Passando um homem na rua, distraído com qualquer coisa, filosofia, cisma ou mesmo bobagem, foi atacado por um cachorro feroz que escapara de uma casa próxima. Sentiu a mandíbula tenaz fechar-se em seu braço direito e os afiados dentes espetarem-lhe a carne. Deu um berro de susto e de dor e quase foi ao chão. Malogradas as tentativas de fazê-lo afastar-se, conseguiu alcançar um pedaço de madeira firme e deu golpes no bicho até partir-lhe o crânio e cair com a boca ensanguentada. Mal se lobrigava a pele rasgada coberta pela massa vermelha, agora misturando-se o seu com o sangue do cachorro. Gemeu, mas ninguém acudiu-o. Ao contrário, ouviu-se apenas uma voz gritando:
-Polícia! Polícia! Alguém chame a polícia! - Uma mulher de meia-idade, dando mostras de nervosismo, sacudia-se para chamar a atenção de um guardinha do outro lado da rua: - polícia! Polícia! - O guardinha correu e, em lá chegando, perguntou o que acontecia: -seu policial, este homem cometeu um assassinato! - os olhos do pobre rapaz se arregalaram jungidos aos do guarda - este homem acaba de matar um cachorro, veja! Eis aí o flagrante!
-Mas minha senhora, ele me mordia, por pouco não arranca meu braço!
-Ora, ora, agora quer fazer-se de vítima? Pois eu vi muito bem que o senhor descia o lenho no infeliz e indefeso animal!
-Sim, porque ele me atacava! Precisava me defender!
-Senhor policial - disse a mulher voltando-se para o guarda - essa criatura que jaz aí morta não tinha compreensão, não entendia a gravidade da situação, mordeu por instinto ou porque foi provocado talvez; este senhor entendia e sabendo-se mais forte, abusou de seu poder, privando o animal da vida! Ele não poderia ter feito isso! Não tem esse direito! Prenda este assassino!
-Assasssino? E se esse cachorro houvesse pulado na minha garganta e perfurado a minha carótida? Eu poderia ter morrido!
-Mas essa é boa! Tentando se justificar com a legítima defesa! Deveria ter pedido ajuda e não tomado tal atitude, meu senhor! E o que dirá a família desse bicho, hein? Sabe-se lá se tinha uma fêmea, se tinha filhotes? E o dono? Vai ficar desconsolado! - A mulher consternava-se.
-Minha senhora - o guarda enfim falou - o que temos aqui não se trata de um homicídio e, afinal, era só um cachorro!
-Como é que é? Bicho também é gente, seu guarda! Bicho também é gente! É por isso que esse país não vai para frente: por causa da impunidade! Esse homem tinha que apodrecer na cadeia! - A mulher estava transtornada - quantos cãezinhos não morrem todo dia atropelados, abandonados, com fome, a mercê de doenças, do frio? Todo dia eu rezo e peço a Deus pelos bichinhos indigentes, dou comida àqueles que encontro pelo caminho e já levei até alguns para minha casa. Mas os homens nunca entendem o sentido da verdadeira caridade...
-Minha senhora, este homem está sangrando e precisa de cuidados... - disse o guarda.
-Pois que morra! Deus que me perdoe, mas será menos um bandido no mundo! - E, abaixando, tomou no colo o cadáver do cão, apertou-o contra o corpo e, choramingando, sussurrou: -oh, coitadinho, não se preocupe, eu vou te dar um enterro digno, acender uma velinha e mandar rezar uma missa para você, viu? E no dia de Finados, colocarei flores no seu túmulo... Coitadinho... - levantando assim, foi embora, falando baixinho como se o animal a pudesse ouvir.
Um comentário:
Nossa,amei a história!eu fico horrorizado quando vejo bichos sofrendo...
Boa noite!
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