quinta-feira, 10 de junho de 2010

É Possível Morrer - parte II

   Voltando a si, nada pôde ver: seus olhos estavam cegos, apagados, imersos na escuridão. Uma pressão esmagava-lhe o esterno e algo invisível agrilhoava-lhe o pescoço - sufocava. Tentou gritar, sem conseguir articular palavra contudo; seus braços e pernas se debatiam, incapazes de retirar seu corpo da frigidez do chão. Parecia que alguém a estrangulava... Repentinamente, mergulhou na semiconsciência entorpecente, sopitando os movimentos gradualmente - entregava-se. Diminuto ponto apareceu, aumentando em seguida, clareando todos os cômodos como se a alvorada houvesse chegado. Seu espírito pairava dando-lhe onisciência, alargando sua visão, diluída no ar, liberta da matéria. Não entendia o significado daquilo: saíra do corpo? Morrera enfim? Nada podia sentir. O intenso clarão diminuiu, mostrando uma sala de janelas grandes, muitas estantes repletas de livros e a mesa de cedro. Uma luminária jogava seu brilho mortiço sobre um jornal que trazia, logo abaixo do nome, a data de Junho de 1947. Os detalhes lhe vinham sem que precisassem dizer, como se realmente conhecesse tudo - era a sala do diretor do hospício.  Um distinto senhor, sentado na poltrona de couro, fumava charuto e fazia anotações em pequeno caderno - ele não a via. A fumaça evolava languidamente. O relógio cortou o silêncio com o soar das onze horas no carrilhão. Um burburinho, transformado assim em bulha, fez-se em algum outro recinto. O senhor levantou-se apressadamente e correu. Daisy, conduzida involuntariamente, foi atrás. Passou pelos corredores e escada até o refeitório. Lá, um homem alto e louro era contido por outros três, vestidos de branco.
- O que está acontecendo aqui? - Perguntou o diretor.
- Doutor, John teve mais um de seus surtos e atacou Gonzales - respondeu um negro também vestido de branco, ajoelhado ao lado do enfermeiro ensanguentado - pegou a faca e cortou-lhe a carótida. Precisamos chamar um médico porque não temos...
- Não! Não vamos chamar ninguém! Não podemos atrair a atenção sobre esse fato! Esse homem tem que ser atendido aqui mesmo. Se a imprensa descobre, transforma em mais um escândalo e... - nesse ínterim, Gonzales expirou.
-Agora não adianta mais.
-Dêem um sedativo a este louco e o amarrem dentro da cela dele. Quanto ao corpo, enterrem no bosque. Não joguem no rio, ele não pode ser encontrado de maneira nenhuma! A família de Gonzales mora no México, ninguém nem vai dar pela falta dele. Qualquer coisa, inventamos uma desculpa... Dizemos que ele pediu as contas, que mudou de estado...
-Mas senhor...
-Enfermeiro Grant, limite-se a fazer o que lhe peço! Já não basta o alarde que alguns jornalistas de Boston fizeram com as denúncias de maus-tratos? Vamos ter que fechar as portas se souberem que um paciente degolou um enfermeiro aqui!
   Quando pronunciado o nome 'Grant', Daisy deteve-se na imagem do negro: mediano, aparentando uns trinta anos - Grant! - ela reconheceu imediatamente - era seu pai! Emocionou-se e copiosas lágrimas cairam de seus olhos etéreos. Finalmente percebeu que não estava completamente anestesiada. Outra informação assomava-lhe: John, o paciente, enlouquecera após a experiência de batalha durante a Segunda Grande Guerra e fora internado pela família no hospital de renome na região. Apesar de jovem, tinha profundos ataques, acreditando estar ainda nas trincheiras testemunhando os horrores da guerra.  Trancaram-no, naquela noite, em sua cela, vencido pelo sedativo e imobilizado por duras tiras de couro na cama. Inumaram Gonzales por determinação do diretor, embaixo de uma árvore e sem qualquer indício de que ali havia um cadáver. Daisy assistia o filme editado por sua mente em cenas que transcorriam os acontecimentos principais. O passado se abria a uma lembrança fragmentada que não possuía - mas quem a fazia ver? Seu pai? E por quê? Não havia respostas. Havia somente convulsões de dor psicológica e comiseração, misturadas a uma felicidade por ver novamente o pai, morto quando ela era criança.
   Mais uma vez foi levada à revelia a outros fatos, decorridos dias depois: durante o almoço, quinze pacientes do hospital estavam reunidos no refeitório, junto aos enfermeiros quando, escapando da vigília, John entrou na sala do diretor, em sua ausência, abriu um armário com portas de vidro e retirou a submetralhadora carregada - recordação da participação do diretor na Primeira Guerra - voltou ao refeitório e atirou a esmo. ''Morram, alemães malditos!'' - repetia pensando estar sendo mantido preso pelo exército do Eixo. Um a um tombava com as balas. O refeitório ficou lavado de sangue. Logo após, John suicidou-se. O ''massacre'' virou notícia em toda a Costa Leste. O hospício foi fechado e o sobrevivente Grant mudou-se para Louisiana, onde conheceu a mãe de Daisy.
   Sua cabeça latejava uma dor aguda e Daisy foi atraída de súbito de volta ao corpo. Despertou como um afogado salvo da maré assassina, arfando, sorvendo o ar em cada milímetro, liberta da compressão no peito e na garganta. Deu um salto, inimaginável em suas condições normais e fugiu dali - as teorias estavam certas: é possível energias bodosas impregnarem um lugar; é possível que almas percam-se de seu destino último - pensava enquanto corria - é possível morrer!

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