sábado, 8 de outubro de 2011

Morte Solitária

   Uma vida interrompida. Era tudo o que se poderia dizer naquele momento. Ninguém sabia seu nome. Limitavam-se a balbuciar palavras entre si. Uns três talvez, ou quatro, nada além; o resto transcorria: pessoas indo, carros vindo, e somente um detalhe no quadro geral destoava: o cadáver de um homem, caído ali, próximo da sarjeta, ao lado do poste; de braços esticados, entrelaçados; roupas simples, um tanto encardidas; meia-idade e olhos abertos, fitos no horizonte limitado pela calçada e pela morte.
   Chegara na cidade havia pouco. Saiu da rodoviária e andou em um rumo perdido. Sua impressão modesta mal reparou no aspecto agitado e sujo do centro, tinto de cores cinzas, escorrido de um preto musgoso; nos andarilhos feios e comuns;  nos odores confusos de comida, vapor e dejetos. Não, decerto não reparou, pois assim era qualquer centro daquela região. Era o centro de onde vinha. Era o centro com que convivia - prédios crescendo desordenadamente, ruas tortas e gente; muitas gentes a esbarrarem-se. Não havia planejamento, não havia timbre nem tom. Havia um sentido metálico, opaco, triste. Havia pobreza de alma e de estilo; e o dinheiro que todos iam ali buscar!
   Quando passou daquela esquina, deparou-se com o corpo. Assustou-se: primeiro com o detalhe, depois, ganhando amplitude, o olhar analisou os outros elementos e somente encontrou indiferença. Ficou um tanto turvo, tonteou, não pôde conter a curiosidade e o desejo de aproximar-se. O homem não mais respirava. Contudo, seus olhos continham a última gota de vida e retinham perpetuamente o quadro dramático que ali tinha lugar: pés humanos, rodas, pressa - esquecimento. E, num átimo, os dois olhares se encontraram, compartilhando uma só visão do avesso da vida - ''quem está verdadeiramente morto?'' - Disse o rapaz - ''somos nós ou ele?'' Um senhor, que estava perto, franziu o cenho como que não houvesse compreendido as palavras que o jovem proferira alto sem perceber. Uma mulher perguntava se alguém havia chamado a ambulância e um terceiro meneou a cabeça negativamente.
   Inopinadamente veio a chuva. E quem estava ali se afastou. Só o rapaz, sentindo-se ainda mal, permaneceu por mais alguns minutos. Estava perdido, não lograria encontrar o endereço aonde deveria levar os papéis, não debaixo de chuva; também não podia deixar o cadáver anônimo abandonado. Encontrava-se tão aturdido que não percebera as poças transformarem-se em rio, molhando seus calçados, suas bainhas, suas pernas, sua cintura... A catadupa barrenta e contundente, empurrou-o e arrastou. Os documentos se perderam, a roupa se perdeu... E, no esforço de agarrar-se em anteparo que fosse e manter a cabeça acima d'água, tentou ocultar de sua mente os olhos sempiternos do corpo inerte. Não adiantou, eles eram fortes, vivazes, eternos! Tragaram-no para dentro daquele mar - e mais uma vez se encontraram no fundo. Aquele homem não estava mais sozinho.

2 comentários:

Anna Cecilia disse...

Demorou a postar, mas valeu a pena... Amei!!!

Bruno Borin disse...

Olá! Faz um tempo que frequento seu blog. Se me permite dizer, eu me identifico com seu gênero de literatura, a obscuridade me atrai. Eu também escrevo, me diz, toparia uma parceria de blogs? Sei que parece pretensioso, mas tenho apenas o motivo de conhecer e compartilhar literatura que seja do meu gênero também. Abraço!

http://manoroftales.blogspot.com.br/2012/01/um-fantasma.html