terça-feira, 25 de maio de 2010

Silmara

   O caminhão parou no estacionamento do posto, onde também havia um restaurante e um hotel. Antes que o motorista tivesse tempo de desligar o rádio, uma voz feminina chamou por ele: era uma mulher de saltos plataforma, sainha, bustiê de oncinha e bolsa de paetês. Ofereceu companhia a preço módico. O homem, alto e corpulento, rotundo, de roupa ensebada, rude em fisionomia e em caráter, levou a moça para o quartinho do hotel. Lá eles ficaram pelo resto da tarde e início da noite.
    Silmara era feia. Antes de sair, pintou as unhas de roxo, penteou os cabelos ondulados, tintos de louro - as raízes já ficando escuras; escolheu o batom vermelho e borrifou um perfume barato no pescoço. Sorriu um sorriso de cara larga e chata, com lábios finos e dentes tortos diante do espelho. Colocou a sandalinha de salto e a meia-calça rosa por cima dos pêlos descoloridos da perna magra. Os seios quase perdiam-se no bustiê de tão pequenos. Pegou a bolsa, acendeu um cigarro e saiu com cinquenta contos no porta-níqueis. Já havia perdido dois ou três programas quando viu aquele caminhão estacionar na beira da estrada. E antes de entrar no quartinho, deixou cair na poça a ponta do cigarro de bordas rubras.
   Depois de possuí-la feito animal, caiu a dormir um sono pesado, ressonando alto. Silmara banhou-se com sabão de coco e ficou parada ali, com olhos de admiração por aquele homem: esparramado na cama, de pança enorme, os pêlos crespos descendo-lhe do peito até o umbigo e o cheiro azedo das carnes - em algum momento ele deixou escapar uma palavra de afeto, algo como ''meu amor'', fora que a tratou melhor que os demais. Isso foi o suficiente para Silmara encantar-se pelo desconhecido que ora dormitava diante dela. Deitou-se, por fim, ao lado dele, sentindo o odor - que para ela era bálsamo - e se pôs a imaginar uma vida a dois. Pensava no casamento, nos filhos, na casinha que teriam... Tudo bem, ainda que não conseguisse nada disso, queria apenas viajar junto dele para conhecer o Rio de Janeiro e sair do 'nada' onde vivia. E assim acabou dormindo também.
    Ao despertar, não o viu mais. Viu somente três notinhas de dez reais embaixo de uma pequena Bíblia. ''Um dia'' - disse de si para si -''um dia o verei de novo. Ele deve voltar nesse posto, é caminhoneiro, viaja muito... Deve voltar nesse posto''. E esperou. Todos os dias, Silmara circulava pelos paralelepípedos, entre os veículos de grande e pequeno porte; pelas bombas de gasolina; no salão do restaurante... E procurava 'seu caminhoneiro' nos homens que ali passavam. Até mesmo quando estava com as mãos no vidro do carro, de costas para um cliente qualquer, fechava os olhos e fingia que era 'seu caminhoneiro' que a amava. Bastou o bendito desconhecido tropeçar nas palavras, trocar 'vagabunda' por 'meu amor' para Silmara sonhar que ele seria o homem de sua vida - o único homem que, por um instante, a tratara com dignidade. Nem seu pai, nem seus irmãos... Foi expulsa, banida do lar e obrigada a se prostituir para comer. Pela primeira vez Silmara sentia o coraçãozinho alegre, fazendo-a respirar fundo e repetir várias vezes ''aquilo é passado, agora será diferente!'' - Silmara enfim teve espaço para toda quimera; Silmara teve vontade!
   No terceiro ano de espera incessante, de paixão contida, de fantasia, de angústia que só o amante tem se está distante do ser amado, Silmara reconheceu a buzina do caminhão, daquele mesmo caminhão. Se de fato era o caminhão, não se sabe - quem espera por seu amor, ouve-lhe  a voz no vento. Era noite, Silmara correu, fez sinal, de braços levantados e as luzes dos faróis a envolveram. O motorista não percebeu. Apenas sentiu uma leve trepidação nas rodas como se houvesse atropelado um bicho.
   Silmara não foi capa de revista; Silmara não foi premiada; Silmara só tinha a quarta série; Silmara não assumiu nenhum cargo de importância nem era dona de fábrica; Silmara não era filha, irmã ou mãe. Mas Silmara era gente. Silmara não viu a morte, foi tudo muito rápido. Hoje há uma cruz no local e nela está escrito ''Ciumara''...

4 comentários:

rafael rossi disse...

Muito bom, Maurício, forte e realista. É importante retratar a vida como ela é também e não digo só numa obra realista. Eu estava reparando outro dia nas pinturas de Van Gogh e pensei como que ele enxergava a vida comum, simples, sofrida e triste que povoa o mundo, retratando os trabalhadores e seus rostos sofridos, as flores mortas, e eu gostei muito disso nesse seu texto. Posta ele lá na minha comunidade. É livre. Só não gostei das aspas no nada. O politicamente correto não combina com um texto tão verdadeiro e honesto. Deixe que critiquem. Qualquer coisa, você só retratou a realidad enuna e crua, como a maioria das pessoas vivencia e vê, mesmo que não admita publicamente porque é feio.

R-E-N-A-T-O disse...

Depois de ler essa até fiquei deprimido.

Gabrielle Violet disse...

Me lembrou muito a personagem Macabéa em 'a hora da estrela',da nosa grande e saudosa clarice lispector!

Gabrielle Violet disse...

Me lembrou muito a personagem Macabéa em 'a hora da estrela',da nossa grande e saudosa clarice lispector!