sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O Fantasma Canibal

   A casa ficava em um bairro de subúrbio; dois pavimentos, sem qualquer rigor arquitetônico, de linhas simples e um aspecto de abandono. O muro alto, enegrecido pelo limo, guarnecido de um portão de ferro, escondia o quintal de ladrilhos vermelhos e as janelinhas gradeadas do interior. O motorista do carro preto confirmou o endereço e logo estava com seu companheiro na calçada, batendo palmas para chamar o morador. Um homem mediano, de cabelos esbranquiçados, calva avançada e trajes simples, atendeu e os fez entrar. 
   O motivo da visita foi um telefonema: alguém, de nome João, dizia sofrer com manifestações paranormais - barulhos estranhos, objetos que flutuavam, outros que se partiam, vozes, vultos iam madrugada adentro, interrompendo o sono e tornando o local praticamente impossível de se habitar. João não era religioso, não possuía qualquer credo, nem vícios ou histórico de distúrbios psiquiátricos - isso seu interlocutor tratou de averiguar e encerrou a conversa prometendo uma visita. Histórias como aquela eram comuns e sempre muito bem-vindas, afinal, aquele grupo, que se reunia constantemente, era vulgarmente denominado de ''caça-fantasmas''. Fernando era o líder e direcionava as ações dos demais. Para este caso, solicitou a um membro que fizesse uma espécie de levantamento da região onde morava o tal João; a outro pediu que preparasse os equipamentos e registrasse toda a ação, enquanto ele faria uma anamnese, como ora foi mencionado, para tentar descobrir se tudo aquilo não era fruto de uma mente fértil - trabalhos assim requeriam muito critério.
   Apenas o rapaz responsável pelos equipamentos pôde acompanhar Fernando. A casa era espaçosa, com um bom número de cômodos, muitos deles vazios e sem janelas - era possível ver o cimento usado para tapá-las; o cheiro não era agradável e os recintos onde havia móveis estavam bagunçados.
-Paulo, o que diz o relatório sobre esse lado da cidade?
-Esse bairro começou a ser ocupado na década de 1940, tendo suas primeiras construções próximas à linha férrea, e cresceu nas duas décadas seguintes, aumentando sua área até o córrego, totalizando uns cinco quilômetros de um limite a outro - e, voltando-se para o morador, perguntou: - o senhor sabe quando esta casa foi erguida?
-Não - o homem, de ar taciturno, respondia a tudo laconicamente.
-Bem, eu reparei que a casa fica em uma rua que termina no córrego. É provável que seja de fins da década de 1960 - concluiu Fernando - o senhor mora aqui desde quando?
-Há quinze anos.
-E quem morou aqui antes?
-Não sei.
   Fernando teve má impressão daquele lugar e daquele homem. Havia algo estranho que lhe provocou certa repulsa inexplicável, agravada pelos maus odores da atmosfera rançosa da casa. A noite caiu. As câmeras, gravadores e mesmo o aparelho de medição de energia eletro-magnética não haviam detectado qualquer indício das manifestações. Sequer ruídos foram ouvidos ou espectros, divisados. O homem limitou-se a observar sem nada dizer. Parecia perscrutá-los com olhos dissimulados e cobiçosos, de cenho franzido, por vezes sorrindo de soslaio. Fernando decidiu rastrear cada quarto novamente, e Paulo seguiu para a cozinha. Após isso, conforme combinado, encerrariam o trabalho.
   Fernando entrou em um recinto escuro, apontando a câmera para cada canto. Confiando na lente noturna, que emprestava a tudo tons esverdeados, percebeu um sem número de coisas largadas a esmo pelo chão e em cima da cama de casal: roupas, revistas, acessórios e, inclusive, garrafas de bebida e pontas de cigarro, além de seringas usadas - ''ele mentiu para mim!'' - Pensou. Ao mesmo tempo que crescia dentro de si o medo e a vontade inopinada de sair dali, ouviu um som gutural esganado. Correu para a cozinha e o horror irracional dominou seus braços e pernas, sufocando o grito na garganta -  a geladeira estava aberta e continha pedaços humanos decepados aleatoriamente; caído no chão, Paulo fora degolado e, naquele instante, o sangue tingia o piso de rubro. Foi a última visão de Fernando. Logo sentiu um líquido quente jorrar sobre seu corpo, provocado pelo corte agudo de uma navalha.

4 comentários:

R-E-N-A-T-O disse...

Você continua malvado. Isso é bom. ;)

Adem disse...

hahaha... Excelente o conto!

Narguileiro disse...

Nada como um conto carniceiro! kkk

Anna Cecilia disse...

Demais!