sábado, 6 de outubro de 2012

Menos Uma Boca

   O pobre rapaz de carnes moles, indolente e cabelos ralos, encontrava-se esparramado no colchão. Àquela hora do dia, passando das onze, aproveitava-se do silêncio langoroso fazendo movimentos tímidos de quem não quer levantar. Abriu um olho, depois o outro, bocejou e passou logo a mão num aparelho para saber das últimas notícias do mundo - ergueu a tampa e ligou; só lá pelas tantas lembrou de comer... E já era tempo de almoçar. 
   Arrastou-se pelo corredor, em trajes menores e com uma camisa de tamanho grande. O palor da pele acentuava-se ainda mais por causa dos panos brancos; o que agravava seu aspecto enfermiço, mesmo que não estivesse doente, mas apenas denotando alguém que não costuma sair muito do quarto. Catou algo para comer, requentou e esgueirou-se novamente, parando um tanto desdenhoso na porta do cômodo. Correu as vistas em torno de si: roupas espalhadas, sujas e limpas misturadas, no chão, na cadeira e na escrivaninha; revistas, copos, farelos, um bodum tenebroso tresandando toalha molhada, meias encardidas e resto de comida. Deveria arrumar a bagunça... Sim, algum dia, concluiu. 
   -Bernardo, vou na casa de sua tia - passou a mãe dizendo - depois vou com ela fazer compras, viu? - Beijou-lhe a testa e saiu, ignorando o estado do filho. Cansou-se, é verdade, de falar dos seus modos, do seu comportamento, de que deveria dar um jeito no quarto, de que ele já transpusera os trinta e ainda não tomara rumo na vida - estou velha e não suporto mais, ademais, ele sempre se tranca e liga o rádio no último volume - pensava. E, de fato, naquele universo particular, Bernardo era o único que existia - e respirava.
   Recostou-se novamente no travesseiro, comeu parcamente, largou o prato, espalhou algumas migalhas e voltou a relacionar-se virtualmente. 
   Cochilou e, quando deu por si, era tarde. Lembrou-se de tomar banho. Embora o asseio fosse inadequado, sentia com prazer, no banho demorado, a água quente bater em suas costas. Seu pai, então, esmurrou a porta:
   -Bernardo, quando tiver um emprego e puder pagar a conta, você gasta o quanto quiser! Eu não sou mais obrigado a lhe sustentar! - O pai interrompera um momento íntimo, onde quase atingia um êxtase, e teve raiva dele por isso. Fechou o chuveiro, parou para contemplar seu corpo flácido no espelho e suas olheiras de quem troca a noite pelo dia; examinou os dentes amarelecidos, uns pontos avermelhados no rosto; percebeu que possuía menos fios de cabelo, que sua barriga crescera em terrível contraste com os membros finos, que sua corcova aumentara. Vestiu-se para ouvir a ladainha paterna sobre trabalho, sobre o que seria dele quando os pais morressem, sobre o irmão que se encaminhara, sobre ser um inútil etc. Fechou, então, a porta do quarto, colocou o rádio no último volume e deitou-se outra vez.
   Possuía um personagem, entretanto, virtual que era como ele, Bernardo: vestia-se bem, namorava uma moça bonita, morava em um casarão com piscina, andava de carro próprio e visitava os milhares de amigos em suas residências, onde havia festa sempre. Dinheiro era fácil, e quando era tempo de procurar um emprego, bastava acelerar o relógio para que a noite chegasse mais depressa. Ali havia uma felicidade estranha - enquanto a realidade desmoronava.
   Dia desses, Bernardo acordou com uma sensação esquisita, uma pontada, parecia faltar-lhe o ar. Não conseguiu erguer-se, estava fraco. E, pouco a pouco, a vista escureceu. Gradativamente, então, deixou de funcionar. Como era de costume a família não se encontrar, ou melhor, haver apenas encontros furtivos no corredor, na sala, nunca na mesa da cozinha; ninguém notou sua ausência. Até o cheiro estranho no quarto foi tido como normal. Somente após uma semana, quando a faxineira retornou, foi que se deram conta: -acho que seu Bernardo está morto!
   A mãe desesperou-se, o irmão estava de saída e o pai balbuciou secretamente: -menos uma boca para alimentar!

Nenhum comentário: