domingo, 1 de agosto de 2010

Confins

   O capitão John padecia havia dias; o frio e a falta de comida  fizeram mais uma vítima da expedição malfadada. Singrar aqueles mares nunca fora tarefa fácil, ainda mais por serem desconhecidos os horizontes e os perigos que reservavam. O azul mortiço das águas, o branco acinzentado dos céus, as calotas alvejantes; elementos lúgubres da paisagem gélida, mesmo estando em pleno verão. John debatia-se e gritava no torvelinho de estertores ilusórios. Dizia-se vítima do assédio de seres imaginários, de homens que não estavam ali - de pessoas mortas. E o imediato, que resistia às penas desabridas do Polo, teve em seu íntimo a certeza que aproximava-se o momento derradeiro.
   John era um homem de origem pobre e que lograra reconhecimento na marinha inglesa. Não tinha uma compleição muito forte, mas era esguio, de olhos firmes e largas entradas nos dois lados da cabeça. Sua expressão rude e a voz firme o faziam temido. As viagens à costa africana, Índia e Austrália deram-no experiência suficiente e posição tal que permitiram que, em 1847, fosse escolhido para liderar uma expedição aos mares do Norte, objetivando chegar-se ao Pacífico por uma rota pouco convencional: o navio sairia da Inglaterra e percorreira toda a costa russa até alcançar o estreito de Bering. A embarcação partiu no mês de Abril na direção do desconhecido...
   A fraca luz do lampião bruxuleava no camarote do capitão; John não entendia o que poderia ter dado errado. Faltava pouco para o inverno e eles precisavam voltar ou a escuridão profunda os envolveria. A comida e a água ameaçavam escassear; camadas de gelo haviam se desprendido, interpondo-se no caminho, formando obstáculo considerável - estavam presos.
   -Ora, para que preciso deste lume? - Dizia de si para si - está claro e desperdiço azeite inutilmente! É só abrir um pouco mais a escotilha e... - um ar gélido soprou dentro do recinto; a temperatura do lado de fora estava bem abaixo de zero e o capitão de pronto fechou novamente a pequena janela - meu Deus, será que vamos morrer aqui? - perguntava-se tentando moderar seu desespero - sim, em breve todos morreremos! - Lamentou por fim. E não tardou para que sua suspeita se confirmasse: a hipotermia fez sucumbir o drumete, depois outro marinheiro e outro... Até que sobrassem apenas John, o imediato e mais dois homens. Os corpos eram lançados ao mar. Ali boiavam por uns instantes e mergulhavam para a eternidade abissal.
   De pé no convés, mirando as ondas agitadas pelo vento e imaginando como estaria a costa russa mais além naquela neblina, sentiu que não aguentaria por muito tempo. Os ossos estremeciam, sua percepção comprometera-se, suas funções assemelhavam-se a engrenagens de uma máquina que ameaçava encerrar sua atividade langorosa.
   -Capitão! - Gritou o imediato - volte para dentro! Aqui o frio acaba por lhe matar! - John juntou-se aos demais em uma repartição da embarcação. Deram-lhe do rum que restava e ele mordiscou as últimas lascas de peixe seco. Foi quando seus olhos lobrigaram riscos no madeirame: traços apareciam lentamente entre nós e fendas, desenhando figuras estranhas. O terror tomou John de socapa. Levantou subitamente e se pôs a correr pelo barco. Os outros homens foram atrás e o contiveram, levando-no para seu camarote. 
   A febre abateu o capitão e, na dolorosa agonia, só sabia repetir que todos eles o observavam, que não o deixavam, que os rostos nas paredes eram dos tripulantes e que eles estavam ali para testemunhar a sua morte. Ao cabo de uma semana, a escuridão se fez naqueles confins...

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