quinta-feira, 27 de maio de 2010

Corpo

    O corpo, nas águas turvas, para lá e para cá. Boiava e balançava nas ondas, subia e descia, imergia... E retornava. O frio lancinante do mar e o vento gélido não eram mais percebidos - o corpo não tinha vida... Misturou-se. Naquele embalo, ora brusco, ora manso, a noite se desfez vagarosamente. Pela manhã, uma vaga volúvel e violenta atirou o corpo longe. E lá ficou, de cara lavada, enfiada na areia; de carnes salgadas, ligeiramente tocadas pela espuma.
   Caso chamassem-lhe Anderson Luiz, não atendia. Agora só atendia por Samantha. Naquela noite enfeitou-se, esticando muito os seus cabelos alisados, tingidos de vermelho; colocou as unhas postiças; maquiou-se, cuidando especialmente do batom; experimentou um vestidinho vulgar - não lhe agradou, logo optando pela calça e pela blusinha justa, trespassada nas costas. Subiu nos saltos e deixou seu minúsculo apartamento alugado na Tonelero. Andava na rua com ares de mulher poderosa, efeminando bem os passos e a voz. Todavia, sua expressão forte e rude ainda era de Anderson, não obstante tomasse hormônios para crescerem-lhe seios. Samantha fazia unhas e programa para sobreviver. O calçadão era seu local de trabalho. E foi lá, quando já passava da meia-noite, que o carro parou.
   O veículo prateado, de vidros fumê, espaçoso e caro seguiu na direção da Zona Oeste. O som potente, o ar condicionado e o banco de couro  impressionavam Samantha. Falava de mil coisas, mas seu cliente mantinha-se calado, limitando cada palavra e terminando com um breve ruído. Fez-lhe carícias, disse qualquer indecência, mordeu-lhe a orelha, querendo instigá-lo debalde. Pararam em uma praia distante, deserta àquela hora. Samantha então perguntou:
-E aí, quem hoje vai mandar na situação?
-Você! - respondeu. No banco de trás, o homem recostou-se e deixou Samantha fazer todo o serviço, muito embora não demonstrasse satisfação. Divagava de olhos perdidos no chão. Talvez estivesse sem coragem, triste, derrotado e entregue. Suspirou profundamente quando Samantha enfim o deixou. Uma vez recompostos, retomou o diálogo:
-Hoje é meu aniversário de casamento...
-Ah é? E onde está a sua esposa?
-Está me esperando em casa. Vamos jantar em família para comemorar; eu, ela e nossa filhinha - falava sem encarar Samantha.
-E quando vai contar a ela?
-Eu... Eu não vou contar.
-Mas você prometeu contar! Você disse que teríamos uma vida a dois, que não ligava para o que dissessem, que sua mulher teria que aceitar! Qual é, cara? Agora vem com essa? Pensa que sou o quê?
-Eu disse! Disse sim! Mas eu sou um médico; estou formando a minha clientela, o meu nome! O que os outros vão pensar? Ninguém vai admitir que eu me relacione com um...
   Samantha abriu a porta. Não quis ouvir mais nada. Correu pela areia até a beira da água. Uma angústia a invadiu - como a vida poderia ser tão cruel? Odiava seu nome, odiava seu corpo, odiava seu destino: seria eternamente 'aquilo'. A pressão que oprimia suas víceras, subiu para a garganta e rebentou em soluços. As lágrimas caíram em um pranto infantil, desprotegido e copioso. Uma brisa eriçou seus pêlos e Samantha respirou fundo para se acalmar. O choro e a tristeza, porém, foram interrompidos de súbito. Tudo ficou preto. O ar faltou - lutou ainda, esforçando-se para se desvencilhar e... Sufocou... O corpo foi jogado nas ondas do mar.