quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Combray está Morrendo

   Tanto ouvimos falar sobre o Capitalismo, o sistema classificado como terrivelmente cruel e desigual; todavia, jamais, em todos os meus anos de Academia, pude compreender sua nefasta amplitude tal como agora. A ação predatória das construtoras está colocando abaixo muitas casas e pequenos prédios de minha cidade. O que para uns pode parecer progresso, para mim é um crescimento desordenado. Aos poucos o ar interiorano vai deixando de existir, o lugar acolhedor vai morrendo em detrimento do lucro avassalador de homens que em tempo algum pisarão o solo deste lugar - além dos empreiteiros, ganham o prefeito e os vereadores com seus alvarás e vistas grossas. Esta palavra pode parecer a de um conservador aguerrido que não quer ver morrer o cenário caro de sua infância, avesso à mudanças e crítico da modernidade. Talvez. A leitura recente de Proust me fez resgatar certos acontecimentos há muito perdidos, revolvidos assim, tirando do fundo do baú a memória invencível de uma época de inocência boa, descompromissada, não menos vívida e alegre do que a fase adulta. ''Toda Combray'' - diz o autor - ''e suas redondezas, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá''; uma simples bebida quente, na qual molhava-se um biscoito, reconstituiu-lhe aos olhos a cidade de Combray; minha Combray hoje desmorona - temo ter que buscar-lhe no fundo de uma xícara de chá.
   Outro texto interessante, carregado do ar nostálgico, foi escrito por Victor Hugo quando do exílio se referia a Paris: ''É, para ele, uma doce lembrança imaginar que ainda resta alguma coisa do que via quando estava em sua terra, e que nem tudo teria desaparecido. Enquanto podemos ir e vir em nossa terra natal, imaginamos que as ruas nos são indiferentes; que as janelas, os telhados e as portas não nos dizem nada; que as paredes nos são estranhas; que as árvores são como todas as outras, que as casas onde não entramos são inúteis, que as calçadas por onde caminhamos são simples pedras. Mais tarde, quando estamos longe, percebemos que aquelas ruas nos são caras; que aqueles telhados, aquelas janelas e aquelas portas nos fazem falta; que aquelas muralhas nos são necessárias; que aquelas árvores nos são queridas; que naquelas casas onde não entrávamos, todos os dias entrávamos; e que deixamos entranhas, sangue e coração naquelas calçadas''. Victor Hugo ainda alerta o leitor: era provável que casa e ruas que descrevia não mais existissem.
  Vejo casas e prédios sendo demolidos em função da rapina gananciosa de pessoas que nunca estiveram ligadas a eles; que ignoram que a inconsequência da construção indiscriminada de edifícios pode acarretar um ônus drástico à própria cidade - imagine cinco edifícios de doze andares, com seis apartamentos por andar, reunindo setenta e duas famílias, cada uma com um carro; aumento dos congestionamentos, precariedade nos serviços, falta de recursos suficientes para abrigar tanta gente em espaços não-planejados e mal-adaptados. E para isso tudo contribui a classe média que compra apartamentos na planta, a perder de vista, acreditando nas promessas que o empreendimento imobiliário oferece: espaço gourmet, cinema, brinquedoteca, piscina, academia etc. Mas e se as setenta e duas famílias resolverem utilizar os mesmos ambientes de uma vez só, vai ter fila de espera? Compensa pagar, na planta, por coisas das quais não se valerá? Enquanto uns se matam para pagar as prestações, o condomínio e o IPTU altos; outros, ou melhor, outro conta as notinhas angariadas a custo do consumo irrefletido. É este, para mim, o retrato do Capitalismo; era nisto que pensava quando li o trecho do Manifesto Comunista que diz que a burguesia tornou tudo mera transação monetária. Agora vejo que as casas do caminho, com as quais pouco me importava, desaparecidas repentinamente, me fazem falta - minha Combray está morrendo, e não há nada que se possa fazer.

2 comentários:

R-E-N-A-T-O disse...

Niterói está mudando rápido, e a mudança não tem sido para melhor. Desde o trânsito até a criminalidade e a faveização.
Triste que a cidade que crescemos torne-se outra metrópole inchada.
Parabéns pela crítica. Muito pertinente.

Gabrielle V. disse...

Que texto lindo,tocante,nostálgico,crítico e inteligente!Concordo em gênero,número e grau e partilho do mesmo desgosto...

Beijos!