domingo, 20 de junho de 2010

Onde Está Deus?

   Retornou após padecer três dias na enfermaria; seu andar encimesmado, curvado e trôpego estacou diante da porta do casebre: paredes sujas de terra, teto de telhas frágeis e uma pequena janela de onde saía um som patético de dor - gritos e choro de alguém em franco aturdimento. Colocou a mão e empurrou a tábua de madeira que ocultava o interior. A figura esquálida, de pele acinzentada e olhos tristes fez sua entrada muda; a força e tenacidade perdera havia três dias; transformara-se em fiapo roto e ensebado, arremedo de gente, frangalho disperso pela escarninha fatalidade. E ela, feito torrente, arrasta consigo tudo o que lhe vem pelo caminho: levou sua mão esquerda e o filho que a esposa ora pranteava.
   José era um cortador de cana que mal ganhava para sustentar os cinco filhos. Levantava antes do sol e, subindo na caçamba do caminhão, ia com seus companheiros à lavoura. Mantinham-se em silêncio pelo trajeto, absortos em pensamentos de esperança ou fracasso talvez; de provável resignação e abandono. Um sorriso furtivo escapava, uma melodia e uma lágrima - o trabalho não lhes trazia dignidade. Recebiam uma quantia irrisória pelos dias inteiros passados no labor árduo. Rendiam-se, porém, como condenados arremetidos contra a vaga do destino. Aquela terra fértil revolvia-se pelo bem de outrem; pela grandeza e prosperidade de indivíduos alheios, de bolsos ávidos e alegres. Os braços levantavam-se, empunhando no ar o facão, e desciam... Outra vez e mais outra, até que o expediente acabasse e lhes sobrasse tempo exíguo para respirar e viver. E no lar, desabavam feito a cana morta em seus leitos, dormindo um sono profundo e sem sonhos porque não lhes era permitido sonhar. A vida se repetia na manhã seguinte esperando que os sucessivos dias se consumissem enfim. Foi em uma dessas manhãs rutilantes que a lâmina decepou inopinadamente a mão de José: uma catadupa sanguinolenta jorrou; um urro de dor aguda e o desmaio. Levaram-no para um posto precário onde padeceu três dias.
   Ressuscitado, tornou à casa para recuperar-se do trauma; era já metade do homem que fora e a outra metade restante acabaria por desabar: o filho, de apenas dois anos, perecera picado por uma cobra. Maria, sua esposa, somente conseguia proferir, de voz esganada, a frase vinda do âmago do coração dilacerado: -Jesus morreu! Jesus Morreu! - e voltando-se para José, perguntou: -José, onde estava? Nosso filho, José, nosso filho morreu! - Ele limitou-se a mostrar-lhe o antebraço enfaixado pela ausência da mão. Os dois assim se abrançando, derramaram lágrimas que podiam encher um açude inteiro. Jesus foi enterrado no quintal árido e com ele a luz daquela casa. E, enquanto o corpinho magrelo sumia na terra embalado em um caixote, José repetia de si para si: -onde está Deus? Onde está Deus? Onde está Deus?
   José jamais obteve resposta. A vida continuava a despeito da mão, a despeito do filho, a despeito da carestia sempiterna de algo inexplicável dentro de si. Ao longe, para além do campo, havia uma felicidade indiferente; havia pessoas que riam e desejavam; havia abastança e regozijo; havia fé. Não obstante, para José, a vida continuava...

3 comentários:

Laura disse...

Nossa... Texto profundo... Muito bom mesmo!!! O estilo de narrar lembra um pouco o estilo noventista (sec. XIX)...

Botelho disse...

Bravo!

Bob restauração disse...

Continue publicando a despeito de qualquer comentário, seus textos levam a reflexões, isto geralmente incomoda. Parabéns.