segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O Fantasma do Velho Casarão

   A Natureza não é mais a mesma. Onde se ouvia o canto dos pássaros nas tardes outonais, ou admirava-se o sol poente com suas franjas douradas; onde se podia ver o verde das copas, deitar-se ao relento e deleitar-se com a brisa noturna; hoje há um muro alto e cinza a tapar as vistas; há uma espiga retangular, sem cor, fazendo sombra, arranhando o céu; o ar não é mais puro e já não corre o riacho que secou. Mal se enxerga o firmamento...
   Minha casa ficava naquela esquina. Era grande; possuía uns janelões, uns beirais quase artesanais e uma roseira perto do portãozinho de ferro; nos fundos, árvores frondosas e uma coleção de insetos, pássaros e um sem número de animaizinhos multicores. Nasci em meio àquela aquarela de sons e cores vivazes; debaixo de um dossel finíssimo, sob os cuidados de uma parteira... Sim, digo da minha casa que tivesse sons e cores porque a vida vinha do jardim e misturava-se às teclas do piano, às louças e talheres prateados, ao romance das moçoilas e sisudez dos cavalheiros; aos quadros, enfim, de imaginação que compunham histórias, fazendo personagens reais interagirem com fictícios até cochilar na marquesa da sala...
   Ali cresci, tomei minhas primeiras lições, beijei os lábios incautos de minha adorada, dancei, sorri e li a obra de minha existência; ali chorei, me escondi, envolvi-me em lençóis de seda, senti o cheiro da madeira e vi a chama diáfana apargar-se segundos antes da escuridão; admirei-me das estrelas e da imensidão do Universo; Ali chamei por Deus...
   Quando morri, em um crepúsculo do início do século, não pude abandonar aquela casa, a casa em que vivi todas as minhas vidas. Assisti meus filhos tomarem rumo e meus netos tornarem-se homens. Os móveis mudaram de lugar; algumas toalhas ficaram rotas; o piso foi devorado por cupins. O tempo fez o seu trabalho de oxidar metais, amarelar papéis e esfriar emoções... Ainda assim não abandonei aquele lar; participei de todas as histórias alegres e tristes que ali se desenrolavam como em um teatro, ora me angustiando, ora gargalhando: as gerações que nasciam, um que se suicidava, outro que agonizava; a prosperidade de um primo, a desgraça de um tio; o riso solto e as lágrimas copiosas...  
   Um dia, porém, um tataraneto resolveu vender a casa. Não conseguia viver entre paredes cediças, entre vultos de um passado familiar. Tinha sede de novidade, de modernidade e de esquecimento. Abandonou seu pai, seu avô, seu bisavô e a mim, pois aquela casa não era mais feita somente de tijolos - era feita de sentimentos, de lembranças inesgotáveis, de memória imortal. Por fim, a própria casa tinha vontade e desta velha força alimentava-me. Era eu um fantasma solitário que nada tinha de assustador - somente um espírito saudosista mal acalentado pelas antigas cantilenas...
   Derrubaram o velho casarão - ao invés do jardim, uma portaria e uma garagem; ao invés dos beirais e dos janelões, milhares de pequenos olhinhos de vidro, a centenas de metros acima, dispostos em um imenso corpo de concreto; ao invés de uma família, o ruído de várias pessoas que jamais souberam o que é um jardim; ao invés de cores e sons, de insetos e pássaros, o barulho infernal de gritos e buzinas; ao invés de ar, poluição...
   Morri novamente com o velho casarão; hoje sobraram apenas meu entulho, meus cacos e meu pó; sou rastro de recordação...

2 comentários:

R-E-N-A-T-O disse...

Um conto triste, porém profundo. Nos leva a refletir sobre a razão do viver e de morrer. Gostei muito como sempre. Continue assim.

Luiz Fabiano de Freitas Tavares disse...

Muito interessante, seu blog. Vou dar uma olhada melhor depois, com mais calma, pois tem muito material. Adorei a "Grávida virgem"! Abraço!