segunda-feira, 14 de junho de 2010

Beleza Perecível

   Sua mãe parecia adivinhar-lhe o destino quando o batizou: Adônis era modelo de beleza. Os olhos reluziam como duas safiras, daquelas que refletem o fundo dos oceanos; os cabelos, em leves ondas, se agitavam ao vento, caindo por sobre a face alva e de traços perfeitos; esguio, rijo, bem torneado, de dentes certos, tinha a graça e o charme que levava as mulheres à suspirarem - um deus! A expressão forte, as sobrancelhas arqueadas, a firmeza das feições, os gestos contundentes lhe deram ares de homem feito em tenra idade. Possuía algum espírito e personalidade; em verdade, a falta de opinião não maculava-lhe o conjunto. Era belo e nada mais.
   Enquanto crescia, notou a admiração alheia e assimilou os recorrentes comentários acerca de sua beleza. Assumiu, assim, uma postura dissimulada e hedonista, desejoso dos mais aguerridos elogios que o enaltecessem. Fora as paixonites da puberdade, Adônis não amou ninguém. Acima de tudo estava o prazer de atrair os olhares femininos - e masculinos - como meio de concretizar a imagem que construíra para si. Foi amado, derramou lágrimas, conquistou os mais severos corações e atirou ao esquecimento as esperanças dos amantes. Provou do pão e do vinho; comeu da carne; inebriou-se do próprio reflexo enquanto dominava algum  corpo frágil; cuspiu no prato. Desprezava o que era feio, torto, mal-ajambrado... Escarnecia voluptuosamente dos homens normais - ninguém jamais seria como ele!
   Certa feita, Adônis deparou-se com o anúncio de um escultor que procurava por rara beleza para compor uma obra de arte. Pensou em oferecer-se prontamente ao trabalho, acreditando ser o mais indicado. A perspectiva de ver seu corpo apreciado, através de uma composição artística, elevava seu ego. Escutaria, decerto, outras tantas vezes o que escutara por toda a vida: perfeição! Ele mesmo se converteria na obra e sua beleza se tornaria plena e imortal!
   Tocou a campainha e um velho veio atender. Adônis teve nojo da pele flácida desabada no rosto, dos olhos pusilânimes, da larga calva pintalgada, das mãos secas, da protuberância mole que lhe tapava o ventre e da gengiva encrustrada de parcos dentes acinzentados - a roupa encardida fedia. Encarou o velho por algum tempo até conseguir falar:
-O senhor é o escultor que pôs esse anúncio no...
-Sou eu sim! - Interrompeu e, antes que o rapaz completasse, prosseguiu: -vejo que você é mesmo o que procuro. Bonito... - dizendo isso, correu as tais mãos secas pela face de Adônis - perfeito! -  Esta palavra era tudo o que Adônis precisava ouvir e, repelindo o engulho que sentiu ao ser tocado pelo velho, adentrou o ateliê - um cubículo revirado e sujo - movido pela vaidade.
-Tire sua roupa, vamos começar já! - Adônis expôs sua nudez. Mostrar assim suas coxas grossas e seu tronco definido; seu tecido jovem e sem marcas ao pobre ser andrajoso e encarquilhado, estabelecia um ruidoso contraste, embriagando-o de poder.
-E como se chamará essa obra?
-Estes dois olhos aqui - disse apontando para as órbitas - já não vêem mais o mundo como antes; minhas vistas estão cansadas, vejo tudo distorcido, de cores mortas, sem vida. Por não poder mais ter o que tinha antes - abriu uma gaveta - por ter o mundo assim transformado, o feio tornou-se belo para mim - os dedos esqueléticos agarraram um cutelo - a beleza se esvai com o tempo, mas a feiúra não... A feiúra é eterna! E para atingir a eternidade, minha arte deve ser repugnante. Por isso chamá-la-ei 'Beleza Perecível' - dizendo isso, cravou a lâmina do cutelo na face de Adônis, desferindo sucessivos golpes na cabeça e em todo o resto, mutilando irremediavelmente sua beleza.

2 comentários:

Narguileiro do Desterro disse...

Não creio que seja necessário um cutelo para esses casos de vaidade...
Adonis era vazio, este era o seu cutelo.

No mais adorei o post, ainda mais se tratando de algo tão real.

Com estima e prece,

Narguileiro do Desterro.

R-E-N-A-T-O disse...

Caracaaaaaaaaaaaaa, muito maneiro! hahaha