domingo, 30 de dezembro de 2012

Ônibus

   A estrada que ligava um município ao outro estava escura. Somente o brilho dos faróis lançava luz um pouco adiante, mais os dos demais carros que vinham pela pista contrária. O aperto no peito, quase esmagando o coração, forçando as lágrimas nos olhos, faziam-no conduzir raivosamente o ônibus por aquelas vias mal iluminadas. Abaixou um tanto a cabeça, respirou fundo - e tudo se apagou inopinadamente... Quando tornou a si, sentia uma dor terrificante pelo corpo: dor de costelas quebradas, dor de ferro atravessando a coxa, dor de pernas partidas, de ventre fendido, de sangue esvaindo - dor de morte...
   Havia três anos que estava na companhia quando Josival entrou: caboclo mediano, neto de pernambucanos emigrados, era cheio da manha risonha e simples; chegou conquistando amigos, próprio que lhe era a facilidade de levar a todos o conforto de uma nova amizade. Tomou a função de trocador. No início não se bicaram. Josival não logrou entrar naquele peito endurecido e taciturno que odiava aquele trabalho, como só alguém que faz por pura necessidade e por ter esposa e uma linda menininha para sustentar.Tanto que respondia atravessado aos passageiros, não tinha paciência com os velhos que se demoravam a subir na condução e vivia se queixando dos horários de trabalho - se cedo, se tarde, se sábado ou domingo. Mas retinha para si o queixume; aos outros apenas azedume, de maneira que nenhum colega mexia com ele.
   Josival, no terceiro mês, passou a ser um companheiro de jornada - bem ou mal -, trocando notas e moedas no mesmo ônibus. Ah, coube a ele a tarefa de abrir uma fresta ali para que se pudesse ao menos vislumbrar algo no interior. Aos poucos, entretanto, aos poucos. Falava muito, ainda que não obtivesse resposta, ria sozinho, debochava, e como adorava uma dancinha aconchegante acompanhada da boa aguardente, convidou-o para ir, dia desses, no bar perto de sua casa. 
   Foi ali que o rapazote, cinco anos mais moço, passou a ser visto com olhos diferentes - alegre, desinteressado, não muito bonito, é verdade, porém conquistador. Saltaram dos cumprimentos às conversas de bar, às visitas mútuas, ao riso frouxo. Tratavam-se na intimidade fazendo piadinhas infames, parecendo dois garotos, emprestavam dinheiro na hora do aperto, consolavam-se.
     ''Ah, Josival, o seu sorriso, a colônia barata, o peitilho aberto com o crucifixo reluzente...''- pegou-se pensando assim. Havia mudado algo em seu interior. Não sabia bem o que era, todavia. Afastou as imagens... Aquelas imagens... Não, não, como poderia? Deitou-se e abraçou sua esposa... Jo-si-val, continuou a reverberar enquanto não dormia...
     Josival não mais dividiria o mesmo ônibus, foi substituído por outro naquele horário. Não se encontravam mais, os horários não coadunavam - só ficou uma saudadezinha inexplicável e a raiva voltou. Sentia-se estranho, ainda mais quando falavam nele: Josival fez outros amigos, novos amigos...  
     Meses correram com ambos afastados. Aquilo amainou dentro de si e cria já esquecido até que, certa noite, parou no ponto final e ele estava lá, palestrando animadamente com o despachante. Disse que ia embora e pediu uma carona até a garagem. Por fim, Josival decidiu-se a ficar mais um pouco, ensombrecendo o breve sorriso no rosto do antigo companheiro. Irritado, fechou a porta e deu a partida. Sim, aquilo existia adormecido embaixo de toda a fuligem, como brasa quieta, ao menor sopro reavivada.  Mas o quê? Mas o quê? O que era aquilo? Cerrou as pálpebras e viu novamente o sorriso de Josival - na curva, outro ônibus vinha na pista contrária... Perdeu o controle...
     As pálpebras abriram-se novamente, uma última vez. O olhar vazio, perdido, procurava por ele. Foi a derradeira impressão na retina, após o que tudo escureceu...