segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Picadinho

   Wilson era um homem aborrecido. Seco, austero e não obstante os tempos se forem, ele permaneceu firme ante os ventos de modernidade. Cresceu ouvindo o pai falar bem de Getúlio, e com igual veemência defendia a ditadura arrematando: ''naquela época é que era bom!'' - tornou-se um velho chato, daqueles que desata um palavrório infinito quando encontra um conhecido na rua, ou se inventa de catequizar algum jovem - ''ouça a voz da experiência, garoto!'' A bondade, entretanto, não vem com a idade. Ora, quem foi enjoado por toda a vida, o será também na morte!
   Sua esposa, de nome Vera, era uma mártir. Tinha que cozinhar, passar, cuidar da casa enfim e ainda aturar aquele homem. Em diversos momentos, arrependera-se secretamente, e imaginava outro destino para si. Mas estava velha também e não se permitia certos desejos. Seu marido levantava-se cedinho, sentava-se sempre no mesmo lugar da mesa, tomava seu café e ia ler o jornal. Daí é que começava a reclamar do governo, do preço das coisas, dos gastos mensais. E, em seguida, sua distração era achar defeitos em tudo o que via na casa e na esposa: ''o móvel da sala está empoeirado'', ''você deveria fazer arroz fresco mais vezes'', ''essa sua blusa não é muito decotada para uma mulher de sua idade?'', ''quantas vezes eu já disse que meu suco é com adoçante?'', ''estou com uma dor aqui, acho que morro em breve. O que será desta casa sem mim, hein?'' - e levantava-se para ir à banca, fazer fezinha no bicho e amofinar algum incauto vizinho. 
   Desfilava as canelas finas e as rugas franzidas no cenho, de peitilho aberto da camisa amarela, bermuda desfiada; grisalho e meio dentuço; gago exasperante ao defender suas posições amalucadas e rançosas. E discutia, xingava, era o senhor da razão - falava mal de mulher, de preto e de viado - ''está tudo errado! Eu já disse para meu filho que não quero neto mulatinho! Agora, se andar com homem, acho que eu mato! A culpa é da mãe dele, que não criou direito!''
   Vera, então, teve uma ideia. Agora não mais bufava enquanto ouvia Wilson. Limitava-se a soltar alguns risinhos discretos. E ele perguntou, certa vez, o que era. Não era nada, estava apenas pensando na receita do picadinho que serviria no almoço de domingo.
   - Picadinho? Finalmente você resolveu fazer algo diferente! Veja se fará isso direito, hein, pois penso até em chamar a minha mãe. Na última vez foi um desastre! A feijoada ficou rala, horrível! Bem, e como é essa receita, posso saber?
   -Claro, vai ser um picadinho com carne de porco! - dito isso, cravou-lhe a faca de carne no pescoço.
   No domingo, os familiares todos elogiavam o prato. A mãe de Wilson estranhou a ausência do filho.
  -Ele foi fazer uma viagem, mas fez questão que eu a convidasse... Está servida de mais um pouco de picadinho, dona Amália?

Um comentário:

R-E-N-A-T-O disse...

UAHUAHAUHAUHA! Muito bom!