segunda-feira, 19 de julho de 2010

Perversão

   Quando o inspetor Morin adentrou o recinto daquele pardieiro, em uma noite do ano de 1888, ficou aturdido com a imagem. Nunca em seus anos trabalhando na polícia de Paris  vira algo parecido. Sentiu uma repulsa tamanha e uma ânsia tal que mal pôde se convencer que diante de si havia um ser humano. Levou o lenço à boca, depois secou a fronte e, afastando a impressão inicial, averiguou que quem quer que tenha sido o causador daquilo, fugira pela janela.
   Havia uma certa suspeita acerca dos hábitos de monsieur Jacques; homem alto, belo e proveniente de boa família. Sua postura altiva e austera era salvaguarda para que frequentasse os salões da alta burguesia francesa. Possuía gostos refinados, apreciava bom vinho e dedilhava alguma melodia no piano, além de valsar a gosto de todas as donzelas casadoiras. Contudo, mantinha-se reservado a qualquer proposta ou invasão a seu inviolável reduto. Monsieur Jacques havia herdado ações de um banco e a renda gerada deste lucrativo espólio ia dissipar em mesas de jogo. Ao cair da noite, saía em sua sege até determinado ponto da cidade, e de lá perdia-se a pé nas ruelas de Montmartre. A desconfiança sobre sua prodigalidade surgiu quando um dos sócios percebeu um desfalque. Somado a isso, um misterioso assassinato fez o inspetor Morin ficar no seu encalço.
   Um velho, antigo funcionário de Napoleão III, perdera o pouco que tinha no carteado e fora morto com requintes de crueldade: seu corpo amarrado encontrava-se com diversos talhos feitos à navalha, dos quais o mais extenso e profundo localizava-se no pescoço, quase a dar uma volta completa. O inspetor, chamado a investigar o crime, concluiu que quem matara o velho, o fizera sangrar por um bom tempo até decidir-se por rasgar-lhe a garganta e pôr termo à tortura. Disseram-lhe que um homem alto e bem vestido era o provável autor: - é um tal que aparece quase toda noite, de casaco com gola de pele e luvas de couro. Fuma charutos da melhor qualidade e sempre pede água de Seltz antes do vinho. O velho Ultime devia a ele, deve ter sido ele quem matou! - disse o taverneiro inquirido por Morin. 
-Não duvido que tenha sido ele - afirmou uma prostituta de nome Amalie - esse homem me procurou algumas vezes, pagava bem, mas gostava de coisas estranhas e chegou a me bater quando me neguei a fazer...
-Coisas estranhas? - Perguntou Morin - que coisas estranhas?
-É, pedia que lhe amarrasse e desse tapas, que o fizesse sangrar e... - fez uma pausa - certa vez quis que eu urinasse nele. Quando me neguei a deixar que fizesse tudo aquilo comigo, ele me bateu com a bengala e me ameaçou!
-Meu Deus, isso é abominável!
-Agora ele anda com Pauline. Já avisei a ela, mas, como disse, ele paga bem e Pauline deu de ombros.
-E onde está Pauline agora?
-No quarto que aluga aqui próximo.
-Poderia me levar até lá? - Morin não tinha dúvidas: as descrições davam conta de um homem em tudo igual a monsieur Jacques. Talvez a fortuna o fizesse dar um flagrante e pôr a ferros este tal - era o que esperava ao subir os dois lances de escada do pardieiro onde habitava Pauline.
   Deu dois ligeiros toques na porta e chamou pelo nome da jovem. Silêncio. ''Talvez não esteja em casa'' - pensou. Chamou novamente e o barulho vindo do interior denunciou a presença de alguém. Morin forçou a maçaneta. Um som gutural, um gemido aterrador e um pedido de socorro saído de uma voz sôfrega enregelaram as vértebras do inspetor. Esmurrou a porta a fim de arrombá-la, logrando escancará-la no terceiro golpe. A cena que ora se divisava quase fizera os olhos do inspetor saltarem das órbitas junto ao coração acelerado - um corpo de mulher, banhado em sangue, tendo seus membros arrancados, arrastava-se a muito custo no soalho. Adiante um machado e a janela aberta...
   Monsieur Jacques embarcou para Londres horas depois e nunca mais retornou à Paris.

Um comentário:

Gabrielle Violet disse...

Nossa!Impactante,sucinto,tétrico,instigante..rsrs...Adorei!