sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Liberdade Ainda que Tardia

   Aquela era a saída, não havia outra. Uma noite na cadeia já é o suficiente para penitenciar-se de todo o mal. Um cubículo gradeado e imundo, o calor insuportável, o espaço dividido com tantos outros elementos e a privacidade suprimida. Uma noite é o curto tempo para o arrependimento ou para o ódio. Além dos muros altos estava a vida em seu esplendor de felicidade. Ali, porém, restavam as faces carcomidas, as pupilas mortiças e os sorrisos mordazes; restavam a desconfiança, o desmazelo e o terror da promessa de esquecimento aliado à raiva do abandono. Os ânimos jungidos feito massa, fermentando no exíguo espaço mofado, infestado de insetos e tresandando a esgoto e transpiração. Quem ainda possuía fé, rezava; outros reclamavam e cismavam com seus vizinhos. Os únicos alimentos eram incerteza e a inquietação sempiterna da inconformidade - a morte espreitava em cada sombra. Dormiam entrelaçados no chão duro, banhavam-se em água fria, comiam lavagem e satisfaziam as necessidades do corpo diante de todos. As baratas, como se dizia, tinham mais liberdade. 
   Arnaldo habitava uma cela não muito diferente. Sofria a distância dos filhos e amargava a culpa de um tiro desferido por ciúme. Perdera a conta de quantos dias haviam passado - um minuto valia pela eternidade. Tinha quarenta e poucos, mas a dor o fizera parecer bem mais. Seus cabelos grisalhos, o rosto cheio de vincos, as unhas escuras, as mãos grossas, a roupa rota, os pés descalços formavam uma triste figura, contraste absoluto do homem que dormia entre os lençóis de uma cama macia, logo após um banho morno, tendo anteriormente admirado sua vitalidade no espelho - ria da lembrança de outrora e furtivamente caía-lhe uma lágrima desabrida.
   Um tímido raio de sol, filtrado pelas grades da janela, acordou-lhe em certa manhã e com ele vieram as nesgas de esperança: um de seus companheiros era criminoso temido cujos comparsas se esforçaram por cavar um túnel que alcançasse a cela; tudo fora acertado: fugiriam ele e os demais durante a noite. Arnaldo experimentou alegria renovada e mal podia esperar para respirar ar puro, andar na rua, beber água limpa e abraçar seus rebentos. Permitiu-se sorrir um sorriso franco e acreditar novamente em Deus. Conforme o combinado, seria o último a passar pelo buraco, coisa com a qual pouco se importava, porquanto quisesse tão somente sair dali. Assim foi: quando a madrugada já ia alta, os presos começaram sua travessia - um por um desceu; os ossos de Arnaldo tornaram-se trêmulos, o coração acelerou, teve medo. Lembrou-se tardiamente da claustrofobia e se viu incapaz de prosseguir. ''É preciso ir, seus filhos estão esperando... Deus há de ajudar!'' - Tal pensamento lhe emprestou alguma força. Enfiou os braços, a cabeça e foi deslizando pelo túnel, falando alto, de si para si:
   -Meu Deus, eu vou conseguir... Meus filhos, estou chegando, me esperem, papai está chegando! Liberdade, ah! Nem acredito... Eu paguei tudo que devia, se Deus mandou isso é porque não tem mais nada... Estava aqui somente por causa da Lúcia, aquela safada! Nem lembro quantos anos peguei... Dez? Não sei, não importa... Agora estou livre, livre! - Tinha pressa, mas o túnel era bem pequeno; seu tronco, braços e pernas ficaram embebidos em sangue, arranhados pelas lascas de pedra que rasgavam sua roupa - estou quase lá, quase! - Inopinadamente, seu corpo entalou. Encontrava-se esticado e não podia mover-se adiante, tampouco baixar as mãos. Debateu-se no intuito de soltar-se, machucando mais a sua pele, tentando avançar ou retroceder debalde; gritou por ajuda - ninguém ouviu. Algum sopro de vento fresco veio do fim... Ironicamente, a saída estava bem próxima. Os outros presos ganharam a rua e desapareceram na noite. Arnaldo padeceu até que parte da passagem cedeu, sufocando-o com areia... Livre estava, enfim.

Um comentário:

R-E-N-A-T-O disse...

Muito bom conto. A morte normalmente nos parece a última saída possível.