sábado, 29 de maio de 2010

Câmara

   Deixo esta carta àqueles que me derem crédito. Não sou, nem nunca fui homem de gênio facilmente impressionável. Tampouco me rendi à sugestão frívola da época. Se fui atrás do mistério, do mistério que acredito estar por trás de tudo, deve-se unicamente à razão de não me contentar com respostas medíocres e mal fundamentadas. Quando resolvi expor meus objetivos, escarneceram. Não confiavam que, alguém com a minha formação, fosse investigar o credo simplório do senso comum. Mas a verdade é que eu também via e ouvia, não poderia deixar de, ao menos, questionar-me incessantemente sobre a real natureza das coisas. Repito: eu via e ouvia. E os sonhos, meio pelo qual se davam as visões e audições, nunca representaram para mim mera projeção onírica. Mesmo porque, esses sonhos estavam intrinsecamente ligados com a vida real: o que acontecia em um, acontecia no outro. Através deles foi que vi a igreja - primeiramente como vago espectro, depois mais nitidamamente e aí alguém passou a falar comigo: um homem, um homem velho que dizia ter a resposta!
   Por meses a fio tentei entender o significado daquele sonho que, volta e meia,  reprisava feito filme muito mais claro que nas imagens antecedentes. Enfim logrei identificar a igreja: ela existia de fato em uma cidade do interior, conhecida por seus edifícios coloniais. Juntei um dinheiro e viajei até lá. Estranhamente, ao chegar, as casas, as ruas, tudo me pareceu bem familiar. A sensação era a de que já havia estado ali. Mais: havia vivido ali, morado... Morrido. Inadvertidamente, enquanto esquadrinhava o lugar, dei com o velho diante de mim - exatamente o velho, o homem velho de meus sonhos. Antes que eu dissesse qualquer frase, ele proferiu algumas palavras: ''sabia que viria! Precisava encontrar a pessoa certa e achei! Você quer respostas? Esteja hoje à noite atrás daquela igreja'' - apontou para a construção no alto do morro. Não pude conter-me de espanto ao perceber que a igreja, a igreja que ele apontara também coincidia com o sonho! Tremi. Tanto me disseram que se procuramos, invariavelmente achamos, demore o tempo que for. 
   O luar mal atingia o cume do céu. A noite estava quente, mas ventava. Andei até a igreja, contornei-a e parei - mais uma surpresa - no cemitério localizado bem atrás. Tão assustado e, contraditoriamente, tão empolgado estava que nem preocupei-me em inquirir o velho sobre aquilo - ele me ofereceu respostas, foram respostas que sempre busquei. Havia ali uma tumba aberta, com o tampo virado, e o que parecia um foço do qual não se divisava o fundo.
-Essa é a câmara, desça e traga para mim o que encontrar. Eu mesmo não vou lá porque estou bem velho, como vê. Você é jovem, tem braços fortes! - ele possuía muitos vincos na face e sua expressão era bondosa. Fiei-me nele e no mistério prestes a se solucionar - se as coisas se encaixavam assim perfeitamente, por que não confiar? Desci pela corda, presa a um cruzeiro, com a lanterna - sempre carrego uma comigo. As paredes iam escurecendo e a voz do velho ficava cada vez mais longe. Vagarosamente imergi no breu... mais e mais - meu coração acelerava, suava frio, o medo deliberadamente tomou conta de mim. Porém, a determinação foi maior - ''vou obter respostas'' - pensava e isso me movia além. O foço estreitava a ponto de ter minha pele magoada pelas lascas de pedras. De súbito perdi firmeza e a corda sacudiu comigo... Caí e desmaiei. 
   Acordei com dor nos ossos e nos olhos, pela escuridão densa que me cegava. Tentei erguer-me. Tateei e meus dedos tocaram, freneticamente, a rocha fria e o limo. Gritei. O cúbiculo mal permitia que esticasse as pernas - não havia saída, eu estava preso! O pânico me devassou. Tive sede, tiritei, senti as dores aumentarem no corpo encharcado pela água pútrida e rasa daquela câmara. Ao desespero e falta de ar seguiram-se o cansaço e o sono. Entreguei-me finalmente. Apaguei e assim permaneci por horas, talvez dias, sobrevivendo...
   Pesadelos horríveis de morte me perturbavam. Situações que queria esquecer, e outras tantas probabilidades que poderiam ter ocorrido, tomaram forma em meu inconsciente e vieram me assombrar. Vozes, risadas, gemidos somados ao terror da perseguição, ao drama da melancolia e ao cárcere da solidão, compunham um torvelinho de emoções atormentadoras. Um sono, entregue a uma luta corporal entre duas partes minhas, dois eixos que se odiavam mutuamente; tumultuado, mais me exauria. Enfim, meus músculos se retesaram e debateram-se nas águas pútridas, outrora rasas, que agora subiam... Fugiu-me a respiração...
   Despertei do lado de fora com alguém me sacudindo. Eu não estava mais na câmara. Era dia. Disseram-me que a tumba vazia havia sido alagada pela chuva e que caí dentro dela enquanto, provavelmente, pisava no frágil tampo, após invadir o cemitério da igreja abandonada. Ninguém entendeu minhas palavras desencontradas, minha confusão mental. Ninguém entendeu o porquê  de estar ali. Ninguém quis ouvir-me. Encerraram-me nesta Câmara, asseverando minha loucura, de onde dou este breve testemunho, da qual não sairei mais, nunca mais...

2 comentários:

Anna Cecilia disse...

Eu fico lendo os seus textos e digo para mim mesma: como ele tem talento! Não é que eu te inveje, mas realmente admiro essa sua forma de escrever. Os textos são bem escritos e extremamente interessantes!
Na boa escreve um livro! Eu com certeza iria comprar!!!
PARABÉNS!

Leoncio disse...

Mais uma história de sonhos, para somar com essa sua tão bem executada. A que eu resumo aqui foi contada pelo Borges usando como fonte o livro d'As Mil e uma noites:

Contam que na cidade do Cairo existiu um homem muito rico, que gastou toda a herança deixada pelo seu pai até que só lhe sobrasse sua casa, tendo inclusive que trabalhar muito para mantê-la. Certo dia, muito cansado, dormiu debaixo da figueira no seu quintal, perto da fonte e sonhou com um homem gordo que retirando uma moeda de ouro da boca lhe disse que sua fortuna estava na cidade de Isfahan na Pérsia.

O homem então viajou por mares bravios e desertos, enfrentou a fome, o perigo e o frio para alcançar a cidade do sonho. Chegando lá dormiu em um pátio de uma Mesquita e foi confundido com um ladrão, apanhou muito do capitão da guarda e acabou encarcerado. Na prisão ele contou sua história ao capitão, e este zombou do prisioneiro: "Homem desatinado e ingênuo! Três vezes sonhei que havia um tesouro enterrado em um quintal no Cairo, debaixo de uma fonte, perto de um figueira e não dei o menor crédito a essa mentira, e tu, filho de um demônio com uma mula cruzou meio mundo por causa de um sonho! Vai-te daqui e nunca mais apareça nesta cidade."

O homem então voltou ao Cairo e achou de baixo de sua fonte (como dizia no sonho do capitão) o tesouro e o desenterrou.

"Assim Deus o abençoou e o recompensou e o exaltou. Deus é o Generoso, o Oculto."

Acredite nos sonhos.