpa. Matei meu marido e sou inocente!
Acusação: -sem mais perguntas, Meritíssimo!



sábado, 29 de maio de 2010

Câmara

   Deixo esta carta àqueles que me derem crédito. Não sou, nem nunca fui homem de gênio facilmente impressionável. Tampouco me rendi à sugestão frívola da época. Se fui atrás do mistério, do mistério que acredito estar por trás de tudo, deve-se unicamente à razão de não me contentar com respostas medíocres e mal fundamentadas. Quando resolvi expor meus objetivos, escarneceram. Não confiavam que, alguém com a minha formação, fosse investigar o credo simplório do senso comum. Mas a verdade é que eu também via e ouvia, não poderia deixar de, ao menos, questionar-me incessantemente sobre a real natureza das coisas. Repito: eu via e ouvia. E os sonhos, meio pelo qual se davam as visões e audições, nunca representaram para mim mera projeção onírica. Mesmo porque, esses sonhos estavam intrinsecamente ligados com a vida real: o que acontecia em um, acontecia no outro. Através deles foi que vi a igreja - primeiramente como vago espectro, depois mais nitidamamente e aí alguém passou a falar comigo: um homem, um homem velho que dizia ter a resposta!
   Por meses a fio tentei entender o significado daquele sonho que, volta e meia,  reprisava feito filme muito mais claro que nas imagens antecedentes. Enfim logrei identificar a igreja: ela existia de fato em uma cidade do interior, conhecida por seus edifícios coloniais. Juntei um dinheiro e viajei até lá. Estranhamente, ao chegar, as casas, as ruas, tudo me pareceu bem familiar. A sensação era a de que já havia estado ali. Mais: havia vivido ali, morado... Morrido. Inadvertidamente, enquanto esquadrinhava o lugar, dei com o velho diante de mim - exatamente o velho, o homem velho de meus sonhos. Antes que eu dissesse qualquer frase, ele proferiu algumas palavras: ''sabia que viria! Precisava encontrar a pessoa certa e achei! Você quer respostas? Esteja hoje à noite atrás daquela igreja'' - apontou para a construção no alto do morro. Não pude conter-me de espanto ao perceber que a igreja, a igreja que ele apontara também coincidia com o sonho! Tremi. Tanto me disseram que se procuramos, invariavelmente achamos, demore o tempo que for. 
   O luar mal atingia o cume do céu. A noite estava quente, mas ventava. Andei até a igreja, contornei-a e parei - mais uma surpresa - no cemitério localizado bem atrás. Tão assustado e, contraditoriamente, tão empolgado estava que nem preocupei-me em inquirir o velho sobre aquilo - ele me ofereceu respostas, foram respostas que sempre busquei. Havia ali uma tumba aberta, com o tampo virado, e o que parecia um foço do qual não se divisava o fundo.
-Essa é a câmara, desça e traga para mim o que encontrar. Eu mesmo não vou lá porque estou bem velho, como vê. Você é jovem, tem braços fortes! - ele possuía muitos vincos na face e sua expressão era bondosa. Fiei-me nele e no mistério prestes a se solucionar - se as coisas se encaixavam assim perfeitamente, por que não confiar? Desci pela corda, presa a um cruzeiro, com a lanterna - sempre carrego uma comigo. As paredes iam escurecendo e a voz do velho ficava cada vez mais longe. Vagarosamente imergi no breu... mais e mais - meu coração acelerava, suava frio, o medo deliberadamente tomou conta de mim. Porém, a determinação foi maior - ''vou obter respostas'' - pensava e isso me movia além. O foço estreitava a ponto de ter minha pele magoada pelas lascas de pedras. De súbito perdi firmeza e a corda sacudiu comigo... Caí e desmaiei. 
   Acordei com dor nos ossos e nos olhos, pela escuridão densa que me cegava. Tentei erguer-me. Tateei e meus dedos tocaram, freneticamente, a rocha fria e o limo. Gritei. O cúbiculo mal permitia que esticasse as pernas - não havia saída, eu estava preso! O pânico me devassou. Tive sede, tiritei, senti as dores aumentarem no corpo encharcado pela água pútrida e rasa daquela câmara. Ao desespero e falta de ar seguiram-se o cansaço e o sono. Entreguei-me finalmente. Apaguei e assim permaneci por horas, talvez dias, sobrevivendo...
   Pesadelos horríveis de morte me perturbavam. Situações que queria esquecer, e outras tantas probabilidades que poderiam ter ocorrido, tomaram forma em meu inconsciente e vieram me assombrar. Vozes, risadas, gemidos somados ao terror da perseguição, ao drama da melancolia e ao cárcere da solidão, compunham um torvelinho de emoções atormentadoras. Um sono, entregue a uma luta corporal entre duas partes minhas, dois eixos que se odiavam mutuamente; tumultuado, mais me exauria. Enfim, meus músculos se retesaram e debateram-se nas águas pútridas, outrora rasas, que agora subiam... Fugiu-me a respiração...
   Despertei do lado de fora com alguém me sacudindo. Eu não estava mais na câmara. Era dia. Disseram-me que a tumba vazia havia sido alagada pela chuva e que caí dentro dela enquanto, provavelmente, pisava no frágil tampo, após invadir o cemitério da igreja abandonada. Ninguém entendeu minhas palavras desencontradas, minha confusão mental. Ninguém entendeu o porquê  de estar ali. Ninguém quis ouvir-me. Encerraram-me nesta Câmara, asseverando minha loucura, de onde dou este breve testemunho, da qual não sairei mais, nunca mais...

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Corpo

    O corpo, nas águas turvas, para lá e para cá. Boiava e balançava nas ondas, subia e descia, imergia... E retornava. O frio lancinante do mar e o vento gélido não eram mais percebidos - o corpo não tinha vida... Misturou-se. Naquele embalo, ora brusco, ora manso, a noite se desfez vagarosamente. Pela manhã, uma vaga volúvel e violenta atirou o corpo longe. E lá ficou, de cara lavada, enfiada na areia; de carnes salgadas, ligeiramente tocadas pela espuma.
   Caso chamassem-lhe Anderson Luiz, não atendia. Agora só atendia por Samantha. Naquela noite enfeitou-se, esticando muito os seus cabelos alisados, tingidos de vermelho; colocou as unhas postiças; maquiou-se, cuidando especialmente do batom; experimentou um vestidinho vulgar - não lhe agradou, logo optando pela calça e pela blusinha justa, trespassada nas costas. Subiu nos saltos e deixou seu minúsculo apartamento alugado na Tonelero. Andava na rua com ares de mulher poderosa, efeminando bem os passos e a voz. Todavia, sua expressão forte e rude ainda era de Anderson, não obstante tomasse hormônios para crescerem-lhe seios. Samantha fazia unhas e programa para sobreviver. O calçadão era seu local de trabalho. E foi lá, quando já passava da meia-noite, que o carro parou.
   O veículo prateado, de vidros fumê, espaçoso e caro seguiu na direção da Zona Oeste. O som potente, o ar condicionado e o banco de couro  impressionavam Samantha. Falava de mil coisas, mas seu cliente mantinha-se calado, limitando cada palavra e terminando com um breve ruído. Fez-lhe carícias, disse qualquer indecência, mordeu-lhe a orelha, querendo instigá-lo debalde. Pararam em uma praia distante, deserta àquela hora. Samantha então perguntou:
-E aí, quem hoje vai mandar na situação?
-Você! - respondeu. No banco de trás, o homem recostou-se e deixou Samantha fazer todo o serviço, muito embora não demonstrasse satisfação. Divagava de olhos perdidos no chão. Talvez estivesse sem coragem, triste, derrotado e entregue. Suspirou profundamente quando Samantha enfim o deixou. Uma vez recompostos, retomou o diálogo:
-Hoje é meu aniversário de casamento...
-Ah é? E onde está a sua esposa?
-Está me esperando em casa. Vamos jantar em família para comemorar; eu, ela e nossa filhinha - falava sem encarar Samantha.
-E quando vai contar a ela?
-Eu... Eu não vou contar.
-Mas você prometeu contar! Você disse que teríamos uma vida a dois, que não ligava para o que dissessem, que sua mulher teria que aceitar! Qual é, cara? Agora vem com essa? Pensa que sou o quê?
-Eu disse! Disse sim! Mas eu sou um médico; estou formando a minha clientela, o meu nome! O que os outros vão pensar? Ninguém vai admitir que eu me relacione com um...
   Samantha abriu a porta. Não quis ouvir mais nada. Correu pela areia até a beira da água. Uma angústia a invadiu - como a vida poderia ser tão cruel? Odiava seu nome, odiava seu corpo, odiava seu destino: seria eternamente 'aquilo'. A pressão que oprimia suas víceras, subiu para a garganta e rebentou em soluços. As lágrimas caíram em um pranto infantil, desprotegido e copioso. Uma brisa eriçou seus pêlos e Samantha respirou fundo para se acalmar. O choro e a tristeza, porém, foram interrompidos de súbito. Tudo ficou preto. O ar faltou - lutou ainda, esforçando-se para se desvencilhar e... Sufocou... O corpo foi jogado nas ondas do mar.  

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Em Defesa dos Vilões


   Em qualquer trama há o protagonista e o antagonista. O protagonista é o que se costuma chamar de 'mocinho', o personagem principal, de quem se espera atos de bondade e retidão de caráter. Por sua vez, o antagonista é o oposto, o vilão, aquele que não mede esforços para alçar seus objetivos, valendo-se sempre de expedientes ilícitos. Todavia, é ele quem movimenta a trama, sem o qual não haveria história. Enquanto o protagonista encarna todas as qualidades, conquistando a simpatia e o apoio dos outros personagens e do próprio público, o antagonista é a materialização dos sentimentos malévolos, baixos e reprováveis presentes em cada ser. Seus motivos para praticar o mal são diversos: vingança,  cobiça, desejo  pelo poder... E são esses sentimentos que o tornam verdadeiro. Ele tem a função de realizar na fantasia o que não temos coragem e não podemos fazer na vida real. Os vilões são livres para fazer e falar o que querem: xingam, desprezam, pisoteiam, mentem, roubam... Matam! Reiterando o que disse, assumem o lado sombrio existente em todos. Tornam-se símbolos de inteligência, sensualidade e sarcasmo. E dentro da ficção, de um modo geral, são eles eternizados, passando a fazer parte da memória coletiva - perguntem-se quantos personagens bons ainda são lembrados.
   Um dos vilões que merecem destaque é Scar, o leão que tenta matar o irmão e o sobrinho em 'O Rei Leão'. O desenho, com influências Shakespeareanas a meu ver, refinou um dilema tão antigo quanto o homem: a disputa pelo poder. E Scar é cruel: solta as patas de Mufasa, quando este está prestes a cair, dizendo ''longa vida ao rei!''  Simba sobrevive e Scar tem sua punição no final. Aliás, como na maioria das obras de ficção,  o autor deve entregar a cabeça do antagonista aos espectadores - não sem terem tido seus sentimentos convulsionados antes. Outro vilão interessante é Flora, personagem de uma novela veiculada no horário das 21h. Se novela é uma obra respeitável, não discuto. Flora era complexa: queria tudo que sua rival possuía. Mais: queria desesperadamente ser Donatela. Sua inveja e aparente inferioridade foram combustível de várias atrocidades cometidas, despertando, enfim, comiseração sobre sua condição. Sua questão era puramente psicológica: estava presa a uma fantasia psicótica. Falando nisso, Hannibal Lecter rouba a cena em 'O Silêncio dos Inocentes'. Frio e obstinado, de extrema  capacidade intelectual e de persuasão, ajuda Clarice a descobrir o assassino através de um jogo calculado para seu divertimento. Um homem insensível que desperta admiração e uma quase empatia, mesmo sendo um sociopata. Não poderia deixar de mencionar também o Coringa, famoso por ser, talvez, o maior vilão dos quadrinhos. De atitudes alucinadas, risada inconfundível, Coringa é um agente do caos, um louco desprovido de senso e fraquezas diretas que o condenem. A lista de vilões interessantes é imensa!
   Não se trata de fazer-se aqui uma apologia à torpeza, à desumanidade. Trata-se, tão somente, de verificar que a vida em si não nos traz um final feliz, uma solução mágica para nossas demandas, uma resposta cabível aos nossos questionamentos. Trata-se de observar que todos os homens não estão imunes à leviandade, ao julgamento alheio e à culpa. Diante disso, 'mocinhos' sorridentes, generosos, puros a bem dizer, são irreais ou surreais. A raiva, a cobiça, o abandono, a dor, a vontade, a indiferença presentes no cotidiano permitem que personagens instigadores de medo e de rancor que, bem lá no fundinho, fazem que nos identifiquemos de alguma maneira, pareçam genuínos. Vilões com inclinações tão legítimas e que aludem à nossa luta diária contra o mal existente do outro lado da linha e que quase nos convence a ultrapassá-la. Vilões que representam a Natureza Humana.


Imagem: A Aranha Sorridente (1891) - Odilon Redon.
















terça-feira, 25 de maio de 2010

Silmara

   O caminhão parou no estacionamento do posto, onde também havia um restaurante e um hotel. Antes que o motorista tivesse tempo de desligar o rádio, uma voz feminina chamou por ele: era uma mulher de saltos plataforma, sainha, bustiê de oncinha e bolsa de paetês. Ofereceu companhia a preço módico. O homem, alto e corpulento, rotundo, de roupa ensebada, rude em fisionomia e em caráter, levou a moça para o quartinho do hotel. Lá eles ficaram pelo resto da tarde e início da noite.
    Silmara era feia. Antes de sair, pintou as unhas de roxo, penteou os cabelos ondulados, tintos de louro - as raízes já ficando escuras; escolheu o batom vermelho e borrifou um perfume barato no pescoço. Sorriu um sorriso de cara larga e chata, com lábios finos e dentes tortos diante do espelho. Colocou a sandalinha de salto e a meia-calça rosa por cima dos pêlos descoloridos da perna magra. Os seios quase perdiam-se no bustiê de tão pequenos. Pegou a bolsa, acendeu um cigarro e saiu com cinquenta contos no porta-níqueis. Já havia perdido dois ou três programas quando viu aquele caminhão estacionar na beira da estrada. E antes de entrar no quartinho, deixou cair na poça a ponta do cigarro de bordas rubras.
   Depois de possuí-la feito animal, caiu a dormir um sono pesado, ressonando alto. Silmara banhou-se com sabão de coco e ficou parada ali, com olhos de admiração por aquele homem: esparramado na cama, de pança enorme, os pêlos crespos descendo-lhe do peito até o umbigo e o cheiro azedo das carnes - em algum momento ele deixou escapar uma palavra de afeto, algo como ''meu amor'', fora que a tratou melhor que os demais. Isso foi o suficiente para Silmara encantar-se pelo desconhecido que ora dormitava diante dela. Deitou-se, por fim, ao lado dele, sentindo o odor - que para ela era bálsamo - e se pôs a imaginar uma vida a dois. Pensava no casamento, nos filhos, na casinha que teriam... Tudo bem, ainda que não conseguisse nada disso, queria apenas viajar junto dele para conhecer o Rio de Janeiro e sair do 'nada' onde vivia. E assim acabou dormindo também.
    Ao despertar, não o viu mais. Viu somente três notinhas de dez reais embaixo de uma pequena Bíblia. ''Um dia'' - disse de si para si -''um dia o verei de novo. Ele deve voltar nesse posto, é caminhoneiro, viaja muito... Deve voltar nesse posto''. E esperou. Todos os dias, Silmara circulava pelos paralelepípedos, entre os veículos de grande e pequeno porte; pelas bombas de gasolina; no salão do restaurante... E procurava 'seu caminhoneiro' nos homens que ali passavam. Até mesmo quando estava com as mãos no vidro do carro, de costas para um cliente qualquer, fechava os olhos e fingia que era 'seu caminhoneiro' que a amava. Bastou o bendito desconhecido tropeçar nas palavras, trocar 'vagabunda' por 'meu amor' para Silmara sonhar que ele seria o homem de sua vida - o único homem que, por um instante, a tratara com dignidade. Nem seu pai, nem seus irmãos... Foi expulsa, banida do lar e obrigada a se prostituir para comer. Pela primeira vez Silmara sentia o coraçãozinho alegre, fazendo-a respirar fundo e repetir várias vezes ''aquilo é passado, agora será diferente!'' - Silmara enfim teve espaço para toda quimera; Silmara teve vontade!
   No terceiro ano de espera incessante, de paixão contida, de fantasia, de angústia que só o amante tem se está distante do ser amado, Silmara reconheceu a buzina do caminhão, daquele mesmo caminhão. Se de fato era o caminhão, não se sabe - quem espera por seu amor, ouve-lhe  a voz no vento. Era noite, Silmara correu, fez sinal, de braços levantados e as luzes dos faróis a envolveram. O motorista não percebeu. Apenas sentiu uma leve trepidação nas rodas como se houvesse atropelado um bicho.
   Silmara não foi capa de revista; Silmara não foi premiada; Silmara só tinha a quarta série; Silmara não assumiu nenhum cargo de importância nem era dona de fábrica; Silmara não era filha, irmã ou mãe. Mas Silmara era gente. Silmara não viu a morte, foi tudo muito rápido. Hoje há uma cruz no local e nela está escrito ''Ciumara''...

Ato I - Cena 5

Duas atrizes vestem-se com roupas de mulheres nobres do século XVIII, em seu camarim, para a peça que vão apresentar.

Atriz1(em pé colocando a anágua e o espartilho): -ai, as mulheres do século dezoito sofriam com esses espartilhos.Ainda bem que não precisamos mais deles.

Atriz2 (sentada, se maquiando): -nós continuamos sofrendo como elas, minha querida! Com essa sociedade hipócrita em que nós vivemos!

Atriz1: -ih, o que houve para você estar assim revoltada?

Atriz2: -ah, liga não, eu é que ando injuriada com uns negócios aí.

Atriz1: -aconteceu alguma coisa?

Atriz2: -foi meu caso que me largou...

Atriz1: -o deputado?

Atriz2: -ele mesmo. Sabe como é, estão se aproximando as eleições e ele vai sair deputado pelo estado de Minas. Acha que o nosso caso pode ser um prato cheio para a oposição. Ainda me disse que se eu arranjasse filho, me obrigaria a abortar!

Atriz1: -nossa!

Atriz2: -pois é. Eu abortaria mesmo. Não porque ele me obrigasse, mas porque não tenho um tostão para dar de comer à criança. Iria colocar filho no mundo para passar fome? Com o pai não daria para contar... E o pior é que ele estava na missa outro dia, comungou e até tomou a benção do bispo!

Atriz1: -ah, não diga uma coisa dessas, aborto é pecado!

Atriz2: -ih, minha filha, deixa disso! Isso de gravidez ser dádiva divina é balela! As pessoas têm um encontro íntimo para ter filho, sabia? Fazem sexo! E isso não tem nada de divino! É apenas algo natural, um dispositivo que a Natureza criou para perpetuar a espécie!

Atriz1: -você não precisa me explicar como se faz para ter filho, viu? Eu sei muito bem! A Natureza é coisa de Deus, foi Ele quem criou!

Atriz2: -pode até ser, mas isso de que é proibido tal e qual coisa, não foi Ele que criou, não! Tem muita gente aí dizendo o que Deus quer e o que não quer! Como é que sabem? Por que Deus fala com eles e não fala comigo? 

Atriz1: -está escrito na Bíblia!

Atriz2 (rindo): -minha querida, a Bíblia foi escrita há centenas de anos! Você acha mesmo que esse livro, depois de tanto tempo, não sofreu alguma modificação? Você entende a língua da Bíblia para saber o que está escrito lá no original? Mataram gente pra caramba por causa de religião! E são justamente esses que vão lá beijar a mão do bispo, deixando para trás mulheres como eu!

Atriz1: -você há de convir que a religião serve de regra para muita gente. E, no início, a força da lei vinha dela. Imagina só o que seria sem religião? Sem o medo do julgamento de Deus? Você lembra do Amintas, aquele que caía de bêbado pelas esquinas? Pois é, outro dia ele apareceu todo arrumado, bem diferente do que era, com outra cara. Ele se converteu e se tornou um novo homem! O que você me diz?

Atriz2: -tudo bem, isso eu reconheço. Eu não reconheço homens como o deputado que se dizem tão católicos, mas à tarde vão bater cabeça na macumba, pedindo para as entidades fecharem o corpo! Tinha um medo danado dos desafetos! A religião é boa por diversos fatores, mas não deveria dar pitaco em política! Quando essas duas se misturam, viram o Diabo!

Atriz1: -e o que o Diabo tem a ver com isso?

Atriz2: -tem que uma coisa não deveria se misturar com a outra! O que vale dos preceitos religiosos ninguém cumpre! Todas as pessoas julgam seu próximo e não olham para si. Tudo bem, que julguem! Eu julgo também, todo mundo julga! Agora, as pessoas deveriam assumir seus erros, suas fraquezas, reconhecer que julgam a despeito de serem podres por dentro! O deputado levou a filhinha dele em uma clínica clandestina para tirar um filho... A garota, com dezessete anos, havia engravidado do filho de um empregado! Precisava ver o desespero dele! E aí eu pergunto: por que não legalizam logo essa droga de aborto? Deus não tem nada com isso... Fico imaginando, com tanto problema no mundo... Enfim...

Atriz1: -você pode me ajudar com esse espartilho?

Atriz2: -claro! (levanta-se e vai ajudar a amiga) É tanta pressão (apertanto o espartilho) que uma hora a gente sufoca (apertando muito), mais e mais e parece que vai explodir!

Atriz1: -calma, assim você me deixa sem ar!

Ouve-se o sinal anunciando que faltam cinco minutos para a apresentação.

Atriz1: -depressa, me ajuda com essa roupa!

Atriz2: -tenho certeza que será uma belíssima representação!

Fim da Cena 5

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Diálogo Expresso

-Oi.
-Oi.
-Bem?
-Sim!
-Hum.
-Você?
-Também!
-Bom!
-Novidades?
-Não.
-Idem.
-Chato.
-É.
-Calor.
-Muito.
-Chove?
-Provável...
-Tomara!
-Refresca...
-Sabe?
-Hum.
-Dói.
-Quê?
-Cabeça.
-Durma.
-Melhora?
-Melhora.
-Boa!
-Funciona.
-Contigo?
-Sempre!
-Ah...
-Esqueci.
-Quê?
-Laurinha?
-Esperando.
-Grávida?
-Sim!
-Parabéns!
-Obrigado.
-Menina?
-Menino.
-Nome?
-João.
-Bonito.
-Você?
-Solteiro.
-Júlia?
-Brigamos.
-Pena.
-É.
-Desculpe.
-Nada.
-Trabalho?
-Promovido!
-Parabéns!
-Obrigado!
-Faz?
-Gerência.
-Bom!
-Muito!
-Janta?
-Onde?
-Casa.
-Sua?
-É.
-Quando?
-Amanhã.
-Horas?
-Nove.
-Claro!
-Vou.
-Já?
-Já.
-Levarei.
-Quê?
-Vinho.
-Certo.
-Até!
-Até!

Sobre Bombas e Refrescos

A tarde estava abafada, mas, àquela hora, inopinada brisa percorreu toda a Confeitaria. Um homem, finamente trajado, mordia com vontade o doce que tinha nas mãos:
-Que tal essa bomba de chocolate? - Perguntou o amigo diante dele.
-Uma maravilha, comeria dez dessas... Até me empanturrar!
-Não digas isso, assim tu enjoarias de vez!
-Qual nada! Adoro bomba de chocolate!
-Está certo.
-Aceita um pedaço?
-Agradeço, mas prefiro esse refresco e a suave brisa que agora sopra...
-Não sabes o que perde!
-Talvez não, me bastam o refresco e a brisa para aliviarem o calor.
-O que seria do homem sem bombas de chocolate? - o homem lambia os dedos.
-Há muitos que sequer conhecem-lhe o sabor!
-Verdade... Infelizes...
-É, infelizes. E a felicidade está na bomba ou no refresco?
-Como assim?
-O refresco alivia o calor. A bomba te proporciona um prazer momentâneo...
-Desculpe, não estou entendendo.
-Eu quero dizer que o refresco serve para aliviar o calor que é sofrimento em uma tarde abafada como essa. A bomba é um luxo supérfluo, uma felicidade momentânea. O alívio do sofrimento é mais desejável que o luxo supérfluo, não acha?
-Tu e tuas idéias, continuo sem entender!
-Há pessoas que acreditam um dia poder encontrar a felicidade plena. Para elas uma bomba pode ser o suficiente e aí querem comer logo dez! A bomba, porém, é efêmera! E quando acabar, vai provocar uma tristeza ainda maior.
-Então não devo comer bombas?
-Deves - respondeu o amigo rindo - sabendo que não será eterna! E que não adianta comprar dez. Porém, o mais desejável é que buscasses o alívio real para o sofrimento!
-Meu caro, não sofro de modo algum.
-Não sofres agora, mas já sofreste, ou um dia sofrerás - disse tomando um gole do refresco.
-Pode ser, ainda hoje perdi um relógio de bolso. Ganhei do meu pai... Era de família...
-E decerto isso o amofinou.
-Sim...
-E aí procuraste esquecer a pequena perda aqui nesta confeitaria.
-De certa forma...
-Isso muda pouco a minha filosofia. Tu vieste buscar alívio para o sofrimento. Contudo, de forma irrefletida. Veja: quando se busca o alívio do sofrimento, sabe que ele não será eterno. Quando o objetivo é fazê-lo simplesmente desaparecer, não se espera que ele retorne. Todavia, ele retorna. E retornará sempre! Portanto, é melhor tomar o refresco consciente de que acabará do que comer uma bomba pensando em outras dez, pouco importando se teu dinheiro não basta ou talvez não haja bombas suficientes para teu prazer. Por isso a tristeza parecerá ainda maior depois!
-O sofrimento retornará...
-Sempre! Não há ser que não sofra e que faça cessar o sofrimento de vez. A felicidade sempiterna é impossível. Alguma coisa faltará que não permita seres completo! Um ser pode dizer-se feliz momentâneamente; incompleto estará, porém.
-Somos todos infelizes, então?
-Não necessariamente. Contudo, não experimentamos a verdadeira felicidade.
-E jamais experimentaremos?
-Não sei. Acredito que há pessoas que se sentem felizes plenamente. Geralmente, são as que não têm razão o bastante para entender a realidade. Sua inconsciência as torna cegas. Isso até pode ser desejável: sofre-se menos quando se ignora a dor!
-Tu poderias me dar um exemplo?
-Vamos a um extremo: alguém que não tenha a mão direita. Pode casar-se, enriquecer, ter uma bela casa... Só que nunca terá a mão novamente. E essa passa a ser a razão de sua felicidade. Ele ilude-se afirmando para si que, diante de tudo, a mão não faz falta. Em verdade, ele se sentiria mais feliz com a mão e chega a desejar trocar tudo por ela! Ele é incompleto, não pela falta da mão, mas por não poder possuir aquilo que tanto quer! E os seres humanos sempre querem mais!
-Eu quero o meu relógio de volta...
-Não te bastam as bombas?
-Não, percebi que as bombas não trarão o relógio de volta...
-Atitude pueril, mas exata! Algo te serás negado na vida, ninguém pode ter tudo e estamos longe de nos contentarmos com o que temos! Mente aquele que se diz pleno, reafirmo. Viver é doloroso!
-Podes me informar as horas?
-Claro! São três e meia...
-Tenho que ir.
-Ah, eu também. Acabou o refresco... Vou ter que enfrentar o calor da rua!

Continua...

domingo, 23 de maio de 2010

Hospital - parte II

   Um quarto minguante dominava a noite fresca e estrelada. Os muros altos e as copas das árvores ocultavam no escuro o edifício. Havia movimentação de carros entrando e saindo do pátio, porquanto fosse utilizado como estacionamento. Pessoas circulavam e luzes, vindas de todos os lados, iluminavam bem a parte da frente. Apenas as janelas, as inúmeras janelas fechavam-se para o mundo como olhos mortos. Preparamos o equipamento - lanternas, duas câmeras, gravador de voz, máquina fotográfica; subimos as escadas do saguão e entramos: uma outra dimensão, um outro tempo - as paredes, o piso, as portas... Tudo existia à revelia, sem mácula, mas com a tristeza do que foi um dia e já não é mais!
   Iniciamos a investigação examinando cada cômodo. As trevas, contudo, não reinavam absolutas. Alguns trechos recebiam as nesgas luminosas que vinham do exterior; e as vozes, provindas de vários apartamentos dos prédios circundantes, chegavam. Mexemos no passado e com o pobre morcego que revoava tranquilamente, crendo que naquele território não haveria mais interferência do homem. Em determinados lugares, o medidor de energia magnética apitou... Na Hemoterapia e no quarto 413; um suposto vulto apareceu - nada além de mentes impressionadas. No terraço, o telhado banhado de lua, a torre da igreja ao longe e as estrelas...
   O pendor da visita foi válido por ter sentido os ares poéticos e lúgubres, de paz e de melancolia dos corredores, dos passos que morreram ali, dos sorrisos de esperança e das lágrimas de despedida. Elementos eternizados sob os telhados, os mesmos telhados que vi banhados de lua. O hospital é um imenso sepulcro... Sem fantasmas...

sábado, 22 de maio de 2010

Grávida Virgem

   Viagens de ônibus, em regiões próximas a grandes cidades, é motivo de risco ou amofinação. Mas também podem ser engraçadas e bem curiosas. Dia desses, uma senhora veio puxar assunto comigo. Um rostinho pequeno e cheio de vincos, algumas sacolas e apenas dois dentes na boca murcha. Parecia ter quase oitenta, apesar dos seus sessenta e seis. Iniciou um palavrório para achincalhar as ex-patroas e depois fez questão de me contar o histórico do terreno que ela comprou. E com detalhes, quase de quantos passos foram dados para registrá-lo - podem imaginar a confusão? O terreno foi obtido das mãos de uma mulher que não era a dona e queria aplicar um golpe, aí tiveram que entrar na justiça e blá, blá, blá... Tudo dito com a veemência de dois dentes - ah, não sabem como dois dentinhos podem ser veementes. Eles fazem aumentar a carga dramática da situação, agravam a tristeza e a penúria, comovem. Dois dentinhos na gengivona vermelha, um do lado do outro na boca que mexia sem parar - a velha falava! Falava e xingava - eita, velha desbocada! Fico pensando se ela não fosse cristã como afirmava. As almas das patroas não podiam descansar: ''aquela vagabunda'', ''a desgraçada'', ''a filha da...''
   O ônibus havia alcançado a orla, eu aproximava-me do meu destino e ela, por fim, me saiu com uma história muito estranha: 
-Eu casei com meu marido em 69. Na época, eu trabalhava numa casa onde tinha que servir três vezes a janta porque moravam dez pessoas lá. Eu saía às dez da noite e ia namorar. Aí, meu filho, às dez da noite, com tudo escuro, eu ia fazer o que, né? Fui expulsa da igreja e minha mãe não aceitava. Então eu casei grávida e virgem! Casei virgem do meu primeiro filho...
   Não consegui entender até hoje. Ou ela inventou um novo método de concepção ou eu estava diante de algum ser divino... Quando levantei para saltar, ela me fez uma última recomendação:
-Está vendo, meu filho? Cuidado quando for namorar - e riu mostrando novamente as gengivas e os dois dentes, apertando bem a carinha murcha. Velha danada!

   Agora chega! Gastei vela com mau defunto! Passemos à outra!

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Hospital - parte I

   A tarde estava nebulosa e o sol fazia algum esforço para sair. A chuva ocasional serviu somente para invadir o ar com odor de terra molhada. A razão de estar ali fora um convite recebido na semana anterior: visitar um hospital abandonado onde, supostamente, ocorrem manifestações paranormais. A construção impressiona pelo tamanho e estilo - um complexo erguido em 1912, conservando ainda hoje a estrutura da época. De fato estava tudo preservado: as janelas, as portas, a escadaria do saguão, o vitral na passagem para a segunda ala. Insisti  em precipitar a visita e  fazer um reconhecimento do local antes que se realizasse o trabalho experimental que visa, tão somente, captar as tais manifestações.
   Alguns podem achar demasiado excêntrico e mesmo tétrico. Mas o fato é que esse tipo de investigação vai além de invocações pueris e brincadeiras mesquinhas. Não há como convencer as pessoas da legitimidade do trabalho - e nem é essa a intenção. Estando aí a prova, acredita quem quiser! No mais, a história tem valor de ficção. Portanto, prossiguemos...
   Reservo o direito de não dar qualquer indicação de qual seja o lugar. Ele existe, é o que importa saber! Subi as escadas reparando no mármore dos degraus e nas pastilhas do piso que entremeia um lance e outro. No segundo pavimento, passei à investigação de cada ambiente: portas e janelas de duas bandas, pé direito alto e camas à manivela - em um trecho, há sulcos nas paredes e basculantes semelhantes a escotilhas; elementos de composição do espaço que não sofreu modificações ao longo do tempo. A única adaptação aparente foi a instalação de elevadores e tubos que abasteciam os quartos com oxigênio; fora isso, nem mesmo os banheiros eram adequados para receber pacientes com dificuldades de locomoção. O hospital, verdadeiramente, jamais poderia atender as demandas atuais naquelas condições. Talvez haja falido... 
   As paredes estão mofadas, os pisos, estufados, há reboco caindo e, em alguns pontos, a vegetação invade cômodos e áreas comuns. Apenas o centro cirúrgico mantém o cheiro característico, fazendo deste setor o mais sombrio, único a inspirar real temor. Todavia, nada foi visto, ouvido ou sentido.
   Em casa, tentei desesperadamente refazer a visita em memória. Eu tinha as recordações desconexas como peças de quebra-cabeça... Não consegui montá-lo. Fui dormir esperando ansiosamente voltar.

Continua...


Mau Prosador?

É de difícil entendimento o título que me precede, não te parece? Ah, a mim parece: sou prosador se mau? Sou mau se prosador? Ora, que diabos é essa prosa? Mau prosador ou um prosador mau? Não sei, confesso. Só sei que bom eu não sou. Em estilo e em conduta. Ah, os jogos de palavra... Querem dizer tudo, porém não dizem nada! E por isso mudo logo de assunto, pois perde-se demasiado tempo em questionamentos inúteis e o leitor contemporâneo tem pressa! Portanto, valendo-se da  pena de meu querido Brás Cubas, começo do fim, começo pela morte. Não pela minha, claro, porque estou vivo e não psicografo. Mas pela dos outros... Não, não sou uma pessoa mórbida, nem desejo que ninguém se vá antes da hora. Acredito apenas que a morte seja um recomeço. E como este espaço já foi um e agora é outro, é como se escrevesse do além.  Deixemos essa letra morta e passemos ao que interessa: resolvi enfim publicar aqui, e para tanto deixarei parte de meu credo e fantasia... Para vosso deleite! Podem elogiar e também criticar! Contanto que o façam! A falta de opinião própria  e sincera é o fantasma do gênero humano. Em um mundo onde ser bom é esforço de quem é mau, pretendo ser original e continuar mau... Mau Prosador!