terça-feira, 15 de junho de 2010

A Maluca do Parque

   Fosse dia ou noite, inverno ou verão, ela estava lá. Com suas vestes cediças, a face marcada, os cabelos prateados e as bijouterias escurecidas. Vinha cantarolando cantigas de amor ou recitando poesias ao vento, as quais sabia de cor por terem se repetido exaustivamente em sua história de vida. Contudo, quem olhasse aquela figura maltrapilha, suja da fuligem, magra e curvada ao peso da idade, diria não passar de uma velha mendiga. O chapéu de palha rota e flores esmaecidas, o véu rasgado, o vestido amarelado e puído, os sapatos furados compunham o quadro melancólico e solitário daquela triste mulher - seus trajes eram seu único bem material. Não tinha família. Seus amigos eram as árvores, os pássaros e as violetas do parque. Para eles dedicava sonetos, a eles ninava, a eles contava toda sua amargura - uma lágrima furtiva sempre desabava de seus olhos.
   Não sabiam de onde vinha. Dormia em um banco, esmolava e sofria algum achincalhe da leviandade alheia que cismava em perturbar-lhe com ofensas e agressões. Em geral, as pessoas se afastavam dela por causa de seu odor e de sua suposta insanidade. Portanto ficou conhecida como a 'Maluca do Parque'. E para esquentar as noites frias e livrar-se das lembranças, bebia aguardente, deixando solto seu espírito que evolava em tantas fantasias, fazendo crer, por um instante, que a realidade era outra. Embriagada, vislumbrava o céu, via-se jovem novamente e encarava o rosto luminoso de seu finado amor. 
   Havia cinquenta anos que se encontraram pela primeira vez naquele banco. Era a época das mulheres que usavam finos toucados, chapéus elegantes e portavam leques; e de homens distintos que passeavam com suas damas, nas tardes de outono, ofertando-lhes rosas que iam pelo caminho. Foi naquele banco que suas mãos se entrelaçaram e os lábios se tocaram. Foi naquele banco que ele disse que a amava e a pediu em casamento - o mesmo banco que passara a ser sua casa. Viveram juntos a felicidade, a paixão e a quimera - um sentimento que enternece e vivifica. Ainda podia ouvir 'eu te amo' dito pela voz suave de seu amado, para quem sonhando respondia alto. 
   Chegando um dia, grave e circunspecto, arrebatado pelas vagas do destino cruel e indiferente, de olhos marejados, ele resolveu que seria aquele o último encontro: - querida, bem sabes que nem tudo depende de nossa vontade e que a ironia da vida nos surpreende, demonstrando a fragilidade dos homens. O nosso amor, para ser eterno, deve morrer. Apenas ficará sua bela recordação. Não esperemos que ele se desfaça em entreveros e discordâncias, em ciúmes e mentiras; não maculemos o sentimento puro que existe. O futuro do verdadeiro amor é a saudade e para não ter que vê-la nos braços de outrem, magoada e desgostosa, escolhi a morte. Guarde esses doces momentos feito tesouro e eu te virei buscar no derradeiro instante para aí sim realizar o amor, limpo da miséria humana - concluindo estas palavras, retirou um frasco do bolso e derramou seu conteúdo nas papilas. A garganta ardeu; o frasco, escorregando-lhe, espatifou; o mundo embassou e apagou por fim. Ela desesperou-se, pois não houve tempo sequer de impedir - seu espanto a imobilizou. Jamais pensara em perder assim o seu amado. 
   Acordou e, ignorando a beleza da manhã, de brisa fresca e cores que se confundiam para formar particular aquarela; correu as mãos pela madeira do banco e repetiu para si: ''hoje faz cinquenta anos''. A frase saía de sua boca mais frequentemente e mais alta - ''hoje faz cinquenta anos''. Andava, circunscrevia, socava levemente as têmporas e dizia: ''hoje faz cinquenta anos''.  Ao voltar-se na direção do lago, viu seu amado postado sobre as águas, sorrindo e abrindo os braços - o coração acelerou, teve um arroubo de juventude e esperança, seus olhos brilharam e, gargalhando, correu para alcançá-lo. Foi, então, envolvida pelo lago, sumindo nas águas turvas. Quando encontraram seu corpo, exibia um leve sorriso - seu espírito enfim serenara.

2 comentários:

Anônimo disse...

Interessante,Maurício!Muito poético e bonito.Gostei muito principalmente do final!Me remeteu a ofélia,personagem tão lírica ,volátil e insondável,com a qual, me identifico!Só que achei que era um motivo muito fraco para dar fim a própria existencia,(da parte da personagem masculina)posto que todo amante no fulgor do encantamento é dono legítimo da eternidade,da esperança,da felicidade,do sonhar acordado...Teria que haver um motivo mais urgente,alguma fatalidade talvez...
Mas gostei muito!Beijinhoo!!:)

Gabrielle Violet disse...

Ops!o comentário acima é meu!Sem querer postei como anonimo!rsrs...