terça-feira, 31 de agosto de 2010

Adalto

   Adalto tinha um boteco famoso na cidade; ficava de esquina com a avenida principal, dando para a praça. Era rotundo, socado e faltavam-lhe alguns dentes; passava dos quarenta e adquirira um papo, ao modo de um homem desleixado. Ficava atrás do balcão engordurado, cortando fatias de carne assada, trajado do mais roto pano, levando consigo a flanela ensebada ao ombro e uma caneta na orelha. Seus fregueses não faziam caso do chão bodoso, dos animais e insetos que circulavam por ali, do cheiro de morrinha. Queriam era beber da 'branquinha' e falar de futebol no mais baixo palavreado. Certa vez, o tal do Abdias, um que comprava batidinhas de amendoim, cismou: -Adalto, você tem que entrar para a política, rapaz! Todo mundo conhece o seu bar nessa cidade! Eu votaria em você! - e o velho franzino falava nisso com os demais que logo fizeram campanha para que ele se candidatasse. No pleito seguinte, Adalto saiu como vereador e ganhou uma cadeirinha na câmara. Passou a usar terno, a pentear o cabelo, a andar de sapatos e a fazer promessas; uma delas vingou: construiu um coreto na praça e mandou fazer um belo churrasco, regado a muita cerveja para comemorar a nova 'conquista do povo'.
   Um professor da cidade, também vereador, achou de criticar Adalto publicamente pelos gastos da obra: havia algo de ilícito, contas que não batiam, cifras muito altas. Misteriosamente, o pobre do rapaz apareceu crivado de balas no matagal perto do rio. Também um jornalista, que resolveu investigar o caso, foi morto no portão de casa. À essas alturas, Adalto reformara o boteco, comprara alguns outros estabelecimentos comerciais, variara os ternos e os sapatos, adquirira um carro novo e arranjara uma mulher. Não era muito bom com as palavras e se enrolava para dizer de onde vinha tanto dinheiro; e garantiu na igreja que temia a Deus. Só não distribuiu santinhos porque lá ninguém acreditava em santo.
   Arranjou emprego para meia dúzia, mandou apagar uma dezena, comprou centenas de lotes e se elegeu deputado na capital. Mudou-se para uma cobertura, contratou motorista, começou a frenquentar festas da alta sociedade e a fumar charutos cubanos; consertou os dentes, tirou um palmo da barriga, engravidou a esposa e negociou em dólar. Chamaram-lhe prevaricador, leviano, néscio e ele sorria pelos termos tão bonitos que a imprensa usava para elogiá-lo. E perto de cada eleição asfaltava uma ruela, encomendava três caixotes de gaze, distribuia dentadura e montava um espetáculo para falar de números. Os filhos estudavam em bons colégios, moravam em condomínio, bebiam somente refrigerante e batiam em prostitutas. Adalto se orgulhava do caráter dos rebentos e pagou para livrar a cara deles em processos de tráfico e estupro.
   Quando quis ser senador, repetia que estava ao lado da religião e do povo, pois democracia é assim: ''mais tem o diabo para dar do que Deus para tirar'' - ninguém entendia o porquê de Adalto inverter assim o ditado - talvez por ignorância - e demonstrando grande eloquência filosófica, concluía que a política era doce, pois dava ''sonho para o povo e bala para a oposição!''
   Uma artéria entupida matou Adalto deitado em berço esplêndido, feito passarinho. Diante do rico mausoléu de mármore, Abdias, o velho franzino, exclamou: -só ele sabia fazer aquela batidinha de amendoim! Descanse em paz, santo homem!

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Personalidade do Mês de Agosto

Henri-Marie Beyle (1783-1842)

   Henri-Marie Beyle passou para os grandes nomes da Literatura Universal como Stendhal. Em seu mais famoso livro, 'O vermelho e o Negro', faz uma análise da sociedade francesa por volta de 1830, contando a história do jovem Julien Sorel e sua amante Louise de Rênal. Os trechos a seguir traduzem parte da crítica feita à política de sua época pelo autor:

''Em meio a uma cidade de 20 mil habitantes, esses homens determinam a opinião pública, e a opinião pública  é terrível em um país que tem sua Constituição. Um homem dotado de uma alma nobre, generosa e que teria sido seu amigo, mas que mora a cem léguas, julga-o de acordo com a opinião pública de sua cidade, a qual é determinada pelos tolos  que o acaso fez nascerem nobres, ricos e comedidos. Ai de quem se distingue!''

''- (...) Eis toda a minha política: amo a música, a pintura; um bom livro é um acontecimento para mim; vou fazer 44 anos. O que me resta na vida? Quinze, vinte, trinta anos, no máximo? Pois bem! Imagino que daqui a trinta anos os ministros  serão um pouco mais hábeis, mas ainda tão honestos quanto os de hoje. A história da Inglaterra me serve de espelho para nosso futuro. Sempre haverá um rei querendo aumentar suas prerrogativas; sempre a ambição de tornar-se deputado; a glória e as centenas de milhares de francos ganhos por Mirabeau impedirão os ricos da província de dormirem: eles chamarão isso de ser liberal e amar o povo. Sempre a cobiça de tornar-se par do reino ou da câmara conduzirá os monarquistas. Dentro da nau do Estado, todo mundo vai querer o comando, que é bem remunerado. Será que nunca vai haver um lugarzinho para o simples passageiro?''

   Caso houvesse escrito seu livro atualmente, as impressões de Stendhal não mudariam muito - a política é a mesma. Os interesses pessoais superam os do bem comum, e para tanto, manipula-se a opinião pública de forma conveniente. Não há mais critério e seriedade; há avacalhação, escárnio, mofa. O político nem termina um mandato e logo o abandona com vistas em outro melhor e mais bem remunerado. Ali tem a chance de valer-se de artifícios, aparentemente benéficos, para ludibriar a população e mantê-la devidamente em seu lugar. O Estado não se compromete em mudar objetivamente a vida das pessoas; distribui esmolas, lava os pés e manda de volta à rua - hoje talvez se adquira uma geladeira com facilidade, mas a que preço? O de manter a malta rapace em seu lugar de sempre; o mesmo que ocupa desde 1808, 1822, 1889, 1930, 1964, 1985? O cidadão passa por todas as instâncias, empurrado pelas supostas leis de igualdade, ocupa cargos subalternos e jamais se pergunta o porquê de dançar este réquiem sinistro que o entretém, enquanto roubam seus pares; o importante é que ele não deixe de votar, obrigado que seja, na Democracia prostituta. 




domingo, 1 de agosto de 2010

Confins

   O capitão John padecia havia dias; o frio e a falta de comida  fizeram mais uma vítima da expedição malfadada. Singrar aqueles mares nunca fora tarefa fácil, ainda mais por serem desconhecidos os horizontes e os perigos que reservavam. O azul mortiço das águas, o branco acinzentado dos céus, as calotas alvejantes; elementos lúgubres da paisagem gélida, mesmo estando em pleno verão. John debatia-se e gritava no torvelinho de estertores ilusórios. Dizia-se vítima do assédio de seres imaginários, de homens que não estavam ali - de pessoas mortas. E o imediato, que resistia às penas desabridas do Polo, teve em seu íntimo a certeza que aproximava-se o momento derradeiro.
   John era um homem de origem pobre e que lograra reconhecimento na marinha inglesa. Não tinha uma compleição muito forte, mas era esguio, de olhos firmes e largas entradas nos dois lados da cabeça. Sua expressão rude e a voz firme o faziam temido. As viagens à costa africana, Índia e Austrália deram-no experiência suficiente e posição tal que permitiram que, em 1847, fosse escolhido para liderar uma expedição aos mares do Norte, objetivando chegar-se ao Pacífico por uma rota pouco convencional: o navio sairia da Inglaterra e percorreira toda a costa russa até alcançar o estreito de Bering. A embarcação partiu no mês de Abril na direção do desconhecido...
   A fraca luz do lampião bruxuleava no camarote do capitão; John não entendia o que poderia ter dado errado. Faltava pouco para o inverno e eles precisavam voltar ou a escuridão profunda os envolveria. A comida e a água ameaçavam escassear; camadas de gelo haviam se desprendido, interpondo-se no caminho, formando obstáculo considerável - estavam presos.
   -Ora, para que preciso deste lume? - Dizia de si para si - está claro e desperdiço azeite inutilmente! É só abrir um pouco mais a escotilha e... - um ar gélido soprou dentro do recinto; a temperatura do lado de fora estava bem abaixo de zero e o capitão de pronto fechou novamente a pequena janela - meu Deus, será que vamos morrer aqui? - perguntava-se tentando moderar seu desespero - sim, em breve todos morreremos! - Lamentou por fim. E não tardou para que sua suspeita se confirmasse: a hipotermia fez sucumbir o drumete, depois outro marinheiro e outro... Até que sobrassem apenas John, o imediato e mais dois homens. Os corpos eram lançados ao mar. Ali boiavam por uns instantes e mergulhavam para a eternidade abissal.
   De pé no convés, mirando as ondas agitadas pelo vento e imaginando como estaria a costa russa mais além naquela neblina, sentiu que não aguentaria por muito tempo. Os ossos estremeciam, sua percepção comprometera-se, suas funções assemelhavam-se a engrenagens de uma máquina que ameaçava encerrar sua atividade langorosa.
   -Capitão! - Gritou o imediato - volte para dentro! Aqui o frio acaba por lhe matar! - John juntou-se aos demais em uma repartição da embarcação. Deram-lhe do rum que restava e ele mordiscou as últimas lascas de peixe seco. Foi quando seus olhos lobrigaram riscos no madeirame: traços apareciam lentamente entre nós e fendas, desenhando figuras estranhas. O terror tomou John de socapa. Levantou subitamente e se pôs a correr pelo barco. Os outros homens foram atrás e o contiveram, levando-no para seu camarote. 
   A febre abateu o capitão e, na dolorosa agonia, só sabia repetir que todos eles o observavam, que não o deixavam, que os rostos nas paredes eram dos tripulantes e que eles estavam ali para testemunhar a sua morte. Ao cabo de uma semana, a escuridão se fez naqueles confins...