domingo, 24 de outubro de 2010

Personalidade do Mês de Outubro

Howard Phillips Lovecraft (1890-1937)

   H. P. Lovecraft é um autor não muito conhecido no Brasil, pois ainda são poucas as traduções das suas obras aqui. Nascido nos Estados Unidos, em meio a uma família com histórico de problemas mentais, experimentou algum reconhecimento durante a vida e morreu precocemente aos 46 anos de idade. Sua Literatura de terror e ficção científica versava sempre sobre um mal ancestral, monstros abissais, pesadelos e neste imaginário estão incluídos os mitos de Cthulhu, o Necromonicon - livro escrito por um árabe louco de nome Abdul Alhazred; a cidade de Arkham - supostamente localizada no Condado de Essex, em Massachusetts; e sua Universidade de Miskatonic. É possível encontrar referências à obra de Lovecraft na história de Conan, cujo autor era seu amigo, e no popular desenho do Batman com seu Arkham Asylum.  Retirei apenas uma frase de 'A Sombra de Innsmouth', que é fundamental para entendê-lo e a qualquer outro autor:

'Onde acaba a loucura e onde começa a realidade?'

   Para mim, essa é uma pergunta fundamental. Eu diria mais: estrutural. Onde acaba a loucura? Onde começa a realidade? De que modo a loucura se faz necessária para um artista? É possível que a arte possa ser integralmente sã? Quando um autor escreve, quando um pintor pinta, quando um músico compõe, tudo que há em seu interior se faz representar em forma de sons, cores e palavras. Por isso o tema e a forma  precisam se combinar originalmente, de maneira a retratar o que o artista traz consigo. Cópias, arremedos, objetos desconhecidos, vias mercadológicas são tudo o que uma boa obra não precisa; é preciso, sim, que o criador se deixe levar por sua loucura, não permitindo que as exigências do meio interfiram e encarcerem a sua arte - ou então teremos o lixo cultural que vem sendo produzido apenas para comercialização, mas sem introduzir questionamentos caros à humanidade.  Lovecraft deu voz à sua loucura, escreveu sobre seus medos, seus pesadelos - suas imagens, por vezes, são aterradoras; e está aí o valor de sua Literatura. E esta loucura é tão somente um descanso da realidade, é o vôo da alma, dos pensamentos, é a vivência de outra verdade, uma verdade personalista onde tudo é possível - inclusive ser louco!

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Repúdio às Eleições

   Meu voto não irá para o Serra, tampouco para a Dilma. Acho trágico que só tenhamos duas opções e ter que escolher 'dos males, o menor'. Escolho votar nulo; não porque acredite em uma possível obrigatoriedade de convocação de novas eleições, mas por não querer compactuar com essa política canhestra que vem se constituindo. Para mim, é impossível não ver uma herança nefasta dos tempos do coronelismo, com novos trajes evidentemente, mantendo, entretanto, uma característica paternalista perniciosa que ajuda a erigir certos personagens, supostos baluartes da igualdade e da Democracia. Dizer de um governo, outrora chamado socialista, que se ajustou perfeitamente ao Sistema, que não promoveu rupturas, que incentiva o consumo, que transforma seus assistidos em estatística; dizer deste governo que é de esquerda? Um governo que se rendeu à governabilidade, que fez alianças com figuras obscuras, que distribuiu rendas e abriu postos de trabalho, sem que isso concorresse efetivamente para a igualdade social, porquanto igualdade social só exista na liberdade de escolha e oportunidades - e não é isso que vejo na vida de pessoas para as quais está destinada apenas uma frente de trabalho; que mais contribuiu aos bolsos do empresariado, que joga moedas no gazofiláceo com obras faraônicas, que explora a boa-fé do povo através de uma barganha imoral. E não me venham dizer que tais e tais coisas eram necessárias momentaneamente para resolver o problema. A política no Brasil é feita assim: o maquiavelismo do Estado faz o bem em conta-gotas para aparecer, para poder colocar em um painel bem grande e dizer que o país está mudando! O problema de fato é postergado infinitamente. Ora, há quanto tempo se fala em revolucionar a Educação e a Saúde? Será que nesses anos todos não foi possível? Ou será que revolucionar a Educação e a Saúde demora muito mais que um mandato? Melhores são as medidas imediatistas, não? Elas se convertem em voto facilmente!
   Eu voto nulo; voto nulo porque quero uma alternativa, quero um novo nome, um novo partido, uma nova cara! Não desejo um revesamento de apenas dois partidos no poder, mal comparando com a época da Arena e do MDB. Não desejo qualquer partido que reivindique para si o efeito da opinião pública e que censure; que trate a política e a sua própria posição como se assasse carnes em seu quintal, enchendo a boca para dizer que é um ato de cidadania que o povo roa os ossos que se lhe dê. Lamentável é ver tanta gente defender os avanços, as conquistas, as lutas... Continuo vendo violência, miséria, indigência, hospitais em ruínas, professores ganhando salários irrisórios... O Brasil vai continuar mudando na sua marcha progressiva que acabará em tempos de igualdade absoluta... Realmente, acho que é caso de embriaguez coletiva. Dilma e Serra são farinha do mesmo saco! Ao meu turno, prefiro sair de Alice no País da Democracia Consolidada - mas não voto na Rainha de Copas!

domingo, 17 de outubro de 2010

Conto Erótico

   Este conto tem a única função de demonstrar o quanto estamos presos à nossa condição animal. Para longe de ser puro ato de amor, o sexo, acima de tudo, é uma necessidade orgânica manifesta através do corpo. Ninguém pode sentir prazer físico com a alma - talvez os demagogos sintam -, ninguém busca o sexo simplesmente por amor. Ou não justificariam a sua precisão como sendo intrínseca a um relacionamento conjugal desejável. A nossa mente tenta racionalizar buscando uma explicação favorável aos sentimentos altruístas que comandariam o desejo sexual. Pois eu discordo veementemente: o amor até pode conduzi-lo, mas não guia a vontade primordial. Não somos tão animais como quando estamos copulando; não há meio mais legítimo e natural para se preservar a vida; não há energia maior na Natureza - a energia sexual é criadora! Não quero dizer com isso que abandonemos nossa razão em virtude da promiscuidade irrefreada, pois ainda somos seres racionais e sabemos o mal que advém dos excessos. Talvez o que ora diga não seja novidade. Então passemos ao conto. Caso queira, pule a história, que tem apenas função preliminar, e vá logo para a ação - mas não anseie em demasia para não terminar antes do tempo!
***
   Geisilane não era uma mulher muito bonita, mas possuía formas admiráveis que chamavam a atenção no bairro. Andava metida em roupas curtas e decotadas, justas em seu corpo e, no alto da plataforma, que muito mal disfarça sua baixa estatura, saía às compras na feira. Era dona de casa dedicada ao marido e ao filho pequeno. Lavava, passava, cozinhava, varria os cômodos e o quintal e só parava na hora da novela. Seu marido dormia durante quase todo o dia, pois pegava no seu táxi pela madrugada. Era quando a solidão devassava Geisilane. Recostada no sofá, assistindo algum filme ruim, pensava que pouco tempo havia para sua distração e, quando havia, passava por algo sem graça - ainda mais porque dormia sozinha e nunca saía com seu marido. Pior: ele a deixara de procurar. A diferença de idade entre os dois talvez fosse um agravante. Ela era bem jovem ainda e ele quase batia nos cinquenta. Quando não trabalhava ou dormia, ele bebia muito e ficava imprestável. Fatigada, questionou-se pelo fato de ter optado por aquela vida ingrata, posto que a envelhecera precocemente - muito cedo fora mãe, muito cedo teve responsabilidades, muito cedo pensou em divorciar-se. Não obstante, Geisilane mantinha a boa forma e a vaidade próprias da juventude: maquiava-se, perfumava-se, tingia os cabelos de castanho, pintava as unhas de vermelho e tentava seduzir o pobre marido indiferente. Noites e noites transcorreram assim.
   Certa vez, pouco passava das onze, seu marido havia acabado de sair, quando Geisilane ouviu a campainha - quem poderia ser àquela hora? Foi até o portão a saber da visita inesperada. Era o vizinho, o Jorge, quem batia e vinha pedir para encher um balde de água porque faltara em sua casa. Pediu mil desculpas e Geisilane o fez entrar. Enquanto esteve agachado diante da torneira do quintal, a moça reparou bem no rapaz e perguntou-se umas três vezes porque nunca houvera reparado nele antes: alto, de tez morena, braços bem torneados, cabelos e olhos negros, pêlos encrespados no peito. Sentiu algo diferente e o coração acelerou, deixando-a resfolegante.
   Ao terminar, Geisilane o convidou para um café e, após muita insistência da parte dela, Jorge aceitou. Jamais passara pela cabeça dela trair seu esposo. Mas ali, naquele momento, sucumbiu a um desejo que imediatamente a fez ver aquele homem, com quem vivia, de forma drástica e pouco indulgente. Certificou-se que o filho dormia, depois sentou-se perto do rapaz que sorvia a bebida quente, praticamente o obrigando a reparar nela: um vestido lilás e transparente denunciavam seus seios; seus cabelos úmidos e sua pele recendiam a leite de rosas; seus lábios carnudos clamavam por tocarem-lhes. E tal foi como tudo se deu:

   Ela puxou-lhe pela camisa e beijou-lhe com vontade escorregando suas mãos pelo tronco até a parte interior de suas pernas Jorge apertou os seios volumosos e Geisilane desabotoava-lhe os botões em seguida ele tirou-lhe o vestido pela cabeça e lambeu seus mamilos descendo pela barriga para arrancar sua calcinha com os dentes mordeu as nádegas chupou-lhe o grelo fazendo-a gemer alto depois foi a vez dela Geisilane passou a língua no peito trilhando o caminho formado pelos pêlos que terminavam no membro já rijo de Jorge engoliu o mais que pôde lambuzando de saliva Jorge a ergueu pelos braços virando-a de costas para penetrar fundo naquelas carnes ela primeiro apoiou as mãos na mesa sentando-se nela após quando enfim decidiram mudar de posição abriu as pernas e pôde encará-lo a expressão feroz o suor a força que  desprendiam o clamor tudo era prazer para ambos por fim Geisilane exclamou goza dentro foi quando sentiu um jorro quente na vulva dando o urro derradeiro
   Geisilane tornou-se uma mulher mais afável e compreensiva com o marido e se resignou com suas noites solitárias.  Entretanto, muito embora não passasse de um encontro, jamais esquecera Jorge.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Liberdade Ainda que Tardia

   Aquela era a saída, não havia outra. Uma noite na cadeia já é o suficiente para penitenciar-se de todo o mal. Um cubículo gradeado e imundo, o calor insuportável, o espaço dividido com tantos outros elementos e a privacidade suprimida. Uma noite é o curto tempo para o arrependimento ou para o ódio. Além dos muros altos estava a vida em seu esplendor de felicidade. Ali, porém, restavam as faces carcomidas, as pupilas mortiças e os sorrisos mordazes; restavam a desconfiança, o desmazelo e o terror da promessa de esquecimento aliado à raiva do abandono. Os ânimos jungidos feito massa, fermentando no exíguo espaço mofado, infestado de insetos e tresandando a esgoto e transpiração. Quem ainda possuía fé, rezava; outros reclamavam e cismavam com seus vizinhos. Os únicos alimentos eram incerteza e a inquietação sempiterna da inconformidade - a morte espreitava em cada sombra. Dormiam entrelaçados no chão duro, banhavam-se em água fria, comiam lavagem e satisfaziam as necessidades do corpo diante de todos. As baratas, como se dizia, tinham mais liberdade. 
   Arnaldo habitava uma cela não muito diferente. Sofria a distância dos filhos e amargava a culpa de um tiro desferido por ciúme. Perdera a conta de quantos dias haviam passado - um minuto valia pela eternidade. Tinha quarenta e poucos, mas a dor o fizera parecer bem mais. Seus cabelos grisalhos, o rosto cheio de vincos, as unhas escuras, as mãos grossas, a roupa rota, os pés descalços formavam uma triste figura, contraste absoluto do homem que dormia entre os lençóis de uma cama macia, logo após um banho morno, tendo anteriormente admirado sua vitalidade no espelho - ria da lembrança de outrora e furtivamente caía-lhe uma lágrima desabrida.
   Um tímido raio de sol, filtrado pelas grades da janela, acordou-lhe em certa manhã e com ele vieram as nesgas de esperança: um de seus companheiros era criminoso temido cujos comparsas se esforçaram por cavar um túnel que alcançasse a cela; tudo fora acertado: fugiriam ele e os demais durante a noite. Arnaldo experimentou alegria renovada e mal podia esperar para respirar ar puro, andar na rua, beber água limpa e abraçar seus rebentos. Permitiu-se sorrir um sorriso franco e acreditar novamente em Deus. Conforme o combinado, seria o último a passar pelo buraco, coisa com a qual pouco se importava, porquanto quisesse tão somente sair dali. Assim foi: quando a madrugada já ia alta, os presos começaram sua travessia - um por um desceu; os ossos de Arnaldo tornaram-se trêmulos, o coração acelerou, teve medo. Lembrou-se tardiamente da claustrofobia e se viu incapaz de prosseguir. ''É preciso ir, seus filhos estão esperando... Deus há de ajudar!'' - Tal pensamento lhe emprestou alguma força. Enfiou os braços, a cabeça e foi deslizando pelo túnel, falando alto, de si para si:
   -Meu Deus, eu vou conseguir... Meus filhos, estou chegando, me esperem, papai está chegando! Liberdade, ah! Nem acredito... Eu paguei tudo que devia, se Deus mandou isso é porque não tem mais nada... Estava aqui somente por causa da Lúcia, aquela safada! Nem lembro quantos anos peguei... Dez? Não sei, não importa... Agora estou livre, livre! - Tinha pressa, mas o túnel era bem pequeno; seu tronco, braços e pernas ficaram embebidos em sangue, arranhados pelas lascas de pedra que rasgavam sua roupa - estou quase lá, quase! - Inopinadamente, seu corpo entalou. Encontrava-se esticado e não podia mover-se adiante, tampouco baixar as mãos. Debateu-se no intuito de soltar-se, machucando mais a sua pele, tentando avançar ou retroceder debalde; gritou por ajuda - ninguém ouviu. Algum sopro de vento fresco veio do fim... Ironicamente, a saída estava bem próxima. Os outros presos ganharam a rua e desapareceram na noite. Arnaldo padeceu até que parte da passagem cedeu, sufocando-o com areia... Livre estava, enfim.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O Fantasma do Velho Casarão

   A Natureza não é mais a mesma. Onde se ouvia o canto dos pássaros nas tardes outonais, ou admirava-se o sol poente com suas franjas douradas; onde se podia ver o verde das copas, deitar-se ao relento e deleitar-se com a brisa noturna; hoje há um muro alto e cinza a tapar as vistas; há uma espiga retangular, sem cor, fazendo sombra, arranhando o céu; o ar não é mais puro e já não corre o riacho que secou. Mal se enxerga o firmamento...
   Minha casa ficava naquela esquina. Era grande; possuía uns janelões, uns beirais quase artesanais e uma roseira perto do portãozinho de ferro; nos fundos, árvores frondosas e uma coleção de insetos, pássaros e um sem número de animaizinhos multicores. Nasci em meio àquela aquarela de sons e cores vivazes; debaixo de um dossel finíssimo, sob os cuidados de uma parteira... Sim, digo da minha casa que tivesse sons e cores porque a vida vinha do jardim e misturava-se às teclas do piano, às louças e talheres prateados, ao romance das moçoilas e sisudez dos cavalheiros; aos quadros, enfim, de imaginação que compunham histórias, fazendo personagens reais interagirem com fictícios até cochilar na marquesa da sala...
   Ali cresci, tomei minhas primeiras lições, beijei os lábios incautos de minha adorada, dancei, sorri e li a obra de minha existência; ali chorei, me escondi, envolvi-me em lençóis de seda, senti o cheiro da madeira e vi a chama diáfana apargar-se segundos antes da escuridão; admirei-me das estrelas e da imensidão do Universo; Ali chamei por Deus...
   Quando morri, em um crepúsculo do início do século, não pude abandonar aquela casa, a casa em que vivi todas as minhas vidas. Assisti meus filhos tomarem rumo e meus netos tornarem-se homens. Os móveis mudaram de lugar; algumas toalhas ficaram rotas; o piso foi devorado por cupins. O tempo fez o seu trabalho de oxidar metais, amarelar papéis e esfriar emoções... Ainda assim não abandonei aquele lar; participei de todas as histórias alegres e tristes que ali se desenrolavam como em um teatro, ora me angustiando, ora gargalhando: as gerações que nasciam, um que se suicidava, outro que agonizava; a prosperidade de um primo, a desgraça de um tio; o riso solto e as lágrimas copiosas...  
   Um dia, porém, um tataraneto resolveu vender a casa. Não conseguia viver entre paredes cediças, entre vultos de um passado familiar. Tinha sede de novidade, de modernidade e de esquecimento. Abandonou seu pai, seu avô, seu bisavô e a mim, pois aquela casa não era mais feita somente de tijolos - era feita de sentimentos, de lembranças inesgotáveis, de memória imortal. Por fim, a própria casa tinha vontade e desta velha força alimentava-me. Era eu um fantasma solitário que nada tinha de assustador - somente um espírito saudosista mal acalentado pelas antigas cantilenas...
   Derrubaram o velho casarão - ao invés do jardim, uma portaria e uma garagem; ao invés dos beirais e dos janelões, milhares de pequenos olhinhos de vidro, a centenas de metros acima, dispostos em um imenso corpo de concreto; ao invés de uma família, o ruído de várias pessoas que jamais souberam o que é um jardim; ao invés de cores e sons, de insetos e pássaros, o barulho infernal de gritos e buzinas; ao invés de ar, poluição...
   Morri novamente com o velho casarão; hoje sobraram apenas meu entulho, meus cacos e meu pó; sou rastro de recordação...