sábado, 2 de abril de 2011

O Romantismo de Amélia

   Amélia é que era mulher de verdade - diziam; de fato, era moça, cabelos negros, pele alva, lindos olhos esmeraldinos, mediana, fresca, odor de rosas... Linda! Além de tudo era inocente. E sua inocência cativava. Se velha, pela candura e bondade; se amiga, pela atenção e deferência; se família, pelo respeito e devoção; se homem, pela beleza e ancas largas que fariam qualquer um fartar-se. Apetitosa! - Afirmariam antigamente - gostosa! - Diriam certamente nos dias de hoje.
   Amélia sonhava. Sonhava com um príncipe que lhe fizesse muito feliz. E ia aos poemas com certa volúpia, imaginando que um daqueles amores poderia estar guardado para si. Lia romances e se via resgatada, de toda maldade e todo o tédio, por um cavalo branco que a levaria ao castelo dos suspiros. Escrevia em seu diário, anotava a espera, contava os minutos e mirava a paisagem pela janela, apoiando a cabeça na mão direita, correndo os olhos pelos transeuntes, assistindo ao sol poente e depois, a lua majestosa! E ali, arfando da saudade de algo que não viveu, sentia poder rebentar de paixão por alguém que não existia. Caso se encontrasse sozinha, permitia correrem-lhe as lágrimas, as quais iam molhar a fronha de mais uma noite solitária.
   Todavia, dentre as reviravoltas da vida, surge o Dimas. Rapaz bonito, alto e de personalidade. Era desejado em segredo por muitas jovens do bairro; e invejado, talvez, por muitos outros que lhe tinham na conta de cafajeste - afinal, ainda que um canastrão de marca maior, Dimas saía com a mulher que quisesse. Certa feita, seus olhares se encontraram e Amélia sentiu palpitar-se inteira. Teve até um pouco de vertigem e mal pôde balbuciar um cumprimento quando Dimas veio falar-lhe. Foi em uma festa. Dali a alguns dias estavam namorando. Amélia escrevia seus versos, fazia desenhos de rodapé, vivia o amor em cada gesto como uma princesa encantada. Dedicava ao Dimas seus pensamentos, sua respiração e sua existência. Primeiros amores são assim: crê-se no enlace sempiterno, na sobrevivência e na eternidade do namoro. Uma breve nota, porém, deve ser observada: os pais da menina não aprovavam, mas ainda assim o recebiam em casa. Para ela, o fato da desaprovação emprestava um ar trágico a que todo o amor deve prosternar-se. Ou não seria amor. Na cabeça dela funcionava assim: amores impossíveis, fugas repentinas, sacrifícios são todos ingrediente de romance e felicidade. E temia, temia que ele morresse, temia ver-se separada de Dimas, temia não realizar todo o platonismo que, para Amélia, ganhava o clamor de um fetiche.
   Dimas, então, em um desses encontros tórridos e proibidos - no banco detrás ou na sombra da árvore; queria ir com Amélia às vias de fato. E tanto fez, tanto insistiu, que ela cedeu e armaram tudo para não perder o clandestino, o mistério. A fantasia de Amélia mistificou a união dos corpos, a comunhão que os tornaria unos, que sacramentaria o sentimento, mesmo que, em seu íntimo, achasse que deveria antes casar-se. Entregaria-se e quase não podia conter-se por isso!
   Dimas pegou um carro emprestado, buscou-a às oito e só parou próximo da rodoviária, em uma rua pouco iluminada e frequentada por tipos estranhos. O hotel ficava ao lado: construção baixa, de três pavimentos, parecendo exceder em idade devido a sua decadência. Dimas e Amélia subiram as escadas escuras e chegaram no andar do quarto: uma porta empenada abria-se para um cubículo que cheirava a mofo. Havia infiltrações pelas paredes, um colchonete, uma lâmpada pendurada por um fio e insetos, muitos insetos. A moça não esperava por aquilo, não era aquilo que ela havia imaginado. Dimas acendeu um cigarro e foi tirando a roupa; em seguida, forcejou por tirar a dela. Depois de alguma insistência, ambos enfim deitaram e ele pediu que ela fizesse coisas imundas, além de gritar um palavriado baixo e tentar agredi-la. Nua após o ato, deixou-o deitado de lado e foi banhar-se. Não havia tábua no retrete; um cano fazia jorrar a água gélida sobre ela e um sabãozinho de coco serviu-lhe para lavar a intimidade cheia de sangue.
   O romantismo de Amélia morreu  naquele quarto barato de um hotel ordinário, nos braços de um homem cuja vontade era destruir-lhe a pureza... nada mais...

2 comentários:

R-E-N-A-T-O disse...

Como devem existir Amélias nesse mundo sonhando coisas impossíveis.

Anna Cecilia disse...

Amélia criou anticorpos! Cometeu um erro que destruiu seu mundo cor de rosa. Melhor assim do que se tivesse casado virgem e se sentisse obrigada por sua moral a viver para sempre com um traste como esse...