sábado, 20 de outubro de 2012

Borboleta Azul

   Aquele homem dormia em um dos últimos bancos do ônibus. Encolhido, envergado para o lado direito, agasalhado e cheirando mal. Quando viam o ser de rosto sumido na aba da boina, as pessoas escolhiam outro assento ou preferiam ficar de pé. Mãos e pés envelhecidos, carcomidos, estragados, nus denunciavam sua condição. Havia se urinado, mas isso ainda ninguém notara. Um sono profundo dormia. Nenhum barulho em redor, de fala, freio ou buzina, o fazia despertar. Rodou horas a fio pela linha circular, até que por fim o trocador resolveu sacudi-lo: ''ei, já chegamos na garagem, acorda!''
   Não recordo seu nome, acho que era algo similar a Francisco. Sei que foi professor durante um tempo. Era voluntário e ensinava adultos a ler. Também era escritor, entretanto suas histórias nunca foram escritas de fato; permaneceram na imaginação. Tinha família; se não me engano, arranjou-se com uma moça quando já entrara em idades. Dois filhos nasceram daí: Melgibso e Shéreston, ambos nomes que homenageavam atores estrangeiros dos quais ele gostava. A mãe queria batizar o primeiro filho de Romestilte, porque na casa onde trabalhava, os patrões viviam dizendo que iriam ver o 'home theater'; de onde concluiu que, tendo um nome tão bonito, deveria ser alguém importante. O marido explicou que se tratava de um aparelho. O segundo também era menino, por isso resolveu adaptar e o chamou assim - com o sobrenome Silva. Seu Silva dizia de si para si: ''Melgibso será advogado; Shéreston, um grande médico''; um se envolveu com más companhias e foi preso, o outro engravidou uma menina e viveu de bico; e a esposa, a pobre esposa, morreu desgostosa na eterna fila do transplante. 
   Seu Silva, então, quis afogar-se em um copinho de cerveja, depois de vinho barato e, finalmente, cachaça. Bebia, bebia e comia sonhos, sonhos que jamais se realizaram. E no auge da embriaguez, tinha novamente sua mulher ao lado na cama, aninhava seus filhos pequenos, nutria o desejo de um destino diverso para eles, escrevia seu livro sobre uma borboletinha azul para crianças, comprava uma casinha fora do morro... Era um  homem de valor! Mas ora, seu Silva, o senhor sempre fora um homem de valor! Quem poderia ter alfabetizado com palavras retiradas de papéis avulsos catados do lixo? Talvez virasse notícia de jornal sob o título 'superação'. Era estranho o gosto popular por esta palavra sendo que ele jamais alçara esta tão nobre e sonhada superação. Do que se tratava mesmo? Sobreviver e ser admirado por isso? Admiração nunca encheu barriga, doutor! Exemplo muito menos! Meu filho continua na cadeia e o outro repetiu o pai!
   Surtou após uma bebedeira. Sumiu na cidade, não sabia onde estava. Chamava por um e outro; chamava nomes. Diziam-no louco, bêbado, enxotavam-no. Uma ideia, então, lhe acudiu: juntou uns trocados que amealhara na rua e pagou para entrar em um ônibus. Ali podia dormir tranquilamente, e proteger-se da chuva. Rodava, rodava, rodava, esquecido de si, esquecido do mundo, perdido; rodava, rodava, rodava pela cidade, em bairro de luxo e de lixo; rodava, rodava, rodava dormindo até que...
-Ei, já chegamos na garagem, acorda! - seu Silva ao menor toque tombou, de olhos cerrados e boquiaberto.  Morrera havia algumas horas. E ninguém se dera conta... Ninguém se dera conta que, naquele coração habitara uma borboleta azul; borboleta azul que agora voava...

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