segunda-feira, 20 de abril de 2015

Cruz dourada

 Anselmo via esmaecer as cores da tarde. O rio corria numa placidez morna, refletindo as silhuetas das breves árvores que por sobre lhe caíam. A brisa corria abúlica, agitando com leve toque a vegetação do bosque. O rapaz quase dormitava recostado a um tronco, e suas mãos, mecanicamente giravam um pequeno talo em flor. Sorria naquele estágio de quase abandono da vigília, onde os sonhos se confundem com a realidade. Esperava uma vida longe dali, uma vida de encantos em que habitariam apenas ele e seu amor. E como sentia-se pleno, a ponto de quase extravasar, de quase entornar, banhando com um sentimento rutilante o mundo inteiro! Entretanto, seu mundo, por ora, não excedia os limites da Pavia. Intentava atravessar os Alpes, quem sabe visitar o Sacro Império, a França; quem sabe ir aos turcos, à Jerusalém - mas não, não pensou nos obstáculos, não pensou que... Um barulho! O jovem despertou - é ele quem se aproxima! - Levantou-se e quando já corria ao encontro de quem esperava, viu um homem. Estacou por um instante, confundido pela aparição de alguém por quem não esperava - alguém o teria descoberto? Aquele homem nada disse. Apenas limitou-se a desembainhar uma adaga e, com um golpe rápido, abriu uma fenda no pescoço de Anselmo. Uma catadupa sanguinolenta embebeu as vestes arminhas, tingindo em seguida o gramado quando o corpo jazeu ao chão. 
 Ser nomeado bispo da Pavia não foi mero acaso. Magno não tinha uma origem abastada, todavia, sua família sempre esteve relacionada aos duques de Milão. Não se sabe bem ao certo como seus ancestrais chegaram ao castelo dos Sforza. Sabe-se somente que eram cortesões que privavam de alguma intimidade de suas altezas. Desde cedo, Magno entendeu as regras do jogo político e passou a desejar algo além, fazendo o que fosse necessário. A vontade era maior que o talento e suas tentativas atabalhoadas redundavam em resultados canhestros. Tentou seduzir uma parente dos Sforza, moça bonita e voluntariosa, que riu-lhe na cara assim que conheceu suas intenções. De outra vez, chantageou  um rico comerciante de Gênova, de passagem pela cidade, depois de vê-lo forçar uma das criadas do castelo a atender-lhe os desejos enquanto sua esposa dormia nos aposentos cedidos pelo príncipe. Desistiu quando percebeu que suas forças não bastavam para enfrentar o porte e a espada do tal comerciante. 
 Foi medíocre e estava prestes a sucumbir ao ostracismo palaciano quando o duque de Sforza o mandou chamar. O bispo da Pavia morrera depois de lutar muito com as dores atrozes de uma úlcera estomacal. Roma decidira por nomear alguém de uma família rival aos Sforza. O que talvez fosse motivo para guerra, diluiu-se na saída diplomática adotada: um bispo neutro, não vinculado a qualquer clã, assumiria o bispado e, escrevendo ao Papa, Sforza indicou Magno para o cargo. Os meandros da negociação são desconhecidos, pois a situação não representou um grande evento político da História milanesa. O fato é que, dentro de algumas semanas, Magno entrava na Pavia como o novo bispo.
 No caminho para lá, sonhou grandezas, fez planos e esqueceu que jamais fora padre, que tinha sido inventado para tapar um pequeno buraco diplomático. Imaginou-se Papa, regendo toda a Cristandade, organizando Cruzadas, excomungando desafetos, adornando-se de ouro e relíquias no trono de São Pedro. Ao sair da carruagem, viu um jovem pajem na singela comitiva que o aguardava. Por um instante mirou o olhar cabisbaixo e sereno do rapaz imberbe, bem feito de corpo, não muito alto, de lábios finos e cabelos em caracóis. Sentiu algo estranho agravado ao jantar quando, à noite, reuniu-se aos padres subordinados, que conheciam a farsa do novo bispo, mas a tudo anuíam sem reclamar. O jovem lá estava... 
 Deitou-se sem conseguir dormir. Queimava e não sabia por quê. A imagem dele reaparecia incessantemente. Semanas se passaram sem que aquela impressão se desfizesse e, a cada vez que o pajem se aproximava, era um lenho a mais na fogueira. Houve, então, uma reação sensível ao pecado que aquilo representava; e não houve oração que afastasse seus pensamentos corrutos. O cinismo de uma fé aparente transmutou em crença sincera - afinal, Deus existia e tinha medo do Inferno. Porém, não lhe eram estranhos tudo o que se comentava sobre o que se passava no seio da Igreja: simonia, intrigas, assassinatos e... luxúria!
Resolveu chamar o rapaz em seu apartamento em segredo.
- Como é seu nome?
- Anselmo.
- Anselmo, dispa-se. - E, vendo o corpo nu, consumaram o ato. E o bispo queria mais e mais; não havia noite mais em que Anselmo não subisse secretamente ao quarto de Magno.Se aquele o fazia por obrigação, mera sobrevivência; se este tinha um medo genuíno das consequências que daí adviriam, é impossível saber. Ao cabo de dois ou três meses, Magno percebeu que não queria outro - Anselmo era seu preferido. Assim tornou-o seu protegido, dava-lhe presentes, deu-lhe também alguma instrução, livrava-o de certas situações e gerava desconfiança nos demais criados e padres. Certo dia, recebeu uma carta confusa do duque Sforza e Magno entendeu que estava prestes a perder o bispado. Sem meios, agora, sentiu-se sozinho e a única figura que lhe dava alento era Anselmo. E pela primeira vez sentiu que o amava. 
- Anselmo, vamos fugir. - E prometeu-lhe o Paraíso - iremos aonde quiser, longe, bem longe daqui! Não posso perdê-lo! - Anselmo quedou-se feliz. Combinaram dia e hora, como tudo deveria ocorrer: no bosque, na estrada que seguia para Gênova. 
 Antes da hora acertada, Magno rezava genuflexo diante de um crucifixo de ouro na principal igreja da cidade. Pedia perdão incessantemente e estranhava a religiosidade repentina que o amor lhe despertara. Um mensageiro adentrou a nave e, interrompendo a meditação do bispo, entregou-lhe outra carta de Sforza: o príncipe o convocava à Roma! Sim, talvez perdesse o bispado, mas em vistas de coisas maiores; talvez se tornasse cardeal! Papa! Em meio ao torvelinho megalômano, olhou para a cruz dourada e lembrou-se de Anselmo.
- Agora não, agora não posso mais! - Mandou chamar um conhecido mercenário com celeridade e, entregando-lhe a cruz de ouro, disse: - tens já aqui o perdão do ato que irá cometer - benzeu-se e despediu aquele homem com a missão de ir procurar Anselmo no bosque.
 Anselmo não sentiu a frigidez da água quando seu corpo foi atirado ao rio Ticino. Hoje é lá que ele repousa. 
  

2 comentários:

rafael rossi disse...

Muito bem escrito. Criativo. Acho que você escreve melhor sobre situações com pessoas comuns, mas esse conto situado num contexto histórico também está bom. Tenta publicar numa editora, Maurício. Às vezes na vida é preciso arriscar.

Anônimo disse...

Supimpa!